Ana Clara Gomes da Silva
Universidade de Brasília, Curso de Psicologia, Brasília, Distrito Federal, Brasil
ORCID iD: https://orcid.org/0000-0003-4756-050X
Larissa Martins de Mello Fernandez
Universidade de Brasília, Curso de Psicologia, Brasília, Distrito Federal, Brasil
ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-9669-6211
Ranieli Carvalho Gomes de Sousa
Universidade de Brasília, Curso de Psicologia, Brasília, Distrito Federal, Brasil
ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-1204-6562
Vanessa de Moura Pereira
Universidade de Brasília, Curso de Psicologia, Brasília, Distrito Federal, Brasil
ORCID iD: https://orcid.org/0000-0001-7563-5340
Andrea Schettino Tavares
Universidade de Brasília, Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura, Brasília, Distrito Federal, Brasil
ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-4582-0526
Liana Fortunato Costa
Universidade de Brasília, Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura, Brasília, Distrito Federal, Brasil
ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-7473-1362
DOI: https://doi.org/10.54948/desidades.v0i31.41471
Introdução
A ofensa sexual é um fenômeno complexo que, embora seja amplamente discutido sob o ponto de vista da vitimização, ainda não contempla totalmente a perspectiva do circuito ofensivo. O preconceito em relação ao tema da ofensa sexual na perspectiva da autoria acaba por gerar uma falta de estudos e intervenções focadas em quem cometeu a ofensa sexual (DOMINGUES; COSTA, 2016), afetando também a compreensão em relação ao adolescente ofensor (EASTMAN; CRAISSATI; SHAW, 2019).
A literatura aponta um significativo crescimento, nas últimas décadas, no registro numérico de adolescentes que cometeram ofensas sexuais, representando cerca de um terço dos casos (BORGES; COSTA, 2020; TAVARES; MONTENEGRO, 2019). Em um estudo feito por Said (2017), que analisou 290 fichas de notificação de ofensa sexual e prontuários biopsicossociais, encontrou-se que o número de adolescentes que a cometeram representou 55% da amostra analisada. Esses dados corroboram a necessidade de investir em políticas públicas de intervenção para autores que iniciaram atos dessa natureza na adolescência, sobretudo em vista da possibilidade de reincidência criminal na vida adulta. Além disso, se, entre adolescentes que cometeram ofensas sexuais, as estatísticas e estudos são escassos, entre jovens adultos é ainda menor o desenvolvimento desse tipo de investigação no cenário brasileiro (EASTMAN; CRAISSATI; SHAW, 2019).
Este texto refere-se a uma pesquisa exploratória realizada com adolescentes entre 16 e 18 anos que cometeram ofensa sexual atendidos em um programa de assistência a famílias em situação de violência em uma capital da região Centro-Oeste do Brasil. O objetivo é investigar o risco de reincidência sexual dos participantes desse programa nessa faixa etária (completos em 2019) por meio do instrumento ERASOR1 2.0 (versão portuguesa) a partir das informações contidas nos registros dos prontuários.
O adolescente ou o jovem adulto que cometeu ofensa sexual
A juventude é uma importante etapa da vida em que ocorre a transição da adolescência para a vida adulta. Por não existir um consenso entre países e instituições sobre a definição de faixa etária entre adolescentes e jovens adultos, cada país e/ou instituição considera um intervalo de idade específico para identificar esse público. No Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) define como adolescentes as pessoas entre 12 e 18 anos de idade (BRASIL, 1990). Em relação aos jovens adultos, a lei do Estatuto da Juventude define como jovem quem tem entre 15 e 29 anos, sendo que, para pessoas entre 15 e 18 anos, a aplicação da lei se dá por meio do ECA (BRASIL, 2013).
Apesar de jovens adultos serem reconhecidos em sua maturidade civil e jurídica, o contexto atual da geração é marcado por uma transição emergente em relação à adolescência, na qual esses sujeitos, de maneira geral, ingressam no mercado de trabalho de forma tardia, o que pode implicar a saída tardia da casa de seus responsáveis (MOTA; ROCHA, 2012). O contexto do início da vida adulta repercute na autonomia financeira do jovem (ANDRADE, 2010), que pode ainda recorrer ao provimento de subsídios advindo das figuras parentais, implicando acordos de divisão de tarefas domésticas e cuidados com crianças que residem na mesma casa. Essas diferentes características estão ligadas às condições socioeconômicas que ditam a emergência ou postergação por ganhos materiais, para si ou para auxílio à família. O contexto social de pertencimento, e/ou de sobrevivência, pode representar um acúmulo de riscos em relação à família e sociedade mais ampla, configurando uma sobrevivência que ameace, ofereça suporte ou incentive (OLIVEIRA et al., 2020). Não se pode generalizar esses cenários, mas é importante reconhecer novas configurações e demandas familiares.
Em intervenções realizadas com jovens adultos é viável ao profissional buscar conhecer a dinâmica familiar na qual estão inseridos, compreendendo o contexto e intervindo de acordo com a situação em que o adolescente/jovem adulto e sua família se encontram, além de realizar procedimentos com todos os integrantes do núcleo familiar. E, para além da família, compreendendo a adolescência como um período de vulnerabilidade, considera-se que vários fatores históricos e atuais – como geração presente, tempo, raça, etnia, desnaturalização das desigualdades, violência policial, discursos e práticas sociais e institucionais – concorrem para o reconhecimento de uma situação social que se constitui em um movimento retroalimentado (PEQUENO, 2020).
A legislação brasileira possui sistemas diferenciados de responsabilização para adolescentes e jovens adultos. O Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), que regulamenta a execução das medidas socioeducativas para adolescentes que cometeram ato infracional (BRASIL, 2012), prevê a responsabilização e o atendimento psicossocial do adolescente, de acordo com dois tipos de programas: os programas de meio aberto (advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade e liberdade assistida) e os programas de privação de liberdade (semiliberdade e internação). Conforme o Art. 5º do Código Civil brasileiro, a menoridade cessa para indivíduos com 18 anos completos, sendo assim, a responsabilização criminal de jovens adultos está de acordo com o disposto no Código Penal (BRASIL, 1940). O tempo de cumprimento das penas varia de acordo com cada caso e estão divididas em: privativas de liberdade, restritivas de direito ou multas.
A responsabilização criminal de jovens adultos é uma questão que vem sendo trabalhada por diversos autores2. A literatura argumenta sobre o problema de considerar a idade cronológica como fator determinante para a decisão do tipo de julgamento oferecido para jovens (COSTA, 2016; TORRES, 2019). Embora a idade cronológica tenha um importante papel na diferenciação de adolescentes e jovens adultos, há outros elementos que precisam ser considerados para determinar a maturidade psíquica do indivíduo, como a sua fase de desenvolvimento humano e neurológico (BARBOSA, 2020; COSTA, 2016; EASTMAN; CRAISSATI; SHAW, 2019). Ishida (2015) traz em seu estudo a discussão de o atendimento de jovens adultos ocorrer pelo sistema judicial adulto a partir dos 18 anos. A autora argumenta que processar e criminalizar jovens adultos de acordo com o sistema criminal adulto reduz as chances indivíduos se tornarem membros produtivos na sociedade, eleva as taxas de reincidência e superlotação de presídios, além de aumentar os custos para a sociedade pelo encarceramento e desemprego dessa população.
Um instrumento de avaliação de reincidência de ofensa sexual
Este estudo foi realizado com base no instrumento ERASOR, um instrumento estruturado em checklist adaptado para a língua portuguesa pelos autores Barroso e Manita (2012a). O ERASOR ainda é pouco conhecido no contexto brasileiro. Entretanto, é notória a sua contribuição para um melhor atendimento prestado aos adolescentes que cometem ofensa sexual, uma vez que é possível identificar vulnerabilidades relacionadas ao ato infracional cometido (DOMINGUES, 2016). Assim, é possível estimar o risco de reincidência de uma nova ofensa sexual, estimar o melhor atendimento a ser oferecido, auxiliando os profissionais a compreenderem o contexto no qual o adolescente está inserido. A proteção e cuidados oferecidos a esses indivíduos contribuem para a decisão judicial sobre qual medida socioeducativa a ser aplicada.
Considerando-se esses aspectos, Barroso e Manita (2012b) destacam que o ERASOR deve ser preenchido por avaliadores (profissionais) que conheçam bem o instrumento e que tenham conhecimento e experiência de atendimento com adolescentes e suas famílias e ofensas sexuais. A notificação da ofensa sexual é a primeira ação a ser tomada para que o adolescente que cometeu tal ato, assim como a vítima, receba proteção e, em seguida, para que o autor da ofensa possa ser responsabilizado. Como salientam Domingues e Costa (2016), a notificação é tão importante para a vítima quanto para o adolescente que cometeu a ofensa, pois ambos precisam de cuidados. A família, por sua vez, também tem papel fundamental para que os adolescentes não venham a reincidir na ofensa sexual, por isso a necessidade de a família também ser parte do plano de atendimento, uma vez que a ofensa sexual pode ser um sintoma denunciador de conflitos familiares (BORGES; COSTA, 2020; DOMINGUES, 2016), visto que o contexto familiar de indivíduos que cometem ofensa sexual tende a ser marcado por violências físicas, negligência, rompimentos e distanciamento afetivo e autoritarismo (COSTA et al., 2017; FONSECA; COSTA, 2019; RESSEL; LYONS; ROMANO, 2018; SAID; COSTA, 2019), características que contribuem para a recidiva da ofensa sexual perpetrada pelo adolescente.
2 – Cf. Eastman, Craissati e Shaw (2019); Ishida (2015); Ressel, Lyons e Romano (2018).