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A notificação compulsória da violência contra crianças e adolescentes e seus desdobramentos via Conselho Tutelar

Resultados e discussão

As ações desenvolvidas

No Conselho Tutelar pesquisado, as notificações compulsórias de violência representam a demanda prioritária no atendimento da unidade.

Apesar de toda a demanda que nós temos no CT hoje, as NO [notificação obrigatória] são a prioridade no atendimento, porque uma vez notificado, sabemos que tem algo muito sério acontecendo. Então a gente vai investigar, vai notificar, chamar a família… […] Então a prioridade de atendimento são as notificações, acima das fichas FICA [Ficha de Comunicação do Aluno Ausente] do estado ou do município, que são as faltas escolares, ou relatório-escola de comportamento de alunos (Entrevistado 1).

Nem sempre a violência está explícita nas situações que chegam ao Conselho Tutelar: algumas vezes, ela aparece diluída em outras questões. É o caso da notificação de falta na escola: “a escola manda mais notificação de faltas. Daí quando você vai investigar uma falta, você descobre uma outra situação familiar por trás” (Entrevistado 1). Nesse caso, observa-se que a notificação pode favorecer uma leitura mais ampla da questão e o reconhecimento das expressões da violência praticada contra crianças que não são apresentadas por desconhecimento, naturalização ou economia de esforços, esta última justificada pelo foco no atendimento à demanda principal.

A escola é a instituição que mais notifica situações de violência, segundo o depoimento dos entrevistados.

A criança passa muito tempo na escola, e a escola geralmente é a primeira a detectar qualquer violência ou qualquer direito violado. Eu acho que hoje é a escola e depois, em segundo lugar, a saúde (Entrevistado 2).

Maior sensor acaba sendo a escola, e vem pela professora […] quem tem maior sensibilidade é o núcleo escolar […] porque, como eu disse, é a informação espontânea, e isso a gente preza bastante, é muito importante aquilo que a criança fala de coração, fala na sua ingenuidade, fala expressando a verdade, colocando o seu sentimento (Entrevistado 3).

A importância da escola na apresentação de notificações aos Conselhos Tutelares é devida à possibilidade de maior conhecimento das crianças do que outras instituições. No entanto, a escola, ainda que seja um espaço privilegiado de construção e revisão de conhecimentos, não está livre de reproduzir leituras simplificadoras e judicativas sobre violência. No estudo realizado por Cocco et al. (2010), a escola se limitava a notificar as marcas físicas da violência e a remeter o problema à família.

Na pesquisa realizada em Curitiba, que deu origem a este artigo, quando a notificação é recebida no Conselho Tutelar primeiramente são cumpridos os procedimentos internos de registro e distribuição. O registro é feito em um livro de protocolo e o documento recebido é classificado através de uma numeração que identifica o grupo familiar ao qual a criança ou o adolescente está vinculado. Toda ocorrência relacionada a determinado grupo familiar é arquivada no mesmo dossiê com a finalidade de demonstrar o histórico de acompanhamentos. Cada família atendida no Conselho Tutelar pesquisado tem um conselheiro de referência. “Imediatamente a gente verifica se já tem registro de atendimento no Conselho. Se já tiver registro, a gente encaminha para a conselheira de referência. Se não tiver, é separado pela rede” (Entrevistado 1).

Na região onde foi realizada a pesquisa de campo existiam cinco redes locais, compostas por representantes dos setores da Educação, Saúde, Assistência Social, Conselho Tutelar e outras organizações que possuem parceria com a Prefeitura para a assistência à criança e ao adolescente. São trabalhadores da ponta, que operacionalizam o atendimento à população e estão presentes no território de moradia do(a) usuário(a). Dentre as funções dessas redes locais está a de executar ações de prevenção à violência contra crianças e adolescentes, definir os encaminhamentos e os procedimentos necessários ao caso notificado em sua área de abrangência, promover o acompanhamento dos casos notificados, disponibilizando serviços e programas para seu atendimento (CURITIBA, 2008).

O procedimento seguinte é a convocação da família para comparecimento no Conselho Tutelar a fim de “averiguar os fatos” (conforme caracterizado na fala do Entrevistado 3), sendo geralmente feito por escrito e entregue pessoalmente por um dos funcionários administrativos.

A gente faz a notificação para a família, pra que a família venha até o Conselho Tutelar para explicar aquela… a gente não fala de onde veio a denúncia, mas a gente notifica pra família explicar o que que aconteceu aquela situação, se aquilo lá é verdadeiro ou se não é. Porque às vezes tem algumas suspeitas que apenas são suspeitas, não é o fato real. Às vezes, a situação não é aquilo que diz na notificação também (Entrevistado 5).

A convocação da família, na verdade, é feita à mãe: das 46 notificações analisadas, em 27 a mãe foi a pessoa convocada a comparecer no Conselho Tutelar para esclarecer a situação ocorrida. Na análise dos dados coletados através das fichas de notificação, observamos que a ocorrência da violência é preferencialmente atribuída à figura materna, o que também é expresso no depoimento de um entrevistado:

A grande dificuldade está exatamente naquela pessoa que teria que zelar, e não zela. Essa pessoa fica muito exclusivamente na figura da mãe, porque a mulher acaba sendo vitimizada mais uma vez: ela tem que ser mãe, tem que ser pai, tem que ser trabalhadora e tem a vida pessoal dela. E isso é muito difícil! E às vezes ela… ela se vê assim: ou eu, ou meu filho, ou meu companheiro. E ela se vê refém muitas vezes dele por questão financeira, ou por apoio moral e isso acaba sendo a grande dificuldade. Que ela não faz, ela tem dificuldade de cumprir isso. E a gente às vezes também fica um pouco sensível com essa naturalidade dela e às vezes a gente sente esse embate, essa dificuldade, né (Entrevistado 3).

A despeito das muitas transformações ocorridas em relação ao papel da mulher na sociedade, as quais suscitaram novas práticas relacionadas ao viver em família, é sobre a mulher que se deposita a responsabilidade e o saber sobre o cuidado. Estudos sobre divisão sexual do trabalho doméstico reiteram a desigualdade de gênero e a tarefa de cuidar como naturalmente associada à figura materna (HIRATA, 2016; KRMPOTIC; DO IESO, 2010). A função privilegiada de cuidadora, associada aos valores relacionados ao amor incondicional que lhe são atribuídos, expõe a mulher mãe a um alto grau de expectativa e cobrança. As representações simbólicas sobre a figura materna são variadas. Quando associadas a valores positivos, reproduz-se a ideia da maternidade como algo essencialmente moral. “Mãe é mãe!”: essa máxima encerra um universo de virtudes e valores sacralizados. Por outro lado, quando a figura materna não equivale exatamente ao idealizado, há um questionamento endereçado a essas mulheres mães: «que espécie de mãe é essa?”, “mãe que não cuida?”, “mãe que não sofre pelo filho?”, entre outras cobranças. Nesses casos, observa-se igualmente uma justificação a posteriori sobre o comportamento considerado inadequado das crianças que estão sob sua responsabilidade: “também com uma mãe dessas, o que se podia esperar?”. Mulheres mães de adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas ilustram bem a responsabilização da mãe pela proteção e contenção de comportamentos considerados nocivos (DIAS; ARPINI; SIMON, 2011).

Nem sempre o protocolo do enfrentamento à violência contra crianças e adolescentes é aplicado na ordem descrita anteriormente (registro da notificação – comunicação ao Conselho Tutelar – convocação da família – encaminhamento para atendimento e acompanhamento); dependendo da gravidade da situação.

Se a gente vê que é muito grave, a gente vai atrás da criança pra gente ver o que está acontecendo. Digamos que venha uma notificação da criança que ela está machucada na escola. A gente não espera. Ah, vamos notificar, daí quando der a gente marca… não! A gente recebeu a notificação, a gente vai ver o que a criança… se tem marcas… se a gente vai levar para o NUCRIA [Núcleo de Proteção à Criança e ao Adolescente Vítimas de Crimes] antes de pedir para os pais ir no IML [Instituto Médico Legal]… se é uma notificação de RN [recém-nascido], a gente vai ver como está lá, se a mãe consegue receber esse bebezinho em casa. […] Quando é uma notificação que a gente vê que pode notificar, que o pai pode vir aqui pra gente conversar e aplicar as medidas, tudo bem… mas se a gente vê que é uma coisa grave, a gente aplica as medidas antes de chamar os pais (Entrevistado 4).

A visita domiciliar é um recurso utilizado para averiguar a situação notificada. “Tem casos que a gente vai direto fazer a visita domiciliar porque a notificação demora a ser feita” (Entrevistado 1). A visita domiciliar, nesse caso, parece funcionar como um procedimento emergencial de apuração da violência, subvertendo não apenas o fundamento desse procedimento técnico, como a própria função do Conselho Tutelar. A visita domiciliar é parte de um conjunto de instrumentos que compõem o acompanhamento do trabalho social. Quando exercida de modo isolado e desconectado de um plano de intervenção, tende a imprimir uma lógica de controle e fiscalização no lugar de uma lógica preventiva e protetiva (GARCIA, 2018).

Observa-se, através do relato a seguir, que a notificação introduz um fluxo de trabalho cujas ações são desenvolvidas a fim de interromper a violência e restituir os direitos violados das crianças e dos adolescentes.

As ações e os encaminhamentos vão depender de cada caso… às vezes encaminhamos para a unidade de saúde ou solicitamos vaga de creche… depende da situação, depende do que identificamos no atendimento à família (Entrevistado 1).

Apesar da notificação já ter essa prerrogativa de que a partir do momento que ela é encaminhada, ela já deve acionar toda a rede, o Conselho Tutelar vem com a atribuição de aplicar a medida. O Conselho Tutelar tem a ciência do que está acontecendo e cobra e fiscaliza de todos os órgãos e das políticas públicas para que façam a promoção ou que cessem qualquer tipo de violência (Entrevistado 2).

O nosso papel é cobrar da rede, né, requisitar os serviços, e ela tem que nos atender na nossa demanda. Então a gente não pode se basear: “ah, é porque o Conselho”… não! É a gente que cobra da rede, e não eles do Conselho (Entrevistado 5).

Nos artigos 18-B e 101 do ECA estão previstas as medidas de proteção à criança e ao adolescente que poderão ser aplicadas sempre que seus direitos forem ameaçados ou violados. O quadro a seguir demonstra as medidas aplicadas pelos conselheiros tutelares nos 46 casos pesquisados. Vale indicar que em 16 casos nenhuma medida foi aplicada, em outros 13 casos não havia informação e em alguns casos foi aplicada mais de uma medida de proteção.

Quadro 1: Medidas de proteção aplicadas pelo Conselho Tutelar

Fonte: Dossiês analisados no Conselho Tutelar.

O acolhimento institucional é aplicado como uma alternativa para os casos considerados crônicos, que a Rede de Proteção não consegue solucionar através de intervenções pontuais. Vale interrogar sobre o entendimento do que é crônico e o que é passível de solução pela via de um encaminhamento. Quando se trata de violência, o tempo de ocorrência e a necessidade de intervenções múltiplas sugerem que muitas manifestações da violência não são episódicas, mas refletem um processo sistemático e contínuo. De forma recorrente, nas reuniões da rede local onde a pesquisa de campo foi realizada, o acolhimento foi sugerido como alternativa para resolução de determinadas situações. Como exemplo, após o relato de que duas crianças – pertencentes a uma família acompanhada pela Rede de Proteção há anos – ficavam na rua após o turno da escola, foi sugerido que o Conselho Tutelar aparecesse de surpresa e as recolhessem para um abrigo. Outra alternativa para os casos crônicos é o seu encaminhamento para o Ministério Público. No primeiro caso, o Conselho Tutelar figura como uma ação policial em busca do flagrante delito, no segundo, observa-se a rendição a uma figura de autoridade maior para “passar a batata quente”. O acolhimento institucional também é aplicado nos casos considerados graves.

Infelizmente, os casos de enfrentamento de violência, quando surgem os casos graves, o papel do Conselho é acolher. Acaba acolhendo. Resultando num acolhimento. O acolhimento seria uma medida extrema: retirar a criança da família para cessar o abuso ou a agressão ou a violência, certo. O abusador, o violentador ou quem comete a violência não sai da família. E a criança acaba, de certa forma, sendo penalizada de novo. Porque, por exemplo, se for um pai ou um padrasto, a gente não tem poder de tirá-los da casa. E, muitas vezes, as mães optam por continuar com eles, infelizmente. Daí a gente tira a criança e coloca num acolhimento ou , em alguns casos, vai pra família extensa. Só que a gente fica meio relutante em família extensa porque a avó, tia ou outra avó paterna também podem se sentir acuadas/ameaçadas por esse pai ou por essa mãe e acabar devolvendo essa criança para a família que estava, de certa forma, abusando ou violentando ela de alguma forma (Entrevistado 1).

A advertência aos pais ou aos responsáveis é uma das medidas previstas no ECA, em seu artigo 18-B. Ela não tem valor judicial e, portanto, não produz nenhuma sanção. Para uma das conselheiras, essa característica gera a sensação de impunidade para aquele que cometeu o ato, favorecendo a ocorrência de violência doméstica.

O que desencadeia, eu acho que ainda é, talvez, a impunidade, talvez a falta de sanção, que até mesmo uma advertência do CT [Conselho Tutelar] – que é uma das nossas atribuições, uma de nossas prerrogativas, antes de se judicializar, ela é banalizada pelo violador, pelo suspeito que comete a violência. Eu ainda acho que é a impunidade, a falta da sanção aplicada (Entrevistado 2).

As crianças e os adolescentes que apresentam comportamentos considerados inadequados são encaminhados para avaliação psicológica, de acordo com os dados analisados e com a observação feita nas reuniões. Há o entendimento de que os desvios de comportamento estão relacionados a algum transtorno ou distúrbio mental, a alguma situação de violência a que a criança ou o adolescente esteja submetida(o) ou ao uso de substâncias psicoativas. O desvio é, de acordo com a leitura menorista, atribuído ao indivíduo ou às relações sociais no âmbito familiar (GARCIA; LIMA, 2020).

Os casos de violência física e sexual são encaminhados para unidades da polícia.

O Conselho Tutelar quando identifica uma situação de violência contra criança e adolescentes, muitas vezes tem… a maioria dos casos de violência desemboca na polícia. Ou violência física, que acaba no NUCRIA [Núcleo de Proteção à Criança e ao Adolescente Vítimas de Crimes], que é polícia civil, ou violência sexual, que primeiro vai para uma unidade de saúde, que também acaba encaminhando para o NUCRIA para boletim de ocorrência e depois IML (Entrevistado 1).

Além da aplicação de medidas de proteção, os conselheiros tutelares costumam requisitar serviços como emissão de documentos de identificação, carteira de trabalho e matrícula em creches. Percebemos que, nos casos analisados, a maioria dos encaminhamentos e das solicitações feitas pelo Conselho Tutelar foi atendida. As exceções estavam relacionadas às solicitações de acompanhamento endereçadas ao Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), que foram devolvidas com a informação de que as famílias não foram localizadas. Mais uma vez, a complexidade de demandas inerente a esse tipo de atendimento se depara com os limites do trabalho contínuo com as famílias.

Joana Garcia joanagarcia@ess.ufrj.br

Assistente Social. Doutora em Serviço Social. Professora Titular da Escola de Serviço Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. Coordenadora do Núcleo de Estudos e Trabalho sobre Infância, Juventude e Famílias (NETIJ), Brasil. Associada ao Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (CEDECA-RJ), Brasil.

Vanessa Miranda Gomes da Silva vanessa.miranda@inca.gov.br

Assistente Social. Doutora em Serviço Social. Tecnologista em C&T. Assistente Social do Instituto Nacional de Câncer, Rio de Janeiro, Brasil.