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Desafios à circulação de jovens mulheres na cidade do Recife

Jaileila Araújo Menezes
Universidade Federal de Pernambuco, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Recife, PE, Brasil
ORCID iD: http://orcid.org/0000-0003-3322-3764

Débora Carla Pereira Calado
Universidade Federal de Pernambuco, Curso de Psicologia, Recife, PE, Brasil
ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-1009-005X

Juliana Catarine Barbosa Silva
Universidade de Pernambuco, Curso de Psicologia, Garanhuns, PE, Brasil
ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-1632-3424
 
O presente artigo deriva de uma pesquisa mais ampla com foco na temática juventudes e direito à cidade. Buscaremos problematizar a circulação de jovens mulheres periféricas pelos bairros do Recife, Brasil, e compreender como elas se relacionam com os desafios que a cidade lhes impõe.

Consideramos a cidade como formação que vai além de uma estrutura física, sendo essencialmente composta pelas pessoas que nela circulam diariamente e, em complementaridade, também as constituem, a partir das relações com os espaços públicos, privados, em dimensões objetivas de busca de sobrevivência e afetivas de encontros e recordações. A cidade é uma rede viva de relações entre corpos de concreto e de carne, artérias, vias, pontes, viadutos, pulso de trânsito, planejamento e caos. Torna-se inviável tentar separar a cidade das pessoas que nela habitam, pois essas modificam o território, sendo também modificadas por ele. Nesse sentido, a construção das cidades deveria ter uma orientação democrático-participativa e atender de modo equânime às demandas de seus/suas cidadãos/cidadãs; no entanto, a lógica capitalista neoliberal tem mercantilizado das mais diversas formas a cidade e o modo de vida citadino (MARTINS et al., 2017). A cidade neoliberal agudiza ainda a cisão entre as zonas de acesso privilegiado aos bens culturais, de lazer, de serviços em geral e os cinturões de pobreza.

Historicamente as periferias espelham a segregação socioeconômica, sendo áreas desvalorizadas tanto pelos agentes públicos quanto pelos investimentos privados (GUIMARÃES, 2015). Particularmente a cidade do Recife, lócus de nossa pesquisa, é uma metrópole composta por 94 bairros, muitos constituídos a partir de ocupações, que estão atualmente agrupados em seis regiões administrativas, nas quais se podem situar 66 Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), que resultam de uma história de luta pelo direito à cidade (COSTA; MENEZES, 2009). Para Mendes (2019), a forma como o modelo econômico neoliberal influenciou a formatação da capital pernambucana pode ser observada nas propostas apresentadas pelos planos diretores municipais ao longo das três últimas décadas. Nesse período, muitas obras coletivas foram realizadas a partir de interesses privados e apresentavam grande potencial de retorno financeiro direto ou indireto para os envolvidos. Temos como exemplo o projeto Via Mangue (2004-2016), que liga importantes áreas de interesse comercial na cidade. Por outro lado, propostas como o Parque dos Manguezais, empreendimento de reconhecida relevância ambiental, não foram viabilizadas com alegação de falta de verbas (Ibid.).

Mesmo as áreas periféricas são tratadas de modo desigual. A comunidade popular de Brasília Teimosa, localizado no bairro do Pina, é recorrentemente destacada nos planos diretores do Recife, sendo alvo de inúmeros investimentos de capital público e privado em decorrência de sua proximidade da orla e de áreas nobres e comercialmente estratégicas (Ibid.). O referido território vem passando por visível processo de gentrificação.

Recife tem um significativo cinturão periférico, com população predominantemente jovem, na faixa etária de 15 a 30 anos (IPEA, 2013). As desigualdades sociais pluralizam as formas de ser jovem no Brasil, grande parcela dessa população ainda precisa lidar com a pobreza, ineficácia do transporte público, falta de local adequado para estudos, violência e precariedades diversas nos lugares onde residem (LEITE; MELO, 2017). D’Andrea (2020) compreende que a juventude periférica tem suas trajetórias quebradas por serem marcadas pelos múltiplos obstáculos em seus cotidianos urbanos que impedem sua ascensão social, retroalimentando o ciclo da pobreza inerente à lógica hierárquica do sistema capitalista neoliberal.

Do exposto, destacamos que um marcador social importante para pensar a experiência de ser jovem na cidade é o seu local de moradia, enquanto zona de privilégios urbanos (saneamento, iluminação, opções de mobilidade, equipamentos de lazer, complexos culturais, de saúde) ou de escassez. É nesse contexto em que vivem que os/as jovens expressam suas demandas e produzem saídas para tornar suas vidas vivíveis (LEITE; MELO, 2017). Outro marcador que acessamos na pesquisa foi o de gênero, pois, se por um lado, os/as jovens que vivem em cinturões periféricos das grandes cidades têm mais possibilidades de sofrer quebras em suas trajetórias, por outro, as possibilidades de restaurar as fraturas são diferentes e desiguais entre os que performatizam gênero como homens ou mulheres em uma sociedade estruturalmente marcada pelo colonialismo heteropatriarcal.

Para Galetti (2017), a circulação das mulheres nas cidades é coreografada pelo medo, pois elas evitam circular por alguns locais com receio de sofrer violência, em especial, violência sexual. A falta de infraestrutura urbana e o transporte público precário dificultam a mobilidade das mulheres na cidade, não levando em conta as especificidades de suas demandas. Dentre as condições que colaboram para a violência de gênero na cidade, podemos destacar: a falta de iluminação em ruas e parques; a redução do transporte público à noite; além de ônibus lotados, o que facilita a ação de abusadores. Essas violências são realizadas diretamente por homens, mas também pelo Estado, que negligencia o direito de permanência do corpo feminino na cidade. Esses acontecimentos atingem de modo mais contundente as mulheres negras, sendo elas historicamente mais pobres e desprotegidas em cidades que as colocam entre a parcela da população que é mais vitimizada pelos crimes de agressão física e feminicídio (Ibid.). Sousa, Nunes e Barros (2020) fazem referência à vulnerabilização de corpos negros em contexto urbano e, no caso do Brasil, se destaca o alto percentual de óbitos de mulheres negras no ano de 2017, sendo de 66% do universo total de mulheres mortas.

Mesmo que as cidades não sejam acolhedoras às mulheres, no Brasil, elas ocupam predominantemente os espaços urbanos. Contraditoriamente, o poder decisório das mulheres não acompanha essa vantagem numérica, sendo sua admissão em cargos políticos ainda muito pequena, fator que inviabiliza que o processo democrático seja construído de forma equânime (CASIMIRO, 2017). Ao citar a importância da presença das mulheres nos processos de tomada de decisão, e ao mesmo tempo denunciar sua exclusão dessas instâncias, queremos também alertar que é papel do Estado garantir que os processos democráticos ocorram de forma não segregacionista (Ibid.). É imperativo que a vida nas cidades seja pautada pela lógica democrática, com equidade participativa.

Para Haraway (2009), as atuais organizações políticas, econômicas e tecnológicas estão intimamente relacionadas ao enfraquecimento do estado de bem-estar, o que corrobora a feminização da pobreza, em que empregos estáveis são exceção, alimentada pela perspectiva de que os salários das mulheres não serão equiparados aos dos homens. Destacamos aqui que, para as mulheres negras, o trabalho fora de casa e em iguais condições de exploração de suas forças com relação aos homens brancos ou negros já lhes é uma realidade há muito tempo e a desigualdade de poder entre elas e as mulheres brancas veio à tona e de modo mais sistematizado com a produção do movimento feminista negro (COLLINS, 2019).

Entendemos que a análise das situações de desigualdades que estruturam as sociedades capitalistas requer uma visão de rastreio para a localização dos pontos de articulação que intensificam as adversidades existenciais nesse contexto. Com essa inspiração, o presente artigo congrega esforços para abordar a circulação de jovens mulheres na cidade em uma perspectiva interseccional (AKOTIRENE, 2018), considerando as marcações de pertencimento territorial, de raça, gênero e geração que compõem um movimento dinâmico de coletivização e singularização das possibilidades de ser e existir na cidade.

Em territórios que privilegiam corpos masculinos, brancos e elitizados, as mulheres jovens, periféricas e negras lutam cotidianamente pelo direito de vida na cidade (KOETZ, 2017), ampliando assim o próprio sentido da reivindicação de direito à cidade. Nesse sentido, pontuamos que o direito à cidade envolve o desenvolvimento social, e não apenas o econômico. É crucial garantir a todos e a todas acesso ao lazer, à habitação digna, trabalho, serviços e circulação livre, a fim de possibilitar uma cidade plural, diversa e democrática firmada na justiça social (CASIMIRO, 2017). Com o presente estudo, pretendemos nos debruçar sobre a circulação de jovens mulheres periféricas pelos bairros do Recife e compreender como elas lidam com os desafios que a cidade lhes impõe.

Metodologia

Desenvolvemos o presente estudo tendo como guia o debate feminista pós-estrutural e interseccional (HARAWAY, 2009; PISCITELLI, 2008; AKOTIRENE, 2018), buscando compreender os marcadores sociais que se articulam na composição das experiências de jovens mulheres periféricas na cidade do Recife. Participaram da pesquisa jovens que residiam em bairros periféricos de Recife e frequentavam uma ONG situada em um bairro da zona sudoeste da cidade. O bairro está localizado na Região Político Administrativa (RPA) 5, apresentando uma área territorial de 14 km2>/sup> e população de 2.420 habitantes (IBGE, 2010). A referida ONG iniciou suas atividades em 2009 e oferta atividades artísticas para crianças e jovens da região.

Todas as fases da pesquisa ocorreram após a aprovação do projeto pelo Comitê de Ética, conforme as orientações da resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, que trata sobre pesquisas com seres humanos. Destacamos, ainda, que todos/as os/as participantes leram e assinaram em duas vias, recebendo uma delas, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), que assegura a liberdade, a segurança e dispõe sobre possíveis riscos advindos de sua participação na pesquisa. Com o objetivo de garantir a segurança e a escolha pelo anonimato feita pelos/as participantes, foram atribuídos nomes fictícios aos jovens que contribuíram com o estudo. A estratégia metodológica adotada foi proposta em duas etapas: oficinas e entrevistas semiestruturadas.

Na primeira fase, participaram das oficinas temáticas, 3 jovens homens e 3 jovens mulheres, com idade entre 15 e 24 anos. As atividades foram intituladas da seguinte maneira: a) a aventura de contar-se na cidade; b) quais os gêneros da cidade?; c) qual a cidade que queremos? Nesse sentido, mesmo que o presente artigo foque as experiências de circulação pela cidade das jovens mulheres, entendemos, em uma perspectiva de relações de gênero (SCOTT, 1995), que as mesmas se forjam a partir das práticas discursivas e de seus efeitos em corpos identificados como masculinos e femininos em sociedades heterocapitalistas. Para a análise das oficinas, selecionamos trechos de falas que evidenciassem as temáticas de nosso estudo.

Todas as oficinas foram iniciadas com vídeos (entre 10 e 15 minutos) relacionados aos temas propostos, seguidos de atividades temáticas e debate coletivo. Durante a primeira oficina, foi produzido um mapa afetivo (SILVA; BOMFIM; COSTA, 2019), utilizado como dispositivo na tentativa de identificar e compreender os significados construídos pelos e pelas jovens sobre suas relações com a cidade. Na segunda oficina, os/as jovens construíram a história fictícia de uma jovem mulher que precisava circular pela cidade, tendo como referência o mapa afetivo anteriormente produzido. Na última oficina, os/as participantes produziram uma pintura em tela com a representação de como a cidade poderia/deveria ser. Cada oficina teve a duração média de duas horas e ocorreu com intervalo de uma semana. Todas as sessões foram gravadas e posteriormente transcritas.

Durante a segunda etapa da pesquisa, foram realizadas entrevistas semiestruturadas apenas com as jovens mulheres com o objetivo de aprofundar os significados sobre a vida na cidade e aspectos relativos à temática do direito à cidade. A organização e análise de todo o material produzido visou favorecer uma discussão comprometida com a perspectiva interseccional, destacando o agravamento das dificuldades existenciais conforme à condição juvenil sobrepunha-se marcadores de raça, classe, gênero e território.

Entendemos a interseccionalidade como uma poderosa lente analítica articulada com o que bell hooks1 (2018, p. 165) denomina de feminismo visionário radical que “incentiva a todos nós a ter coragem de avaliar a vida do ponto de vista de gênero, raça e classe, para que possamos compreender precisamente nossa posição dentro do patriarcado de supremacia branca imperialista”. Nesses termos, daremos destaque às falas das jovens mulheres negras periféricas de nosso estudo, tendo em vista outro aspecto apontado pela autora supracitada, que é a deficiência destas em protagonizar um debate central, pois, na luta feminista, ainda estão em desvantagem com relação às mulheres brancas e, na luta antirracista, os homens negros figuram em maior evidência.

No que corresponde ao perfil das jovens mulheres, todas se declararam negras, eram estudantes do ensino superior e moravam em bairros periféricos da cidade do Recife. Duas delas, Ana e Júlia, possuíam renda familiar que girava em torno de um a dois salários mínimos, enquanto a terceira participante, Bruna, possuía renda familiar de três a cinco salários mínimos.

Na sessão seguinte, analisaremos os desafios impostos à circulação das jovens mulheres na cidade do Recife, ressaltando modalidades de discriminação interseccional em relação aos privilégios dos/das que gozam de estatutos normativos (SOUSA; NUNES; BARROS, 2020) e usufruem do direito à cidade.

1 – O nome bell hooks foi inspirado na bisavó materna da autora, que se chamava Bell Blair Hooks. A letra minúscula expressa o posicionamento político de dar enfoque ao conteúdo da sua escrita e não à sua pessoa
Jaileila Araújo Menezes jaileila.santos@ufpe.br

Docente vinculada ao Departamento de Psicologia e Orientações Educacionais e ao Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Brasil. Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Poder, Cultura e Práticas Coletivas (GEPCOL/UFPE).

Débora Carla Pereira Calado debora.estudante@gmail.com

Graduanda do Curso de Psicologia na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Brasil, bolsista de iniciação científica financiada pela Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco (FACEPE). Pesquisadora vinculada ao Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Poder, Cultura e Práticas Coletivas (GEPCOL/UFPE).

Juliana Catarine Barbosa Silva jucatarine@gmail.com

Professora adjunta do Curso de Psicologia da Universidade de Pernambuco (UFPE), Brasil. Doutora em Psicologia pela UFPE. Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Poder, Cultura e Práticas Coletivas (GEPCOL/UFPE).