Neste texto, tenho como objetivo problematizar algumas questões que formam um conjunto de fios temáticos: AIDS, infâncias, juventudes, casas de apoio, famílias. Assuntos que interagem como fios que se entrelaçam quando vivemos os desafios de uma epidemia como a AIDS.
Retomo algumas ideias sobre AIDS, infância e juventude1, que já apresentei noutras oportunidades (Cruz, 2005; Cruz, 2007) e que são relevantes para a compreensão do debate que aqui desenvolvo. Posteriormente, apresento comentários sobre alguns dos resultados de uma pesquisa que realizei sobre institucionalização e desinstitucionalização de crianças e jovens com AIDS2.
A AIDS confere um enquadre específico para os temas que aqui menciono. Contudo, cabe lembrar que tais temas também têm suas esquadrias, ou seja, falamos de um entrelaçamento de temas, que são conceitos produzidos, inventados nos emaranhados de ‘saberes e relações de poder’, produzindo aquilo que podemos pensar como a ‘verdade’ do que sabemos e conhecemos.
Foucault (2004) utiliza o conceito de “regimes de verdade” para mostrar que a verdade não é algo dado, que existe por si só e está ali para ser revelada. Para o autor, a verdade é algo produzido a partir de relações de saber e poder.
Ao abordar as temáticas deste texto, deixo o convite para (re)pensar os conceitos que usamos, os referenciais que nos sustentam quando decidimos abordá-las no âmbito teórico-prático. Especialmente, o convite para não naturalizar o que sabemos e vemos, mas sim para nos colocarmos sempre sob rasura. Pensar em nossos saberes como provisórios desestabiliza um lugar de saber-poder, que, às vezes, nos sustenta. Por outro lado, pode nos ajudar a construir as respostas que buscamos e que nem sempre encontramos quando nos agarramos às certezas que já temos.
Neste sentido, fundamental para quem trabalha nesta área é se perguntar: quais as minhas concepções de AIDS, infância, juventude, família, instituição? Como sei o que sei? Possivelmente, tais respostas passarão por experiências pessoais e familiares, experiências profissionais e/ou por um repertório teórico fundamentado em algumas áreas de conhecimento, como a psicologia, pediatria, medicina, pedagogia, direito etc.
Nos diferentes saberes, teorias são construídas para explicar quem são crianças, adolescentes, jovens e famílias. A ‘verdade’ sobre pessoas e fenômenos é produzida, socializada, reverberada, chancelada.
No caso das crianças, por exemplo, a maioria dos profissionais tenderá a descrever estágios de desenvolvimento (corporal, cognitivo, afetivo, social). Não se trata de dizer que tais estágios não existem, mas sim de localizar qual a condição de produção da existência deste discurso sobre a criança e como ele impacta nossas concepções e ações. Teorias pressupõem a universalização. Todas as crianças passarão pelos estágios de desenvolvimento 1, 2, 3 e poderão ser explicadas pelas teorias x, y ou z. Será? Como tais teorias foram produzidas? Em que tempo histórico, com que relações de saber-poder? Este debate também se estende à discussão sobre adolescência, juventude, velhice. Por que a fixidez de categorias que definem quem se é, o que se pode (ou não) ser em cada faixa etária?
O pensamento foucaultiano, aliado aos estudos culturais e ao pós-estruturalismo, nos ajuda a colocar aquilo que tomamos como verdade no lugar de discursos produzidos sobre aquilo que examinamos, e a perceber que as teorias não somente descrevem sujeitos, mas também os produzem – e os governam.
Esta perspectiva contribui ainda para que percebamos que nós próprios fazemos parte deste processo discursivo e que naquilo que pensamos e fazemos há as marcas das discursividades que nos habitam. Cabe dizer que não há um “dentro e fora” da teia discursiva: todos estamos dentro.
Neste sentido, crianças e jovens vivendo com AIDS existem e são produzidos a partir de um conjunto de discursos e dispositivos que os produzem.
No contexto da AIDS, produzem-se, então, regimes de verdade pautados na produção de pesquisas, livros, ONGs, políticas públicas, matérias de jornais, casas de apoio, jogos, métodos de prevenção etc. Esse sujeito, “o portador”, passa a ser subjetivado por todo um conjunto de saberes – do cotidiano das pessoas vivendo com AIDS, faz parte um sofisticado vocabulário médico-científico (CD4, carga viral, genotipagem, adesão), jurídico (representação junto ao Ministério Público contra o Estado para obtenção de medicamentos, licença compulsória, patentes), social (vulnerabilidade), político (direitos humanos, ativismo etc.). Nas tessituras desse conjunto de saberes, estabelecem-se relações de poder e resistência. Por exemplo, enquanto médicos, psicólogos, governantes, pesquisadores descrevem “as pessoas portadoras de HIV/AIDS”, elas se organizam para dizer “eu portador”. O(a) portador(a) é, assim, ‘um outro’ descrito por soronegativos e um ‘eu’ descrito por soropositivos (Cruz, 2005, p.84-85).
A observação desta dimensão é que nos permite ficar sob rasura, tomar como provisório, não universal e não fixo, aquilo que podemos fazer e pensar e, mais que isto, é esta percepção que pode nos ajudar a buscar linhas de fuga, resistências diante daquilo que queremos transformar.
1 – Em trabalhos anteriores, usei o termo adolescente (ver Cruz, 2005). Há uma discussão teórica a este respeito, mas no escopo deste artigo não adentrarei neste debate. Quando falo dos jovens que viveram em instituições, estou falando de pessoas até 18 anos (adolescentes) e quando digo que, na atualidade, a epidemia aumenta entre os jovens, me refiro a pessoas até 29 anos.
2 – Direitos Humanos e a (des)institucionalização de crianças e jovens vivendo com HIV AIDS em São Paulo’, realizada no período de 2009 a 2011, com apoio da FAPESP.