Foto: Ronai Pires da Rocha

Tempo, silêncio e esquecimento: o que ficou da experiência dos jovens de Santa Maria?

Sonia Borges: Na ocasião foi divulgado, tanto na mídia televisiva quanto impressa, um número significativo de voluntários, dentre eles muitos jovens e profissionais de áreas distintas, que se dedicou exaustivamente a ajudar no resgate das vítimas. Alguns desses voluntários eram jovens que haviam saído com vida do local, retornaram para ajudar e não mais voltaram. Outros, com destinos distintos, ressentiram-se de não terem conseguido ajudar mais. Como essas experiências têm se expressado atualmente?

Volnei Dassoler: De fato, essa circunstância foi relatada por algumas pessoas que acompanhamos durante o ano nos atendimentos clínicos, como os seguranças da boate e os profissionais do resgate e da segurança pública. Com relação aos jovens que retornaram para prestar algum tipo de socorro, era bastante comum aparecer nos relatos a expressão de culpa pela insuficiência da ajuda, minimizando o que haviam conseguido fazer, concentrando-se naquilo que não haviam feito, ou seja, embora tivessem tido uma atuação decisiva, atribuíam a si uma certa responsabilidade pelo tamanho da tragédia. Atualmente, essa sensação diminuiu consideravelmente e aparece menos nos depoimentos. Entretanto, é possível presumir que, para além de uma suposta pretensão narcísica de ser herói, um resto de frustração permanecerá como elemento parcial desta circunstância na vida de tais pessoas.

Sonia Borges: Pensando em termos de tempo presente, como os jovens têm reagido? Eles falam sobre o que aconteceu? Evitam? Como falam? Encontraram formas positivas de lidar com o sofrimento e a perda?

Volnei Dassoler: Nas primeiras semanas era impossível alguém se reunir na cidade sem falar sobre o que havia acontecido. A situação se impunha de maneira inexorável e as pessoas tinham necessidade de demonstrar a incredulidade, a perplexidade e, ao mesmo tempo, a solidariedade e o apoio. Em algum momento do ano de 2013, o assunto começou a rarear entre as pessoas e não sabíamos definir claramente porque isso estava acontecendo. O certo é que se percebia no ambiente um clima implícito de censura e de crítica sobre o assunto, como se já tivesse esgotado o que daí poderia ser dito ou feito. Tal percepção incomodou profundamente os familiares das vítimas, que reagiram intensificando as ações públicas, o que gerou algum tipo de rejeição sobre os mesmos. Diferentemente dos pais e familiares, os jovens sobreviventes escolhiam uma postura mais reclusa e silenciosa, preferindo o silêncio e manifestando o desejo de não serem associados e lembrados como os jovens que estavam na boate, pois entendiam que isso poderia ser um estigma, uma marca que poderia limitar sua vida, tanto do ponto de vista pessoal como profissional. Muitos sobreviventes deixam claro não quererem que esse acontecimento se coloque em primeiro plano na sua vida, que seja seu cartão de apresentação na vida cotidiana, preferindo como forma de elaboração psíquica e social que essa experiência seja vivida e compartilhada com os familiares e com as pessoas e amigos da sua intimidade.

Sonia Borges: Parece que a situação traumática torna-se incompreensível quanto menos espaço tem de expressão. Recentemente, tivemos acesso a uma publicação1 onde se coloca que a cidade está dividida entre os que querem transformar 2014 no ano da “superação” e aqueles que buscam a justiça e mudanças que possam evitar a repetição do que aconteceu. Gostaríamos que você nos falasse um pouco sobre o seu questionamento, nessa situação, quanto ao uso da palavra “superação” e seus significados subjacentes.

Volnei Dassoler: Do ponto de vista coletivo, nas primeiras semanas houve uma necessidade intrínseca de fazer o enfrentamento do evento traumático através de rituais externos onde a cidade e as pessoas afetadas compartilharam o sofrimento e promoveram apoio e consolo mútuo. Portanto, houve um tempo inicial quando todos os espaços de convivência eram espaços possíveis de significação e representação daquilo que havia se mostrado como horror e que encontravam solidariedade entre toda a população.
Com o passar o tempo, esses espaços foram desaparecendo e percebeu-se uma pressão para que as pessoas não falassem mais sobre o que havia acontecido. Tal pedido justificava-se como sendo a maneira de continuar a vida sem ficar preso ao passado. Nesse cenário, a palavra superação começou a aparecer e ser usada para expressar tal intenção. O dinamismo da linguagem coloca em risco aquilo que queremos expressar quando construímos uma sentença com o propósito de comunicação. Pois bem, superação é dessas palavras que merecem nossa atenção quanto ao seu uso. Na situação a que estamos nos referindo, o verbo superar era facilmente codificado como um pedido de esquecimento e de silenciamento sobre os acontecimentos, situação que gerou muitos protestos e polêmicas na cidade, por dar a entender que os desdobramentos que se seguiram ao incêndio estariam afetando o desenvolvimento e a vida em Santa Maria. Nos atendimentos com familiares é descrito com bastante frequência o incômodo e mesmo a raiva suscitada por um determinado tipo de apoio que se traduz como cobrança e proibição de sofrimento público na forma de um pedido de superação.
Da nossa parte, entendemos que esse movimento não depende de um único ato e nem se processa numa única vez, estando dinamicamente determinado por inúmeras razões, e que o processo no qual os familiares estão envolvidos não significa inviabilizar a continuidade da vida das pessoas e da cidade, inclusive porque a grande maioria delas, jovens ou familiares, retomou sua vida naquilo que lhes é possível diante das circunstâncias.

1- Matéria: “Santa Maria levará 5 anos para se recuperar da tragédia na Kiss”
Fonte: http://coral.ufsm.br/midia/?p=12477
Volnei Antonio Dassoler dassoler@terra.com.br
Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, mestre em Psicologia (Universidade Federal de Santa Maria - UFSM), tutor do Núcleo da Psicologia da Residência Multiprofissional em Saúde Mental (UFSM) e membro do comitê gestor do Acolhe Saúde, serviço de Atenção Psicossocial às vítimas do incêndio na boate Kiss da Prefeitura Municipal de Santa Maria - RS.
Sonia Borges Cardoso de Oliveira soniarborges@uol.com.br
Psicóloga, doutora em Psicologia, pesquisadora permanente do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa para Infância e Adolescência Contemporâneas (NIPIAC/UFRJ). Editora Associada da DESidades, atua principalmente nos seguintes temas: psicologia e intervenção clínica; juventude e adolescência; grupos de discussão; processos de subjetivação e o lugar do sofrimento no contemporâneo.