Introdução
Chego à sala de atividades do G4, formada por 4 crianças de 4 anos, duas meninas e dois meninos. Faço o sinal de bom dia para todos e vou conversar com a professora-ouvinte, explicando que, naquele dia, finalmente consegui a câmera para filmar as crianças na hora da brincadeira. Já havia estado com eles algumas poucas vezes, mas iria filmar com uma câmera, e não mais com o celular. Me posiciono para colocar a câmera em um cantinho e as crianças ficam em rebuliço, olhando e mexendo no equipamento, novidade naquele espaço. Enquanto continuo minha arrumação, as crianças começam a pegar os brinquedos e a ensaiar uma brincadeira no cantinho da sala. Luz, câmera, ação! Começo a filmar e, logo, uma das crianças vem ver o que acontece “dentro daquela coisa”. Chamo para mostrar que estou filmando os amigos e ela fica radiante pela mágica que se dá diante de seus olhos! Olha no visor da câmera e depois mete a cabeça do lado da lente, tornando a olhar o visor para ver se consegue se enxergar na filmagem. Depois, outras 2 crianças vêm fazer o mesmo gesto e ficam nesse frisson por alguns minutos, até que se interessam por outras atividades e deixam de se importar com aquela parafernália no canto da sala. A brincadeira flui e ali permaneço por um bom tempo.
Um dia, chego na hora do recreio e me aproximo do pátio. 3 crianças da turma vêm correndo em minha direção e me dão um caloroso abraço. Depois, me chamam para brincar com elas, e eu aceito. No final, vamos para a sala de mãos dadas. Acho que elas aprovaram a pesquisa.
O título desse trabalho e o relato acima nos convidam imediatamente a refletir sobre um deslocamento no modo de fazer pesquisa com crianças e, neste caso, com um desafio ainda maior, que é a pesquisa com crianças surdas. A experiência de pesquisar com crianças surdas tem me aproximado de dimensões muito novas de minha trajetória profissional. A distância que temos pela falta de uma língua comum – posto que elas ainda estão em processo de aquisição da LIBRAS, assim como eu _ e pela diferença etária nos coloca em um lugar de desigualdade. Por isso, indago: o que será que estão pensando? Quem elas acham que eu sou? O que faço no espaço delas, todas as semanas, filmando, fotografando com esses aparelhos curiosos que mostram seus fazeres e sua rotina? A pesquisa com crianças nos convoca sempre a pensar quais são as concepções que temos em relação a elas, se seus interesses estão sendo atendidos e como se inserem nessas práticas, atendendo a determinações éticas e políticas. E a pesquisa com crianças surdas que ainda não tem uma língua constituída? Tenho aprendido a cada dia a olhar com cuidado para suas expressões, gestos e movimentos e assim construir com elas meu fazer-pesquisadora.
Neste artigo, trago resultados parciais da pesquisa sobre a importância da brincadeira no desenvolvimento das crianças surdas.
Nossas hipóteses iniciais partiram das ideias de Vigotski de que a brincadeira é a atividade principal das crianças entre os 3 e 6 anos. Sabíamos que, ao oportunizarmos situações de brincadeira, encontraríamos crianças construindo situações lúdicas variadas e que poderíamos então observar suas expressões, acordos, lideranças e temas escolhidos. Depois de quatro meses de pesquisa-intervenção, pudemos constatar que o ato de brincar das crianças surdas em muito se assemelha ao das crianças ouvintes, principalmente no que se refere às escolhas temáticas, normalmente relacionadas a seus fazeres cotidianos. Disputas por liderança e tensões entre as crianças também são comuns. Entretanto, é possível ver que o planejamento do jogo simbólico, as abordagens entre elas e o encerramento das brincadeiras apresentam configurações distintas das situações comumente observadas entre crianças não surdas.
Destacamos como objetivo central deste trabalho identificar a brincadeira como expressão da infância surda, rompendo semântica e simbolicamente com a noção de infância como aquele que não tem fala – infans.
Segundo Pereira (2015), a maioria das crianças surdas são filhas de famílias ouvintes e não adquirem a língua de sinais no convívio familiar. Isso faz com que cheguem à escola sem o conhecimento de uma língua. A modalidade oral, comumente usada em famílias ouvintes, não está acessível a elas. Por isso, pensando na criança surda que chega à escola sem uma língua adquirida, e que não tem o canal oral para sua comunicação, romper com a noção de infância como aquele que não pode falar torna-se, a nosso ver, ainda mais revolucionário.