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Batalhas de rima de crianças da Favela da Maré: improviso, duelo e autoafirmação

O brincar tem sido considerado uma maneira de ação, interação e produção infantil, uma possibilidade de exploração do mundo real que ajuda a criança a enfrentar os desafios apresentados no decorrer do cotidiano, em que os limites entre a realidade e os desejos são experimentados.

Isso nos instiga a relacionar a brincadeira infantil aos territórios em que as crianças habitam. Observar os espaços urbanos, inclusive as favelas, como ambiente diário das crianças possui relevância para a compreensão desse tema, pois as peculiaridades e organizações das brincadeiras podem afetar usos e adaptações que as crianças estabelecem com os espaços, além de suas interações com seus pares e adultos (Cotrim; Bichara, 2013).

Estudar a brincadeira na favela, onde em muitos momentos as crianças podem brincar livremente, circulando entre os arredores de suas residências, enfrentando e construindo com seus pares diferentes sociabilidades e limites territoriais, traz um rico repertório de habilidades que normalmente não costuma ser considerado como algo importante relacionado às crianças desses contextos. Uma das brincadeiras que evidenciam a importância desses estudos é a brincadeira das batalhas de rima.

Souza (2011) encontrou na origem do vocábulo batalha a ideia de empreender esforços para vencer adversidades e problemas, afirmando que a noção de batalha cria um campo semântico que pode ser relacionado à peleja, ao duelo, ao ataque e outros termos. Aqui, fazemos uma conexão com o território no qual foi realizada esta pesquisa, entre duas comunidades do complexo de favelas da Maré, no município do Rio de Janeiro. O local se caracteriza por ser um espaço dividido entre duas facções do varejo do tráfico de drogas, sendo palco de permanentes conflitos armados, fato que interfere nas brincadeiras dos moradores, sejam eles crianças, jovens ou adultos. Muitas vezes, as delimitações territoriais são marcadas por códigos, regras e sinais que delineiam as expressões e os movimentos da cultura local.

As experiências no mundo real dão às crianças os recursos para as brincadeiras. Nesse sentido, “[…] os aspectos da identidade social da criança – o gênero, o ambiente cultural e a organização familiar e comunitária, os valores e as crenças – irão influenciar o estilo, os tipos e a quantidade de brincadeiras que uma criança irá exibir” (Garvey, 2015, p. 239). Nesta pesquisa, lidamos com crianças que faziam parte de grupos relativamente estáveis e integrados, o que nos permitiu encarar a brincadeira como parte de atividades grupais constantes, em que há uma riqueza e complexidade cultural que mostram tanto as marcas das concepções e valores dos adultos quanto as formas como as crianças lidam com elas.

Definimos cultura lúdica por um conjunto de regras e significações próprias que as crianças adquirem e dominam no contexto do jogo. Segundo Brougère (2002), o jogador precisa partilhar dessa cultura para poder jogar, respaldado em referências intersubjetivas. O aprendizado desse conhecimento se faz através da troca entre as crianças que possuem a oportunidade de encontros regulares, em que criam e recriam aspectos de suas brincadeiras, enriquecendo sua cultura a partir desses momentos e das fortes contribuições de seu território.

Com base nos estudos de Brougère (2002), afirmamos que a cultura lúdica se compõe de esquemas que permitem iniciar a brincadeira, uma vez que produz uma realidade diferente daquela da vida quotidiana. No caso das batalhas de rima, os gestos exagerados e os verbos ou palavras inventados fazem parte dos atributos indispensáveis para que o brincar ocorra, e nos parece que as formas e os elementos que surgem nesse jogo compõem a cultura lúdica infantil, sendo influenciados pela cultura mais ampla da Maré.

Nesse contexto, podemos classificar o comportamento de zoar como um ritual de sociabilidade, uma espécie de passaporte de entrada para o brincar do grupo. Normalmente, esse verbo está associado à ideia de desqualificar alguém; o adversário deve humilhar, “zoar” o outro, para se autoafirmar. Ao “zoar”, que ocorre nas inúmeras interações mareenses de adultos e crianças, a posição social de cada indivíduo diante do grupo depende em parte da desenvoltura de respostas engenhosas e da capacidade de manter-se calmo, ao mesmo tempo em que o indivíduo dá e recebe insultos ultrajantes ou desafios à sua autoestima.

Assim, o zoar pode ser uma disputa argumentativa, na qual o desempenho do oponente mais articulado e do seu rival vai interferir no lugar deles entre os amigos. A questão é que a criança mais rápida que consegue se sobrepor à outra com seu raciocínio e rapidez será aclamada pelas demais. Mesmo os palavrões ou as piores ofensas ganham permissão de serem ditos nesse universo que é perpassado por outras expressões, tais como movimentos corporais e gestos. Parece-nos que zoar é uma categoria genérica que pode ser incluída como fazendo parte da brincadeira, em que se desenvolve um tipo de relação que passa pela disputa, humilhação e competição. Mas também envolvendo a capacidade de rimar, a autoafirmação, a fantasia e o prazer coletivo.

A respeito dos jogos de humilhação, Green (2013) destaca um lado pouco discutido nas pesquisas sobre o brincar, o lado perverso, chamado pelo autor de “jogo sujo”, uma vez que não é baseado exatamente num intercâmbio, mas na vontade de dominar; é uma forma de impor a vontade de uma pessoa e de submeter o outro. A batalha de rimas é um desses jogos de disputa, no qual o objetivo central é humilhar o outro, rimando, se sobrepondo ao adversário. Há um lado perverso de ver o rival sem respostas submetido publicamente ao poder do jogador mais articulado.

A forma como a brincadeira de rima se estabelece a partir de duelos de afrontas organiza uma disputa de quem xinga melhor, com versos maiores que ridicularizam o adversário: elas exigem um combate de “zoação”, em que o objetivo maior é saber quem “zoa” melhor o outro através da rima. Há a vontade de provocar, de deixar o amigo sem graça e humilhado diante do grupo. Por sua vez, o grupo se manifesta torcendo para assistir à próxima rima, querendo ouvir uma provocação mais afrontosa.

Adelaide Rezende de Souza adelaidebrinqead@gmail.com

Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA), Brasil. Membro do grupo de pesquisas NIPIAC (Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Intercâmbio para a Infância e Adolescência Contemporâneas/UFRJ).