Resenha de Victor Alexander Huerta-Mercado Tenorio
Consumindo status
A história recente do Peru é a de um país que passou de uma ditadura de cunho socialista para uma democracia ameaçada pela violência política continuada e pela crise econômica permanente. No entanto, um processo rápido e doloroso de neoliberalismo na economia gerou durante as últimas duas décadas um processo de adaptação, cujo resultado pode ser vislumbrado na atual geração de jovens que vivem em áreas urbanas do país.
A maioria dos estudos sociais nos últimos anos tem-se centrado na pobreza econômica e nos laços econômicos que as sociedades têm desenvolvido, assim como na memória coletiva, especialmente nos anos de violência. Os jovens têm sido vistos como vítimas, como problemas ou como parte de uma estatística.
Francesca Ucelli e Mariel García Llorens nos apresentam em “Solo zapatillas de marca: Jóvenes limeños y los límites de la inclusión en el mercado”, uma análise nova e urgentemente necessária sobre os jovens, suas mentalidades, percepções e, especialmente, os paradoxos da suposta inclusão social que o país viveu em sua história recente.
Três possíveis leituras podem ser feitas a partir do livro. A primeira é uma revisão crítica da literatura relativa à juventude. Inicialmente, as autoras se voltam para uma perspectiva antropológica, na qual a definição da juventude é determinada pelo contexto cultural e, em seguida, circunscrevem a primeira década do século XXI, em Lima. Nesta linha de análise, encontramos os desafios da publicação e sua contextualização. Os jovens informantes pertencem a uma geração que não viveu diretamente os processos dramáticos que seus pais viveram, também não experimentaram a inflação e a falta de produtos básicos que marcaram a segunda metade do século XX peruano.
Parece que os entrevistados pertencem à tão mencionada geração milenar, mas as autoras, longe de julgá-los e rotulá-los, indagam as perspectivas que os levam a atitudes que formam uma matriz social. Aqui está a maior contribuição do livro. Impressiona o rigor quantitativo do trabalho em torno às subjetividades. Se é verdade que não podemos falar de um único grupo com as mesmas características, podemos encontrar semelhanças na forma como os jovens compartilham imaginários. Aqui encontramos uma das contribuições importantes do texto: trazer à tona o consumo e a dimensão subjetiva do mesmo.
A segunda leitura que pode ser feita do livro é sobre a história de vida e o testemunho pessoal dos jovens entrevistados, que permitem nos aproximar de sua maneira de ver o mundo. Aqui encontramos a construção de um tipo de discurso que, como assinalado por Bourdieu, torna habitus o consumo de roupas de marca e de aparelhos eletrônicos. Etnografia e entrevistas em profundidade permitem aproximar-nos das novas formas de perceber a vida desses jovens.
É aqui que se constrói o discurso central do texto: o consumo de roupas de marca e aparelhos eletrônicos marca o acesso à comunidade juvenil global e à classe média. O contexto é bastante propício para que o livro nos convide a uma reflexão que possa originar novas publicações, por exemplo, em relação à cultura juvenil global associada ao consumo de produtos originais, após décadas de mercadorias falsificadas. Ao mesmo tempo, a consciência de classe – e esta é uma descoberta interessante – não coincide com os parâmetros oficiais do Estado, mas com a ilusão de um estilo de vida de classe média, que influencia a forma como os jovens estão vivendo neste momento.
O livro explora também os alcances da economia neoliberal na relação do indivíduo frente ao Estado, a partir das percepções dos jovens protagonistas. Enquanto os pais faziam parte de uma geração que exigia determinado compromisso ideológico que a levava a enfrentar o estado, a presente geração parece dividir o mundo de acordo com a relação que se tenha com a ordem estatal, como revelado no testemunho de John.
Não, porque aqui no Peru o governo não influencia muito, cada pessoa está sozinha, o governo não dá muita importância para o povo. Lá na província, o governo sim é importante, dá de comer, dá o copo de leite a essas pessoas que não têm o que comer. Mas nós já podemos nos desenvolver sozinhos. O governo vê coisas a fazer, mas cada um desenvolve-se só (Uccelli; Garcia, 2016, p. 290).
O terceiro aspecto a partir do qual o livro pode ser lido é sua interessante proposta metodológica. Estamos diante de um exercício etnográfico intenso e competente, que usou o método antropológico da descrição densa. Seguindo a premissa de Renato Rosaldo, vários pontos de vista podem ser tomados em conta, e é precisamente o que as autoras fazem, enfrentando o desafio de articular muitas vozes em grupos para formar um quadro coerente.
Trata-se de uma interessante contribuição à técnica de pesquisa que será muito útil a futuros pesquisadores de temáticas sociais envolvendo uma população heterogênea. O livro tem o apoio dos estudos de mobilidade social feitos anteriormente pelo Instituto de Estudos Peruanos, que dão uma base sólida para o estudo de caso. Oito casos são estudados em profundidade. A análise está dirigida às características das moradias, vida cotidiana e consumo, e considera a biografia de pais e pares.
As autoras seguem a proposta do sociólogo Martin Benavides para selecionar duas variáveis relacionadas, pelo menos em relação à mobilidade social: estudo e trabalho. Assim se divide a amostra: jovens que só estudam, que só trabalham, que estudam e trabalham ou não fazem uma coisa nem outra. Esses primeiros critérios de seleção da amostra servem logo para selecionar outras variáveis como mulher ou homem, dependente, não dependente, com e sem filhos. Estes critérios na seleção da amostra fazem com que se logre uma cuidadosa coleta de dados, com roteiros de entrevista incluídos nos anexos, em que se organizam os dados sobre questões centrais como o ambiente familiar e consumo.
O livro dirige-nos para o mundo da ilusão e ascensão do consumo, em uma sociedade que recente e rapidamente caiu em uma economia de mercado, em um doloroso processo de inclusão na modernidade. O desafio enfrentado pelas autoras – anunciado por elas no início do texto – é precisamente que, quando a realidade social peruana parecia encontrar-se em um bom ângulo de calma para uma fotografia panorâmica, o comportamento global do mercado nos tirou da famosa e aparente prosperidade, o que originou os testemunhos do texto. Será que vão mudar as mentes dos jovens entrevistados, agora que o poder de compra geral caiu? Estamos testemunhando um processo geracional ou um estágio específico da nova juventude?
Os livros como o aqui resenhado nos mostram que as estruturas sociais podem mudar, mas as mentalidades que as acompanham normalmente têm um processo muito mais lento de mudança.
Referências bibliográficas
UCCELLI, F.; GARCIA Llorens, M. Solo zapatillas de marca: jóvenes limeños y los límites de la inclusión desde el mercado. Lima: Instituto de Estudios Peruanos, 2016.
Palavras chave: juventude, mobilidade social, consumo, Lima, Peru.
Data de recepção: 30/11/2016
Data de aprovação: 02/12/2016