Foto: Rogelio Marcial

“Foi o Estado”: O caso dos jovens desaparecidos de Ayotzinapa e a crise política no México

“[…] ante o desastre do país,
o vazio das autoridades e onde
o crime organizado se confunde com
os políticos, só nos resta refundar
o Estado.”

Francisco Toledo (artista plástico mexicano)

Os fatos

Durante a tarde de sexta-feira, 26 de setembro de 2014, um grupo de 46 estudantes da Escola Normal Rural Raúl Isidro Burgos, no povoado de Ayotzinapa, no estado mexicano de Guerrero, partia de ônibus dessa localidade em direção à cidade de Iguala. Iam para a Cidade do México para participar da passeata comemorativa do dia 2 de outubro de 1968, quando o Exército mexicano disparou contra milhares de estudantes em Tlatelolco por ordem do então presidente Gustavo Díaz Ordaz (do Partido Revolucionário Institucional, PRI). No caminho, estes 46 jovens (todos do sexo masculino) parariam em Iguala para “arrecadar dinheiro” (“passar o pires”) e cobrir, assim, os gastos de viagem. Eles aproveitariam um comício, que se realizava na praça central de Iguala, no qual, a então Titular do DIF1 municipal, María de los Ángeles Pineda Villa, iria entregar seu relatório anual, seriam celebrados os avanços desta seção e convidadas as pessoas a apoiarem a possibilidade de que Ángeles Pineda fosse lançada como candidata do PRD (Partido da Revolução Democrática) à prefeitura de Iguala, cargo ocupado naquele momento por seu esposo, José Luis Abarca Velázquez, também pelo PRD. A intenção dos jovens era, além de “arrecadar dinheiro”, sabotar os festejos oficiais do casal no poder, que tinha mantido na prefeitura uma política de cortes de orçamento e de liberdades na escola rural onde estudavam. A chegada dos estudantes a Iguala chegou aos ouvidos de Abarca, que ordenou a Felipe Flores Velázquez, então chefe de Segurança Pública de Iguala e hoje fugitivo, interceptar o veículo e evitar assim a pretendida intromissão dos jovens no ato oficial da sua esposa.

Sem que estejam claros os motivos e os detalhes, a polícia de Iguala fez um cerco na estrada que dá entrada à cidade e, sem cerimônia, abriu fogo contra o ônibus dos estudantes. Ali dois deles caíram mortos e um ficou gravemente ferido. Além disso, as balas atingiram outras três pessoas (chamadas pelo governo de “vítimas colaterais”), tirando-lhes a vida. Ante estes acontecimentos, e com a chegada de professores ao lugar para auxiliar os alunos, foi solicitado o apoio do Exército dessa zona para proteger os estudantes e transferir o ferido para um hospital. A resposta foi ignorá-los e abandoná-los à própria sorte (ver La Jornada, 2015a). Os demais estudantes tentaram fugir no ônibus. Foram perseguidos e, em outra localidade, houve outro tiroteio, já na madrugada do sábado, 27 de setembro. A polícia se confundiu e disparou em um outro ônibus, que transportava a equipe de futebol da terceira divisão (semiprofissional) dos Avispones de Chilpancingo (Guerrero), matando um dos seus integrantes e ferindo outros (mais “vítimas colaterais”). No total, em ambos os tiroteios, foram seis mortos (três deles estudantes de Ayotzinapa) e cinco feridos graves, além de 43 estudantes desaparecidos. Quando finalmente o ônibus dos estudantes foi detido pelos policiais, aos quais se somaram policiais de Cocula (município vizinho a Iguala), os 43 jovens foram trasladados e entregues a membros do Cartel Guerreros Unidos por ordem de Felipe Flores. Sabe-se hoje que os policiais de Iguala e Cocula que participaram do episódio supuseram que os estudantes eram membros do Cartel de Los Rojos, inimigos ferrenhos de Guerreros Unidos. Encabeçados por El Cepillo (Felipe Rodríguez Salgado), membros de Guerreros Unidos executaram os estudantes e calcinaram os corpos para não deixarem provas (La Jornada, 2015e). El Cepillo confessou que, também acreditando que os estudantes faziam parte de Los Rojos, interrogou-os e percebeu que eram só alunos da Normal Rural. Mas ele afirmou que recebeu a maioria dos estudantes já mortos e que executou os que restavam com vida.

“O sujeito [“El Cepillo”] detalhou que em 26 de setembro ele e outros comparsas receberam a ordem de abordar uns veículos para ajudar o pessoal de Gildardo López, aliás “El Cabo Gil”, lugar-tenente do líder de Guerreros Unidos, Sidronio Casarrubias. No lugar conhecido como Loma de Coyotes esperavam por ele “El Cabo Gil” e os comandos das polícias municipais de Iguala e Cocula em cinco patrulhas e uma caminhonete branca com gaiola boiadeira de três toneladas, onde estava detido um grupo de jovens. Segundo declarações, eles puseram os estudantes neste veículo e os levaram para o lixão de Cocula. Cerca de 25 já estavam mortos por asfixia e restavam uns 15 vivos, que foram mortos a tiros e calcinados para depois eles voltarem para Iguala. Os restos calcinados foram colocados em sacolas pretas de plástico que depois foram lançadas no rio San Juan de Cocula” (Sin Embargo, 2015).

A notícia destes lamentáveis acontecimentos logo se espalhou pelo território nacional para posteriormente circular nos meios internacionais. Os pais dos estudantes desaparecidos se organizaram e, com o apoio da sociedade civil, exigiram a entrega deles sob o lema “¡foram levados vivos, vivos os queremos!”. O governo federal, através da PGR (Procuradoria Geral da República), pegou o caso tardiamente (quase uma semana depois dos acontecimentos) e se iniciou uma busca exaustiva dos estudantes pela zona. Foram detectadas várias fossas clandestinas com corpos mutilados e/ou calcinados nos arredores de Iguala, mas sem confirmar que eram dos estudantes. O governo de Enrique Peña Nieto enfatizou que não deixariam de procurá-los até encontrarem provas contundentes do seu paradeiro, vivos ou mortos. Mas não pôde explicar a razão de tantos corpos encontrados em fossas clandestinas, deixando transparecer com isso a terrível situação que se vive em Guerrero devido à presença de cartéis do crime organizado, estritamente associados às autoridades estatais e municipais.

1 – O sistema DIF (Desenvolvimento Integral da Família) do governo mexicano é encarregado da atenção, por meio de políticas públicas, do bem-estar das famílias e centra os seus esforços nas crianças. Tem representação nos três níveis de governo (nacional, provincial e municipal) e uma nociva tradição de funcionamento, desde a sua fundação, que indica as esposas dos funcionários na ativa como titulares “de fachada” (só de figuração), pois também se nomeia um(a) presidente operativo(a). Assim, a esposa do Presidente da República em exercício é a titular do DIF nacional, a do Governador é a titular do DIF estatal (de cada província do país) e a esposa do Prefeito é a titular do DIF municipal.

Rogelio Marcial rmarcial@coljal.edu.mx

Professor e pesquisador do Colégio de Jalisco e do Departamento de Comunicação Social, Centro Universitário de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Guadalajara (México).