Introdução
Desde a Convenção sobre os direitos da criança (CDC, 1989), mas principalmente a partir do início dos anos 2000, os organismos multilaterais de promoção de direitos humanos defendem o direito das crianças a serem educadas ‘sem nenhuma forma de violência’. Para além da categoria “maus tratos”, já integrada às legislações alinhadas com a Convenção, os países signatários são convocados a especificar em lei a proibição de um repertório mais amplo de atos designados através da categoria “castigos físicos, tratamento cruel e degradante”.1 Neste artigo, abordarei algumas ressonâncias locais desta ação transnacional, tomando como referência desdobramentos desta proposta no Brasil, no Uruguai e na França, países onde, nos últimos anos, realizei pesquisas relacionadas ao sistema de proteção à infância (Ribeiro, 2009, 2010, 2012). Os dados que apresentarei a seguir foram obtidos mediante o acompanhamento do tema nos três países através da ‘web’, uma entrevista com o educador social que esteve à frente desta discussão no Uruguai e a genealogia da construção do projeto de lei pela interdição dos castigos físicos no Brasil (Ribeiro, 2013).
Inspirada em autores que, a partir de diferentes perspectivas, tratam de projetos de lei envolvendo temas morais controversos – a parceria civil entre pessoas do mesmo sexo, a criminalização da homofobia, a criminalização e descriminalização do aborto e da eutanásia (Duarte et al., 2009) ou a proposta conhecida como parto anônimo (Fonseca, 2009) – tomo a intenção desta lei em sua dimensão produtiva. Ou seja, na sua capacidade de jogar luz sobre posições de poder e de provocar crítica cultural. A ênfase nestes dois aspectos apoia-se numa perspectiva analítica interessada nos desdobramentos e efeitos particulares de políticas globalizadas fundadas na noção universalista de direitos humanos das crianças (Fonseca, Cardarello, 1999; Suremain, Bonnet, 2014). Nesta perspectiva, os direitos humanos, entendidos como um discurso, são inseparáveis das relações de poder que configuram hierarquias sociais, bem como dos processos de mudanças de sensibilidades culturais. Quanto a este tema específico da proibição universal de castigos físicos, a abordagem aqui proposta difere dos esforços empreendidos por autores cujos estudos, também situados nas ciências sociais (Delanoé, 2015; Barrágan Rosas, 2015), discutem o conteúdo desta categoria, assim como os fundamentos e os modos de erradicação das práticas por ela designadas. Distante deste objetivo, limito-me a situar este debate no longo processo de mudança nas sensibilidades relativas ao tratamento das crianças (Fassin, Bourdelais, 2005; Vigarello, 1998, 2005), no qual é possível observar um progressivo alargamento do campo semântico da noção de “violência contra a criança” como categoria de designação de violação de direitos (Schulteis et al., 2007). No entanto, não se trata, obviamente, de um processo unívoco. Até o presente, menos de um terço (ou 48) dos países signatários da CDC seguiram a recomendação de legislar sobre castigos físicos. Diferente do Uruguai e do Brasil, a França não proibiu legalmente castigos corporais. Por esta razão, em março de 2015, o país foi advertido pelo Conselho da Europa, que entende que a legislação francesa não prevê a interdição dos castigos corporais de forma clara, constrangedora e precisa.