Resenha por Michele Castro Caldeira
Mapear para conhecer e (re)pensar: a produção acadêmica sobre as juventudes rurais no Brasil
Mapear a produção acadêmica sobre determinada temática é um dos passos iniciais no processo reflexivo de construção de saberes, seja qual for a área de conhecimento. Essa foi a proposta das autoras Ana Flávia de Sales Costa e Maria Ignez Costa Moreira ao produzirem o livro Juventudes Rurais no Brasil: um estado da arte (2006-2016), no qual dedicaram-se à análise de publicações científicas sobre a temática das juventudes rurais, entre os anos de 2006 e 2016. Uma obra que se propõe a contribuir com outros pesquisadores que se interessam pela temática e que nela encontram um panorama substantivo que se propõe a funcionar como um bom ponto de partida, identificando-se com os trabalhos de Weisheimer (2005); Castro e outros (2009); Sposito (2009) e Stengel e Dayrell (2014).
As autoras apresentam no livro os resultados desse levantamento realizado a partir das publicações disponíveis na rede mundial de computadores, ou seja, na internet. Foram incluídos nesse mapeamento teses, dissertações e artigos científicos, identificados a partir dos descritores “juventude” e “jovem/jovens”, palavras às quais foram associados os termos “rural”, “camponesa”, “agrícola”, “sertaneja”, “assentada” e “quilombola”. As autoras justificam a escolha dessas publicações em específico pelo fato de que por meio delas seria possível conhecer tanto o volume quanto a atualização das pesquisas acadêmicas sobre a temática escolhida, sendo essas registradas e divulgadas por meio de produções avaliadas pelos pares.
O leitor observará que o livro foi organizado da seguinte forma: um prefácio, escrito pela Profa. Sônia Margarida Gomes de Sousa, pesquisadora da área da infância, adolescência e juventudes, filiada Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Brasil, três capítulos – Capítulo 1: Juventudes Rurais, Quilombolas, Camponesas, Sertanejas, Assentadas, Agrícolas; Capítulo 2: O cenário das produções sobre juventudes rurais, realizadas entre os anos de 2006 a 2016; Capítulo 3: Aproximando a Lupa – As Terminologias utilizadas, as estratégias metodológicas e os eixos temáticos; Pósfácio de autoria da Profa. Maria Ignez Costa Moreira, que integra o Programa de Pós-graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Brasil. Além desses, encontram-se nos apêndices todas as referências das produções identificadas e analisadas.
É interessante dizer que as próprias autoras sinalizam que o intuito inicial do projeto era o de restringir o mapeamento às produções no campo das ciências humanas e sociais, mas que ao longo das primeiras buscas encontraram trabalhos relevantes em campos aparentemente distantes, como o das ciências agrárias. Após uma análise mais detida desse material, elas perceberam a aproximação desses trabalhos com os das áreas inicialmente pensadas, tanto em termos de abordagem teórica quanto metodológica, e optaram por incluí-los no levantamento. Diante do corpus coletado e organizado, as autoras procederam uma análise dos principais temas abordados, categorizando as publicações e tecendo sobre elas algumas considerações.
Nesse percurso analítico as autoras identificaram quatro grandes eixos temáticos, sendo eles: Eixo temático I – juventudes rurais e processos educativos; Eixo temático II – juventudes rurais e processos identitários; Eixo temático III – juventudes rurais e militância e Eixo temático IV – juventudes rurais e migração rural urbana.
De forma sintética, no Eixo temático I sobre as juventudes rurais e processos educativos foram agrupados um número considerável de produções, em que as Escolas Família Rurais e a Pedagogia da Alternância foram objetos privilegiados de estudo. Observou-se que dizem respeito a pesquisadores interessados em compreender um modelo alternativo à escolarização tradicional, que se mostre mais adequado aos modos de vida no campo. As autoras identificaram uma certa unanimidade na afirmação de que tais práticas e metodologias de ensino são tomadas como estratégias que visam favorecer a permanência dos jovens no meio rural. Nesse grupo também se encontram pesquisas cujo interesse repousa na avaliação sobre o processo de importação de programas e práticas de escolarização do meio urbano para o rural, em que a falta de adaptação à realidade específica do campo acaba por trazer resultados negativos.
Já o segundo eixo temático agrupou estudos em torno das juventudes rurais e processos identitários. A construção da identidade das juventudes que vivem em comunidade com características remanescentes de quilombos traz as marcas da preservação e transmissão dos valores culturais, construídos por meio dos seus antepassados, especialmente no âmbito religioso. Os festejos populares configuram-se como catalizadores na promoção de uma identidade cultural, gerando um processo educativo que se dá na informalidade, bem como o sentimento de pertencimento coletivo. As festas religiosas, as danças, o congado e outras, são canais para o fortalecimento da identidade étnica e do sentimento de pertença. As lutas por reconhecimento foram associadas à construção de uma identidade cultural e de projetos coletivos, ligados às questões da representação política e do direito ao território. Além dessas temáticas as pesquisas ainda abordam os sentimentos ambivalentes vividos pelos jovens que, ao mesmo tempo em que desejam preservar seus traços culturais e identitários, da mesma forma querem se aproximar e compartilhar das experiências dos jovens que vivem nos contextos urbanos, como, por exemplo, o acesso às tecnologias digitais.
No terceiro eixo temático sobre as juventudes rurais e a militância é possível perceber que a formação política é construída na vivência prática de inserção dos jovens nos movimentos sociais e coletivos, como, por exemplo, naqueles que defendem a posse da terra. Além disso, nessa categoria incluem-se pesquisas sobre as relações de desigualdade e preconceito, no âmbito dos movimentos sociais, especialmente no que se refere às relações intergeracionais e de gênero, o que revela a existência de contradições internas.
Por fim, no quarto eixo temático sobre juventudes rurais e migração rural urbana, as autoras reuniram pesquisas que tratam dos processos migratórios dos jovens rurais. A problemática das migrações é transversal a todas as demais, uma vez que a preocupação com a saída dos jovens do meio rural é um ponto de tensionamento marcante nas discussões sobre a educação do campo, sobre os processos identitários e sobre a militância e a transmissão dos legados culturais.
Em consonância com a classificação nesses quatro eixos temáticos levantados, as autoras argumentam que, considerando o conjunto da produção acadêmica brasileira, ainda são poucas as pesquisas que conjugam a juventude e o contexto rural, embora o volume de trabalhos tenha crescido na última década. Em relação aos estudos levantados, elas destacam que há entre eles um denominador comum: o fato de privilegiarem o protagonismo juvenil, pois, em 80% das publicações (teses, dissertações e artigos) os pesquisadores ouviram diretamente o(a) jovem. Para as autoras esse é um importante indicador, pois explicita o posicionamento dos estudiosos que privilegia a pesquisa com os jovens e não sobre os jovens, afirmando, portanto, o lugar de fala dos mesmos.
Nesse sentido, pode-se dizer que o material encontrado nesse projeto trouxe elementos importantes para a reflexão dos pesquisadores interessados pelos jovens que vivem em contextos considerados não urbanos. As autoras revelam um estranhamento em relação à escassez de trabalhos no âmbito da Psicologia, observação esta que deriva da própria formação e localização institucional das mesmas: um Programa de Pós-graduação em Psicologia. Nesse sentido, elas chamam a atenção para os riscos dessa aparente prevalência do olhar da área para os jovens em contextos urbanos, riscos esses que envolvem tomá-los – os jovens urbanos – como modelo único de juventude, quando é preciso considerar que a juventude não se apresenta no singular, mas no plural.
A partir desse levantamento as autoras seguem argumentando que compreender os jovens e as jovens habitantes das comunidades rurais brasileiras como sujeitos históricos, políticos e cidadãos e cidadãs portadores e portadoras de direitos é condição necessária para construir com eles e elas espaços de participação e organização da vida comunitária no campo, nos quilombos, enfim, no espaço rural. Elas pontuam sobre a necessidade de considerar os jovens como agentes sociais que vivem em relações historicamente situadas, portanto, como (re)produtores de símbolos, sentidos, significados e práticas constituintes e constituídas no mundo social.
Nesse sentido, trata-se de um trabalho que se soma aos esforços dos estudiosos/as e pesquisadores/as brasileiros/as que vêm buscando investigar a juventude em suas diversas configurações e significados. Especificamente sobre esse espaço de fala, para além de uma resenha o que se realiza aqui é um convite à leitura da obra, assim como à produção e sistematização de novos estudos sobre a temática de modo a ampliar, cada vez mais, o conhecimento envolvendo esses jovens e seus territórios.
Referências Bibliográficas
CASTRO, E. G. de et al. Os jovens estão indo embora? Juventude rural e a construção de um ator político. Rio de Janeiro: Mauad X; Seropédica, RJ: EDUR, 2009.
COSTA, A. F. de; MOREIRA, M. I. Juventudes Rurais no Brasil: um estado da arte (2006-2016). Curitiba: CRV, 2018.
SPOSITO, M. P. (Org.). O Estado da Arte sobre juventude na pós-graduação brasileira: educação, ciências sociais e serviço social (1999-2006). v. 1. Belo Horizonte: Argymentvm, 2009.
STENGEL, M.; DAYRELL, J. Estado da Arte da Produção Discente de Pós-graduação em Psicologia sobre Adolescência e Juventude. Belo Horizonte, 2014. Disponível em:
WEISHEIMER, N. Juventudes Rurais: mapas dos estudos recentes. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Agrário, 2005.
Palavras-chave: juventudes rurais, juventudes quilombolas, juventudes camponesas, juventudes agrícolas, juventudes sertanejas.
Data de recebimento: 13/02/2019
Data de aprovação: 09/03/2019