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A criança surda “falando” pela brincadeira: infância, corpo e ethos¹ surdo

A infância surda que fala através do brincar e de seu corpo

A brincadeira geralmente remete a uma atividade tipicamente infantil e, muitas vezes, sem importância, com o objetivo de entretenimento, de descarga de energia, algo “inerente” ao ser criança. E, por ser considerada como “propriedade” da criança, a brincadeira tem sido historicamente relegada a um plano inferior, de menor importância, sendo, na sociedade contemporânea, uma atividade que se opõe ao trabalho e, portanto, um espaço de manifestação dos desejos e não de produção.

A presença de tais afetos generalizados na brincadeira não significa que a criança entenda por si mesma os motivos pelos quais a brincadeira é inventada e também não quer dizer que ela o faça conscientemente. Portanto, ela brinca sem ter a consciência dos motivos da atividade da brincadeira. É isso que, essencialmente, distingue a brincadeira de outros tipos de atividade, como o trabalho (Vigotski, 2008, p. 26).

A brincadeira, principalmente a de faz-de-conta ou jogo simbólico, existe, para a criança, sem um motivo, mas pelos afetos que a impulsionam a tal atividade. Isso quer dizer que, assim como a arte não gera resultados, não há função a alcançar como acontece na lógica da produtividade, conforme se pauta a sociedade capitalista na qual vivemos. Pela lógica da produção, o que se destaca é o produto final, em detrimento dos processos que levam à finalização desse produto, importa o ponto de chegada e menos o caminho que é trilhado. O contemporâneo traz, além disso, a competitividade como algo necessário à busca de um lugar ao Sol e o mérito como característica daqueles que se dão bem e alcançam o sucesso.

Dentro dessa conjuntura, a brincadeira, a arte, a música e outras expressões humanas são relegadas a um patamar de menor destaque ou até mesmo irrelevantes. No espaço escolar, mesmo na Educação Infantil, as atividades dirigidas que se constroem a serviço de uma avaliação do desempenho e das capacidades e habilidades das crianças se sobrepõem às brincadeiras, o que, infelizmente, acaba por impossibilitar a criança de experimentar de forma mais ampla as diferentes linguagens e a ludicidade.

Huizinga (2017) trata a brincadeira como sinônimo de jogo ou jogo com regras como uma forma de expressividade humana que se distancia da vida corrente, da vida real. O ato de brincar seria uma prática humana que permite a expressão da liberdade e a evasão do real. Para o autor, o jogo ou brincadeira seria um fenômeno cultural que não estaria limitado à infância, mas que se estenderia a todos os sujeitos na sociedade, inclusive, emergindo nos rituais religiosos ou mágicos. Seria como uma realidade paralela, como se fosse criada outra realidade com regras próprias nas quais as da vida cotidiana perdessem a validade. O sujeito sabe que está “fazendo de conta” e que está criando algo que amplia as características da realidade. A imaginação cria coisas para além do que realmente são. Se quero ser bela, torno-me a princesa, se quero ser má, torno-me uma bruxa, se corajosa, transformo-me em super-herói. É como se as características estivessem no superlativo através dos recursos simbólicos utilizados. O sujeito recria suas vivências e as reelabora como forma de reconstrução cultural.

Brougère (1998, p. 22) aponta para o fato de que o brincar se constitui como uma dimensão social da atividade humana, ou seja, é necessário que sejam dadas as condições sociais e culturais para que as crianças possam aprender a brincar. A brincadeira também se constitui como uma segunda realidade, uma segunda cultura, ou, nas palavras do próprio autor, uma cultura lúdica. Brougère reforça que o ato de brincar é uma prática cultural, por isso, aprendida. Não há uma dinâmica interna do indivíduo, uma característica inata para o ato de brincar. A brincadeira é atividade que precisa da interação social e da aprendizagem. A brincadeira necessita, pois, de um compartilhamento de códigos, acordos entre os brincantes, compreensão dos significados, ou seja, é preciso que todos os envolvidos partilhem minimamente de uma mesma cultura para que consigam brincar juntos. Ainda de acordo com o autor, os sujeitos não apenas reproduzem a experiência de seus antepassados e genitores, mas, em uma relação dialética, se tornam co-construtores de cultura.

Pelo olhar da sociologia da infância, nos diz Corsaro (2011, p. 31) que a criança é partícipe da sociedade, criando suas próprias culturas de pares quando selecionam ou se apropriam criativamente de informações do mundo adulto. As culturas infantis de pares são produções coletivas inovadoras produzidas sobre os conhecimentos culturais e institucionais aos quais as crianças se integram e ajudam a constituir. Na perspectiva psicológica, Vigotski (2008) afirma que, na idade pré-escolar, a criança cria situações imaginárias que dão conta da realização de alguns de seus desejos que não podem ser realizados imediatamente. O que impulsiona suas ações é o que está em sua mente e não os objetos em si. Isto é, o que não é possível realizar de forma real é possível pela imaginação durante a brincadeira.

Em uma idade anterior, ainda bebê, a criança busca a realização de seus desejos de forma imediata, solicitando aos sujeitos mais experientes que lhe atendam, principalmente naquelas necessidades de ordem orgânica (fome, sede, troca de fraldas, aconchego). Além disso, a força impulsionadora das suas ações provém dos objetos e se dá na manipulação dos mesmos, pelo uso exato de suas funções. Por exemplo, os chocalhos são usados para emitir sons e para serem movimentados, assim como os mordedores de borracha são usados para morder e aliviar os incômodos provocados pela erupção dos dentes.

Com a criação de uma situação imaginária, a criança é capaz de se desprender do mundo real, dando o significado que deseja aos objetos e ações. A ação é desencadeada pela ideia que a criança tem da ação e não pelo significado real dela. Objeto e ação ganham os sentidos que a criança quer dar a eles. É por isso que Vigotski diz que, na brincadeira, a ação e o objeto estão subordinados ao sentido. Nessa etapa, a brincadeira torna-se a atividade principal dessa faixa etária, ou seja, é aquela que puxa seu desenvolvimento e é responsável pela passagem para outra etapa, qualitativamente mais avançada.

A brincadeira é fundamental para que as crianças possam compreender seu lugar e papel no mundo e possam expressar seus desejos. Com relação à linguagem, cabe destacar que a brincadeira requer o aprendizado de linguagem própria, de uma forma específica de comunicação que faz parte das regras estipuladas por aqueles que estão brincando. Além da importância da aquisição de uma língua que serve para a comunicação e organização do pensamento (Vigotski, 2012), existe uma comunicação que se dá a partir das situações lúdicas.

Aproximando-nos do campo da surdez e de suas especificidades, buscamos Pereira (2015), que afirma que a maioria das crianças surdas são filhas de famílias ouvintes e, por não adquirirem a língua de sinais no convívio familiar, chegam à idade escolar sem o conhecimento de uma língua. Daí a importância de pensarmos na escola para surdos como ambiente estimulador do aprendizado da LIBRAS e da comunicação das crianças dentro e fora das brincadeiras. Silva (2002) acrescenta que, na tentativa de explorar as questões relacionadas à cognição e à linguagem, o lúdico é esfera fértil para estudar a relação entre a imaginação e o uso de sinais pela criança surda.

Além da especificidade da língua de sinais, destaca-se a expressividade corporal e facial dos sujeitos surdos que têm a sua língua e comunicação ampliadas para as diferentes possibilidades de expressão corporal. Isso faria parte de um ethos surdo, características comuns a esse grupo que o distingue do modo de ser dos ouvintes. Segundo Sacks (2010):

Muitas das pessoas surdas que conheci não haviam aprendido apenas uma língua adequada, e sim uma língua de um tipo inteiramente diferente, que servia não só às capacidades do pensamento (…), mas também como meio de comunicação de uma comunidade e uma cultura ricas. Ainda que jamais tenha esquecido a condição ‘médica’ dos surdos, fui então levado a vê-los sob uma luz nova, étnica, como um povo, com uma língua distinta, com sensibilidade e cultura próprias (p. 10).

Pagni e Martins (2019) destacam neste ethos surdo, além da língua de sinais que segue outras regras, sintaxe e semântica, sua origem visual e não oral. A importância da expressividade corporal do sujeito surdo, de certa forma, acaba funcionando como uma ruptura na lógica da gramática das línguas orais.

Nas brincadeiras, mais do que o uso da língua – que muitas vezes ainda não está consolidada para as crianças na Educação Infantil–, percebe-se sua expressividade através de movimentos e expressões faciais e corporais. A forma de comunicação se dá pela expressividade e pela aproximação corporal entre elas. O ato de chamar os companheiros através do toque é a base da relação, o que fica claro a partir da observação das brincadeiras.

Trazemos, em complemento para nossas análises as teorias pós-coloniais, como Boaventura de Souza Santos (2004 apud Aquino, 2015). O autor nos aponta para a apreensão da cultura na perspectiva do Sul. Isso traz uma proposta de nos desfamiliarizarmos de um sistema de poder-saber engendrado há séculos pelos líderes políticos e intelectuais do Norte, que vem gerando a discriminação de culturas periféricas. Nessa perspectiva, os sujeitos surdos se enquadram em uma minoria linguística e também colonizados pela hegemonia da oralização. Nesse sentido, comungamos com Santos (2004 apud Aquino, 2015) e Aquino (2015), quando dizem que o universal termina onde começa a cultura e a língua. Pesquisar com/os surdos nos impõe olharmos com atenção as suas manifestações particulares características comuns, bem como sua língua:

A língua e suas práticas sociais em suas formas imateriais e materiais compõem os traços que nos dão sentido de pertencimento à cultura, compõem as redes de significação em que se configuram as identidades culturais (Aquino, 2015, p. 96)

Aquino acrescenta que, antes mesmo do nascimento, a criança vivencia processos de histórias que se cruzam uma vez que lugares, práticas, objetos e língua destinados a cada criança já foram organizados por seu grupo de origem. Entretanto, isso não corresponde à realidade da criança surda filha de pais ouvintes usuários da Língua Portuguesa. Com o nascimento de uma criança surda, eles se deparam com alguém que se distancia de seu grupo linguístico e vão precisar aprender a lidar com uma criança que precisa adquirir uma língua que não é a língua deles. Na perspectiva da criança, essa situação torna sua inserção no meio cultural muito mais difícil, posto que, muitas vezes, a língua de sinais é adquirida tardiamente, quando isso de fato acontece. O entendimento é o de que toda a criança se torna território a ser colonizado, que “deve aprender uma língua, costumes e saber seu lugar” (idem, p. 102).

Por um lado, temos a criança surda que se apresenta como ser da falta – a própria palavra infância, neste caso, é tomada seu sentido literal, ou seja, sem fala. De fato, a criança surda, na Educação Infantil, se encontra, na maioria das vezes, em uma situação de não-fala, não-língua, posto que não compartilha da mesma língua de sua família. Entretanto, por que não olharmos para ela como em si uma possibilidade de descolonização, de invenção ou inauguração de novas formas de ser e estar no mundo? Não quero dizer com isso que não seja essencial o aprendizado da LIBRAS, mas, não seria também esse estado de não-língua um tempo propício para uma expressividade genuinamente autoral, inventiva, criativa da criança, que se utilizaria de seus próprios recursos expressivos para se comunicar? Esse estado de não língua do surdo propicia ao ouvinte-falante uma tensão, na medida em que traz à tona aquilo que é o contraditório da linguagem oral e que emerge a partir de sua ausência. Isto é, essa contradição promove um desmantelamento das certezas de um mundo ouvinte construído pela linguagem oral e que a não-língua poderia criar uma tensão criadora que levasse a outras percepções e aprendizagens.

Propor uma pedagogia descolonizadora seria a utopia de uma constante busca pela criação e invenção. Aquino (2015) ainda destaca o caráter autóctone e ao mesmo tempo estrangeiro da criança que, apesar de nascido em território conhecido, traz suas singularidades e formas próprias de viver e construir seus próprios territórios. E quanto à criança surda que será estrangeira durante toda a sua vida?

Pensar a educação infantil como espaço de diáspora, parte do entendimento de criança como autóctone e estrangeiro, como “Norte-Sul”, como etapa e experiência, luz e sombra, traço e mancha. Empreender tal ação nos exige tensionar, suspeitar e suspender as verdades, as definições, as nomeações. Sem língua. Buscar a condição de infância como ruptura, (re)criação. A força da criação está na tensão entre possível e impossível (Aquino, 2015, p. 103).

Nosso intuito é trazer o leitor à reflexão sobre as produções subjetivas das crianças surdas a partir de uma visão que as coloque em lugar de produtoras de cultura e não como sujeitos passivos que estão apenas a serviço da pesquisa e da própria cultura, tal como já colocada. Se as crianças ouvintes, nessa faixa etária, estão partindo da não-fala, a fala que se inaugura como possibilidade de criação de novas formas de existência, o que dizer das crianças surdas? Elas também precisam estar em processo de aquisição da língua de sinais, mas devem ser vistas como a infância que inaugura, que traz novidades e possibilidades de refletir sobre como estamos engendrando nossa existência e nossa sociedade.

Nos propomos, em seguida, a analisar nossa entrada no campo e uma situação de brincadeira experimentada por crianças surdas na Educação Infantil, identificando como reelaboram situações de sua vida cotidiana, como escolhem os temas, de que forma se comunicam e desempenham papéis diversos.

Maria Carmen Euler Torres mcarmeneuler@gmail.com

Possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Brasil, mestrado em Educação pela mesma universidade e doutorado em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. Professora de Psicologia e Educação do Departamento de Ensino Superior do Instituto Nacional de Educação de Surdos (DESU/INES), Brasil. Lidera o grupo de Pesquisa “Criança surda: cultura e linguagem”, com a linha de pesquisa: A importância da brincadeira no desenvolvimento da criança surda. Coordenadora do grupo de extensão: Legendagem e acessibilidade, do DESU/INES.