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Infância e ditadura: as marcas de uma experiência de controle e disciplinamento

Entrevista de Alejandra Estevez com Valeria Llobet

Alejandra Estevez – Em primeiro lugar, gostaria de agradecer à revista pelo convite que fizeram a nós duas. Gostei muito de conhecer sua obra e seu trabalho. Gostaria que você pudesse falar um pouco sobre sua formação e como tem chegado nesse tema da infância na ditadura. Começou exatamente nesse foco, ou com um interesse mais geral pela temática contemporânea e depois se confrontou com o tema da ditadura?

Valeria Llobet – Eu comecei minha trajetória em temas da infância muito cedo na minha formação na graduação, e esses questionamentos foram me direcionando para o tema das desigualdades na contemporaneidade. Foquei-me, sobretudo em crianças em situação de rua. Meus primeiros interesses foram em torno das desigualdades na infância e sua expressão na situação das crianças na rua. Abordei isso a partir da perspectiva que as crianças geravam sobre sua experiência, primeiro, a partir do trabalho infantil como uma categoria que as próprias crianças utilizavam para recuperar sua experiência de uma maneira menos estigmatizada: o fato de estar na rua como um trabalho. Esses foram, de fato, trabalhos durante minha graduação. Sou formada em psicologia e minha tese começou muito próxima das preocupações mais tradicionais da Psicologia, vinha do lado da saúde pública, da psicologia preventiva, da epidemiologia, e então me perguntava, nesse momento, se a perspectiva de direitos da criança era uma perspectiva que transformava as instituições em um arranjo mais “saudável” para as crianças. Esses questionamentos vinham vinculados à ideia dos direitos como uma ferramenta de emancipação, que também tem uma relação com a saúde mental. Num certo momento, o movimento de saúde mental e antimanicomial, tanto no Brasil como na Argentina, vinculou-se à luta pelos direitos humanos. Essas eram lutas que também estavam envolvidas com a recuperação democrática e com a ideia de que os direitos dos pacientes psiquiátricos, os direitos das pessoas encarceradas, das pessoas em instituições totais, também estão dialogando com uma busca de maior autonomia, de emancipação e de menos submissão, ou a transformação da submissão em emancipação. Minha tese de doutorado se transformou na direção de pensar os temas a partir de um ponto de vista social, e a própria tese teve uma inquietude vinculada às transformações históricas, os problemas do mundo contemporâneo. Cheguei à ditadura como um tema específico só recentemente, nos últimos cinco anos.

Alejandra Estevez – Então, a partir de seus estudos com crianças na rua, existe um olhar mais contemporâneo onde há uma maior aproximação com as discussões dos direitos humanos de maneira mais geral, que passam pela ditadura na Argentina de forma muito forte. Quais são os resultados deste novo foco? É um projeto de pesquisa que tem proposto tratar especificamente da ditadura?

Valeria Llobet – A vinculação com o tema da ditadura é tanto teórica quanto política, a partir da discussão mais geral de direitos humanos. Na Argentina, quem, assim como eu, estuda o tema da infância e dos direitos, não pode deixar de considerar algumas manifestações de certas organizações que lutam pelos direitos humanos, particularmente o grupo “Avós da Praça de Maio”1. Então, todo tema das políticas para a infância tem uma vinculação mais ou menos direta com a ditadura. Mas, além da posição por parte desses organismos de direitos humanos, a coincidência histórica da recuperação democrática e a discussão sobre os direitos das crianças em nível mundial, há também uma questão biográfica: eu fui criança durante a ditadura, tenho uma vinculação pessoal com o tema, dado que foi uma marca biográfica importante para mim. De alguma maneira, as discussões dos últimos anos em relação a esse tema sofreram uma estagnação com uma espécie de recuperação do discurso mais de direita. Um discurso que busca silenciar o passado, uma espécie de posição pública cada vez mais legitimada que diz que “já está bom, já não é necessário seguir discutindo a ditadura”. Tudo isso justamente no momento em que se começava a perceber o compromisso da população civil e em particular de alguns grandes empresários. Bom, isso criou um contexto de relevância para relançar uma pergunta sobre a ditadura como o cotidiano, a ditadura como o comum, e pensar a infância a partir daí.

Alejandra Estevez – Geralmente, a historiografia sobre a ditadura focou justamente os grupos organizados, e você vem e coloca o foco no cotidiano, na infância, no que tem de mais simples, de filhos de pais que não necessariamente estavam envolvidos com a ditadura e nos ajudando a perceber como era essa sociedade na sua forma mais crua. Gostaria que pudesse contar melhor como era ser criança na ditadura na Argentina, o que tem sido descoberto neste percurso investigativo.

Valeria Llobet – A verdade é que, como sempre, o olhar sobre a trajetória biográfica e sobre o lugar da infância nessa trajetória biográfica sempre tem um lado relativamente melancólico que temos que tentar evitar, duvidar ou analisar, não é verdade? Nesse sentido, o que eu tenho colhido é como nós que hoje somos adultos vemos essa infância e como a reconstruímos. A memória biográfica ou a narrativa biográfica é sempre uma narrativa a posteriori, mas, ao mesmo tempo, é uma narrativa que nos permite olhar algumas das marcas mais significativas. A ideia das marcas da experiência como aqueles momentos em que um conjunto de questões teve lugar e de alguma maneira marcou a pessoa. Eu acredito que essas marcas estão em duas coisas: por um lado, o que é construído a posteriori, como uma narrativa que vem a fazer sentido a partir do tempo presente, mas também são marcas de uma experiência que foi significativa para a criança. Com essa consideração, por um lado, o que encontro é um descobrimento adiantado da presença da ditadura. Quero dizer, meninos e meninas, todos em algum momento – inclusive crianças que eram muito pequenas – se deram conta que havia algo nebuloso, uma ditadura. Essas crianças de alguma forma percebiam que havia uma ordem que gerava algo vinculado com o terror, com a mentira, ou com a dupla moral, com uma dobra da realidade.

E isso, no meu ponto de vista, é muito importante porque, por um lado, marca a impossibilidade ou mostra como infrutífera a ideia da inocência ignorante criada pelos adultos e, por outro, permite entender não somente a extensão da ordem ditatorial, senão precisamente sua sintonia com dimensões da vida cotidiana. Isto é, o fato de certas formas de construção das relações sociais, em particular de gênero e idade, nesse momento histórico, ainda terem muita sintonia autoritária com a ordem que pretendia reinstaurar a ditadura.

Quero dizer que não somente a ditadura estendia seus tentáculos na direção da ordem do privado em certos lugares, por exemplo, no interior do país, parece que há uma ordem do privado sustentada em relações de gênero e de idade particularmente autoritárias. Essas desigualdades estavam vinculadas a certos aspectos do conservadorismo moral que talvez nos centros urbanos tenham sido postos mais em questão, isto é, certas ordens de relação social que “sintonizavam bem” com o que a ditadura queria impor para a vida cotidiana. Esse conjunto de questões é também visualizado quando nos colocamos no nível do que as crianças viam naquele momento.

E, para mim, a outra questão é como meninos e meninas construíam a possibilidade de acessar o conhecimento social e político do momento “nas costas” dos adultos. Tendemos a aceitar assim, que a família é uma instituição socializadora na qual os adultos e as crianças interagem na socialização, e o que eu encontro também é um espaço no qual as crianças constroem, mais à frente, narrativas ocultas e espaços de ação ocultos, e que neles não somente valorizam a cultura de pares, mas também a ação individual da criança, o que ganha um espaço de compreensão da realidade. Também mostra uma forma de sociedade que, diferentemente da nossa, não estava olhando tanto para as crianças. Davam-lhe muito menos proteção, por um lado, mas, ao mesmo tempo, muito mais espaços de liberdade, contraditoriamente, porque também é um regime, um modo de organização no qual, quando as crianças entram no espectro de visibilidade dos adultos, a relação é muito mais autoritária e mais rígida que a de hoje.

Alejandra Estevez – Você fala dessas técnicas de controle, do disciplinamento e também de educação, o que eles deveriam ser, o que pensavam. Como vê as diferenças em termos de controle do Estado e das instituições de maneira geral, inclusive a família? Como era a diferença, em termos de tratamento, da estrutura estatal autoritária em relação às crianças em oposição aos adultos? Quais as similitudes e diferenças entre essas duas culturas?

Valeria Llobet – O Estado ditatorial tinha mais critérios que o etário. Isto é, um primeiro critério substantivo me parece que era, antes de “adultos” ou “crianças”, “terroristas a serem exterminados” versus “cidadãos aceitáveis”. Entre os terroristas a serem exterminados, existia um subgrupo que era o dos “terroristas a serem reeducados”. Houve um projeto de reeducação na “Escuela de Mecánica de la Armada” desenvolvido por alguns dos dirigentes da ditadura, no qual também se procurava a reeducação dos adultos como forma de mostrar o projeto sociocultural da ditadura como um projeto bem sucedido.

Dentro dessa ideia da reeducação ou da normalização de certos sujeitos, as crianças de famílias de “terroristas” – digo obviamente “terroristas” entre aspas, pois é o discurso da ditadura – eram implantadas ou transplantadas para famílias apropriadas, que eram as famílias apropriadoras e, nesse sentido, as crianças eram consideradas também como população reeducável. Essas crianças eram filhas de terroristas que precisavam ser reeducadas. Nesse ponto, a ditadura argentina é diferente da ditadura brasileira, por exemplo, porque, até onde eu sei, não sei se é exatamente assim, no caso do Brasil predominava o caráter mais racializado e, nesse sentido, mais do que se apropriar dos filhos dos militantes populares, a ditadura no Brasil tendia a exterminá-los. No caso argentino, como é bem sabido, houve apropriação das crianças das famílias dos militantes sociais, que foram entregues às famílias vinculadas aos militares.

Nesse sentido é que eu dizia que a política da ditadura fazia primar os critérios de “terrorista” versus “cidadão”, antes do critério “adulto/criança”. Porém, dentro do esquema das diferenças de tratamento das crianças e dos adultos, a ditadura, para as famílias “normais” – “normais” também entre aspas –, trazia uma ideia de responsabilidade dos pais pelo comportamento dos filhos. Responsabilidade extrema que tinha a ver com o controle da literatura a qual as crianças tinham acesso, do controle das amizades, do controle do que fora dito pelos professores na escola. A ditadura tinha uma política de comunicação que implicava que mães e pais deviam estar atentos ao que os professores dissessem para os seus filhos, os livros que os professores entregassem etc. Havia uma interpelação direta às mães e aos pais para que usassem de controle sobre tudo o que acontecia com seus filhos. Controle que não necessariamente era exercido, mas que, por exemplo, no nível da escola, funcionava como autocensura. Havia, de qualquer maneira, professores e professoras que se desviavam desse controle, e mães e pais que talvez exercessem esse controle, mas, aparentemente, no que eu posso ver, a maioria não exercia esse controle tão extremo que lhes era requerido pela ditadura.

1 – Essa é uma organização em que as avós de crianças sequestradas e desaparecidas no período da ditadura lutam por esclarecimentos e justiça.
Valeria Llobet valeria.s.llobet@gmail.com
Doutora em Psicologia pela Universidad de Buenos Aires, Argentina. Professora da Universidad Nacional de San Martin. Pesquisadora do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET). Co-diretora do Centro de Estudios sobre Desigualdades, Sujetos e Instituciones.
Alejandra Estevez alestevez83@gmail.com
Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil. Professora da Universidade Federal Fluminense. Investigadora da Subcomissão da Verdade na Democracia. Membro do Observatório de Direitos Humanos do Sul Fluminense.