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A criança surda “falando” pela brincadeira: infância, corpo e ethos¹ surdo

Experimentando pesquisar com crianças surdas: questões e desafios

A entrada no campo, com a câmera, foi, como escrito na epígrafe da introdução deste artigo, uma situação inusitada para as crianças. Se a simples entrada do pesquisador no campo da pesquisa já causa uma mudança em toda a estrutura do ambiente e da rotina, o uso da filmadora foi um dispositivo de análise que mostrou como é preciso lidar com as reações dos sujeitos envolvidos, seus interesses, consensos e dissensos, mesmo que não possam verbalizar de modo convencional. O fato de ter a câmera nas mãos possibilitou imprimir o olhar delas sobre seu lugar. A autorização para que eu entrasse no seu espaço e fizesse parte de algumas horas de sua semana foi confirmada, não quando os seus responsáveis assinaram o termo e o consentimento, mas quando elas passaram a olhar para a pesquisadora de outra forma. De forma a vê-la como parte de sua rotina e principalmente por perceber sua relação com o ato de brincar.

Observando o que diz a literatura atual sobre as pesquisas com crianças, nos perguntamos: como avaliarmos a produção de conhecimento nas pesquisas com crianças pequenas? Que procedimentos devem ser criados para acessarmos sujeitos de pouca idade, especialmente? E em relação à criança surda, que ainda não adquiriu sua língua e precisa de outros meios para se comunicar? Como se constituem socialmente e subjetivamente?

Fazer tais questionamentos nos ajuda a refletir sobre as desigualdades estruturais entre pesquisador-adulto e pesquisado-criança. Naturalizar ou problematizar essas posições desiguais entre crianças e adultos? Essa é a questão de fundo que dará suporte para toda a concepção de pesquisa (Castro, 2008).

Esse modo de fazer pesquisa pressupõe uma constante reflexividade, a análise permanente e exame minucioso do percurso da pesquisa-intervenção e das implicações do pesquisador. Implicações estas que se configuram como a possibilidade de enfrentarmos a desigualdade inerente às posições socialmente e historicamente ocupadas pela criança. Seguindo as contribuições de Castro (idem), queremos entender se as pesquisas com crianças têm assumido, em sua concepção, as responsabilidades para com seu bem estar e seus interesses.

Brincando de mercadinho

As crianças da sala do G4 receberam a visita de crianças de outra turma, também de 4anos. As crianças visitantes ficaram muito animadas com o cantinho da casinha2, talvez por ser uma novidade para elas. Logo, começaram a organizar as brincadeiras. Uma criança pegou a caixa registradora e se sentou no chão, enquanto outra pegou uma cesta de compras e foi em direção à estante da sala, onde pegou todos os potes de tinta guache e colocou na cesta. Junto com esta criança, estava outra que imitava um cachorrinho. A “dona” do cachorrinho cuidava com muito carinho do “animal”, passando a mão na cabeça dele e chamando sempre para perto. Dirigiram-se ao caixa, onde a “cliente” entregou todas as tintas (que representavam vários produtos do mercado), que eram cuidadosamente passadas pelo leitor de códigos de barras pela criança que punha no papel de operadora de caixa. As mercadorias voltaram para a cesta, já registradas e devidamente conferidas. Em seguida, a “cliente” tirou de sua bolsa um cartão de papelão (ou peça de jogo) e entregou para a “moça do caixa”. Ela simulou que estava passando o cartão de crédito, a cliente fingiu digitar a senha no teclado do caixa, pegou o cartão de volta e saiu do “mercado” com seu cachorrinho. A brincadeira ainda se estendeu para a casinha, onde a dona da casa colocou a comida do cachorro em sua vasilha, botou o bebê na cama, cozinhou, atendeu o celular e realizou outras atividades domésticas.

Uma análise inicial dessa cena nos permite dizer que a situação escolhida teve referência direta com o dia a dia das crianças. A situação de supermercado, incluindo todo o processo de escolha de produtos, leitura de código de barras e pagamento, mostra o quanto dominam essa prática em seu dia a dia. São competentes nessa ação cotidiana que provavelmente vivenciam com seus pais e responsáveis e foram capazes de reorganizar essa vivência através brincadeira. O faz-de-conta surgiu como possibilidade de as crianças recriarem a situação cotidiana, trazendo seu olhar e sua forma própria de ação. Com relação ao começo da brincadeira, pudemos avaliar que não houve uma combinação anterior entre as crianças sobre o tema, tampouco o papel que cada uma teria na situação imaginária. Já as regras foram sendo construídas ao longo do processo. Uma criança pegou a caixa registradora e sentou-se no chão. Essa ação foi o pontapé para início da cena lúdica. Outra pegou a cesta de compras e recolheu todas as tintas guache que encontrava na estante e se dirigiu à colega que estava na posição de vendedora. Curioso é o fato de uma das crianças assumir o papel de cachorro de estimação, andando de quatro o tempo inteiro e permanecendo com a língua para fora, seguindo sua “dona”. Toda a situação de brincadeira foi perfeitamente compreendida por todos. Os papéis que cada uma assumiu foram percebidos por todas as crianças que participavam da brincadeira e aceitos, as regras surgiram ao longo da encenação e cada uma foi dando sequência ao enredo.

De acordo com Brougére (1998), isso só é possível porque as crianças compartilham de códigos comuns que fazem com que os temas e as ações possam acontecer sem que haja um impedimento ou barreira por falta de uma compreensão sobre como brincar. O tema do mercado, bem como o passo a passo de uma situação como essa, foi perfeitamente compreendido, em que nenhuma criança tenha necessitado comunicar de antemão. Houve uma convergência de ações na brincadeira, nas quais as crianças compartilharam de um mesmo repertório de códigos e sentidos e construíram, mesmo que não claramente, os acordos para que a brincadeira acontecesse. Percebemos que, mesmo sem uma comunicação pautada em uma língua plenamente adquirida, foi possível o entendimento do que estava acontecendo na cena lúdica e, assim, constatamos que houve um acordo entre os parceiros, mesmo quando havia conflitos. A partir das ações, a brincadeira foi se constituindo e as regras e ações foram sendo conduzidas coletivamente. Algumas crianças, um pouco mais desenvolvidas no processo de aquisição de língua, utilizavam sinais em LIBRAS durante a brincadeira. Entretanto, na maior parte do tempo, a comunicação era feita por gestos, gestos caseiros3 e expressões corporais e faciais. A brincadeira de mercado acontecia paralelamente a outras manifestações de outras crianças que brincavam entre si ou isoladamente no grupo.

Percebemos que os objetos tomaram significados distintos conforme as crianças desejaram. Na situação descrita, temos o exemplo das tintas que representavam os diferentes produtos do mercado e a peça de jogo da memória que virou cartão de crédito para a caixa registradora do mercado fictício. A criança que imitava um cachorrinho andava de quatro e, em determinado momento, recebeu ” “ração” feita com massinha de modelar.

Segundo Vigotski (2008), o sentido é mais importante que o objeto e as ações reais. Objeto e ação são pivôs para a brincadeira, pois o que mais importa é o sentido que objeto e ação têm para elas e não seus significados reais. Nesse caso, não era importante que o jogo da memória fosse usado com os objetivos do jogo em si, mas seu formato e a necessidade que emergiu no momento fizeram com que fosse utilizado como cartão de crédito e não como peça de jogo. Outro exemplo foi a criança que se fingiu de cachorro durante boa parte da brincadeira, assumindo papel de animal e não de humano. Podemos dizer que estavam se separando dos significados reais dos objetos ou, segundo Vigotski (2008), sobre a brincadeira de faz de conta:

Penso que a brincadeira com situação imaginária é algo essencialmente novo, impossível para a criança até os três anos; é um novo tipo de comportamento, cuja essência encontra-se no fato de que a atividade, na situação imaginária, liberta a criança das amarras situacionais (p. 29).

Também vimos que nem sempre as brincadeiras são prazerosas e ausentes de conflitos. Uma criança entrou na brincadeira, propondo um desvio à sequência estabelecida pelas outras duas, o que provocou uma reação de descontentamento. Para Vigotski, as brincadeiras têm conflitos e, muitas vezes, causam desprazer, o que faz parte do desenvolvimento e das reelaborações expressivas, cognitivas, afetivas e sociais da criança. Por fim, como uma constatação de que as crianças surdas estão inseridas em uma cultura que é também ouvinte, vemos que se utilizam de símbolos que fazem parte do mundo ouvinte, como foi o caso do uso do “celular”. Neste caso, nos aproximamos do que Vigotski disse sobre a brincadeira como tempo-espaço de realização de desejos não realizáveis mediatamente. Na brincadeira, tudo seria possível, mesmo uma criança surda utilizar o celular para ouvir e falar. Isso mostra o quanto as crianças estão atentas ao mundo a sua volta e reelaboram aquilo que observam em seu meio social.

A expressividade corporal e gestual das crianças dava o tom da brincadeira. Por serem surdas, as formas de chamarem a atenção umas das outras é o toque, o ato de “cutucar”, puxar pelo braço e nunca gritar ou buscar uma forma de verbalização. Algumas crianças emitem mais sons do que outras, mas, de uma forma geral, a relação corpo a corpo foi o que mais chamou a atenção.

Considerações finais

A brincadeira é um microcosmo da cultura (Tunes; Tunes, 2001), é um fenômeno cultural e pilar na constituição das culturas infantis, uma categoria sociológica que compartilha rotinas e experiências que compõem uma cultura lúdica comum da infância. Também é por meio das atividades lúdicas que as crianças mostram que já estão no mundo simbólico, uma vez que conseguem dar outros sentidos aos objetos, antecipando as exigências que o seu processo de desenvolvimento irá apresentar.

O uso de novos sentidos para os objetos mostra a importância dos signos linguísticos para a complexificação das cenas lúdicas. No caso específico das crianças surdas filhas de pais ouvintes que ainda não adquiriram sua língua materna, a LIBRAS, esse desenvolvimento pode ser prejudicado, limitando o sistema simbólico da criança. Isso porque, compreendendo que a língua tem a dupla função, de comunicar e organizar o pensamento, e que é a partir das relações sociais com sujeitos mais experientes que a criança vai construindo suas funções psicológicas superiores, quando a criança surda é submetida a tantos obstáculos linguísticos e sociais, seu desenvolvimento fica em desvantagem em relação a uma criança que adquire sua lingua no tempo previsto de um desenvolvimento típico. Na maioria das vezes, as crianças surdas só têm contato com a LIBRAS quando entram na escola inclusiva (com instrutores surdos ou professores bilingues) ou em uma escola bilingue com profissionais que dominam a língua de sinais, adquirindo a LIBRAS tardiamente. Por isso, é fundamental atentar para a aquisição precoce da língua – convivência com os pares mais capazes, que dominem a LIBRAS – o que irá influenciar muito seu desenvolvimento.

Esta pesquisa tem nos ajudado a olhar para a infância surda como possibilidade e potência de nos indicar novos caminhos para perceber aquilo que estão querendo nos comunicar, mesmo sem uma língua constituída.

Observar as crianças surdas brincando é mais do que identificar seus temas preferidos, disputas e interações. É perceber a singularidade do ethos surdo, sua corporeidade e formas próprias de se manifestar. Não queremos excluir a singularidade de cada sujeito/criança surdo(a), mas apontamos para aquilo que pode ser comum a esse grupo. A maneira como movimentam o corpo, se deslocam no espaço, se tocam e fazem expressões diversas com o rosto e com o corpo demarcam uma maneira genuína de ser e estar no mundo. De certa forma, podemos dizer que rompem com a lógica da oralização e, por conseguinte, com a expectativa que temos, enquanto adultos, de ver sua fala pronta para ser legitimada. Pois se infância é não ter fala – o que se extingue com a aquisição da língua e o alcance de uma vida adulta –, o ethos da infância surda se estende como uma irrupção na norma ouvinte, por toda a vida do sujeito surdo. Ou seja, enquanto não pode ser compreendido pela normativa ouvinte ao mesmo tempo em que se coloca em lugar estrangeiro, pode produzir novas formas de existência. A língua de sinais é uma língua visuoespacial, extrapola os limites dos movimentos das mãos – que por si só já exemplificam essa característica da espacialidade – e se expande para as expressões faciais e corporais. A expressividade que o surdo pode demostrar através das artes cênicas, da poesia, das artes plásticas, das performances e das brincadeiras, por exemplo, se configura como algo genuíno, próprio desse grupo que possui formas distintas de comunicação e expressão

No que se refere às atividades de brincadeira na Educação Infantil, entendemos que as escolas deveriam oportunizar às crianças surdas mais situações nas quais elas pudessem criar suas próprias brincadeiras e arranjos interpessoais. Em nossas intervenções e observações, percebemos que as crianças foram bastante receptivas e se mostraram felizes com as mudanças na sala e com a criação do cantinho “da casinha”, o que ampliou muito suas encenações lúdicas se comparadas ao início de nossa pesquisa. Quando as rotinas e o planejamento garantem momentos do brincar, as crianças incorporam essa atividade e cotidianamente vão reelaborando as ações, a escolha dos papéis e, de fato, priorizam a brincadeira. Outro ponto a destacar foi a participação da professora. Isso foi crucial para a pesquisa, pois além de possibilitar às crianças as experiências lúdicas, também demonstrou levar a reflexão sobre a importância da brincadeira para sua própria prática pedagógica, o que reforça a ideia de que as educadoras precisam estar atentas à sua formação em serviço e à constante reflexão sobre a prática.

Por fim, esta pesquisa tem nos mostrado o quanto ainda é preciso olhar para a criança surda como um sujeito que tem um ethos próprio, formado por uma língua específica e uma expressão corporal peculiar e que, dessa forma podem produzir formas novas de ser e estar no mundo a partir da emergência do contraditório, que, por sua vez, promove um desmantelamento das certezas de um mundo ouvinte construído pela linguagem oral.

2 – O cantinho da casinha foi construído durante a pesquisa pela pesquisadora junto com a professora regente e era composta por: fogão; geladeira; caminha; pia de cozinha; tudo construído com material reciclado, bonecas e outros acessórios. A construção desse ambiente se constituiu como uma intervenção nos fazeres diários das crianças.
3 – Gestos caseiros são gestos que as famílias ouvintes utilizam com seus filhos surdos e que não correspondem aos sinais de LIBRAS (ALBARES,, BENASSI, 2015).

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Resumo
O artigo traz como objetivo central identificar a brincadeira como atividade principal da criança entre os 3 e 6 anos e como uma reinvenção da cultura, criando a possibilidade de manifestação de uma cultura lúdica. Na perspectiva da criança surda em processo de aquisição de língua e, por isso, ainda sem língua, buscamos colocar em questão a noção de infância como “aquele que não pode falar”, uma vez que a criança surda se mostra capaz de fazer emergir novas formas de comunicação de seus desejos e questionamentos. Entendendo os sujeitos surdos como minoria linguística, colonizados pela hegemonia da oralização, queremos olhar para a criança surda como uma possibilidade de invenção ou inauguração de novas formas de ser e estar no mundo a partir de seu ethos.
Palavras-chave: brincadeira,desenvolvimento, cultura lúdica, criança surda.
Data de recebimento: 18/10/19
Data de aprovação: 14/02/20

El niño sordo “hablando” a través del juego: infancia, cuerpo y ethos sordo.

Resumen

El objetivo principal del artículo es identificar el juego como la actividad principal de los niños entre 3 y 6 años y también como una reinvención de la cultura creando la posibilidad de manifestar una cultura lúdica. Para los niños sordos en el proceso de adquisición del lenguaje y, por lo tanto, aún sin el lenguaje, buscamos cuestionar la noción de la infancia como «alguien que no puede hablar», ya que el niño sordo puede provocar nuevas formas de comunicar sus deseos y preguntas. Entendiendo a los sujetos sordos como una minoría lingüística, colonizada por la hegemonía de la oralización, queremos ver al niño sordo como una posibilidad de invención o inauguración de nuevas formas de ser y estar en el mundo desde su ethos.
Palabras clave: juego, desarrollo, cultura lúdica, niño sordo.

The deaf child «speaking» through playtime: childhood, body and the deaf ethos

Abstract
The main objective of this article is to identify playing as the main activity for children between 3 and 6 years old and as a reinvention of a culture creating the possibility of manifesting a playful culture. To deaf children in the process of language acquisition and therefore still without working command of a language, we seek to question the notion of childhood as that of ”one who cannot speak”, since a deaf child is able to bring about new ways to communicate their wishes and questionings. Understanding deaf people as a linguistic minority, colonized by the hegemony of speech, we want to regard deaf children as a possibility of invention or inception of new ways of being in the world as from their ethos

Keywords: play, development, playful culture, deaf child.

Maria Carmen Euler Torres mcarmeneuler@gmail.com

Possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Brasil, mestrado em Educação pela mesma universidade e doutorado em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. Professora de Psicologia e Educação do Departamento de Ensino Superior do Instituto Nacional de Educação de Surdos (DESU/INES), Brasil. Lidera o grupo de Pesquisa “Criança surda: cultura e linguagem”, com a linha de pesquisa: A importância da brincadeira no desenvolvimento da criança surda. Coordenadora do grupo de extensão: Legendagem e acessibilidade, do DESU/INES.