Freestyle rap ou batalha de rimas: afronta e resistência
A respeito da brincadeira de batalhas de rima, é necessário, inicialmente, contextualizar seu significado. Tradicionalmente fazem parte do movimento Hip Hop, uma produção histórica da cultura negra. Segundo Cazé e Oliveira (2008, p. 1): “[…] O Hip Hop é uma estratégia de sobrevivência da cultura popular, é uma forma de visibilidade de grupos de excluídos”. Esse movimento é uma expressão das pessoas marginalizadas que fazem política através da arte e de seus corpos, que refletem os problemas que reverberam nas estruturas sociais em que coabitam. Portanto, “[…] a mestiçagem no Movimento Hip Hop (ou Cultura Hip Hop) é uma lógica organizativa de partida que se dá a partir do encontro do Rap, do Break e do Graffiti” (Cazé; Oliveira, 2008, p. 5). Aqui destacamos que, tradicionalmente, esses movimentos populares, ao mesmo tempo em que denunciam as arbitrariedades dos grupos sociais dominantes, unem as pessoas que não são visibilizadas pela sociedade em geral, expressando na arte resistência e luta.
Souza (2011) comenta que a inserção do Hip Hop na cultura paulistana está relacionada a um espaço de memória dos laços de solidariedade que foram fundamentais para garantir a sobrevivência de negros cativos ou libertos na época do Brasil desde a colônia. A autora destaca que o movimento do Hip Hop fez parte do processo de ocupação da cidade de São Paulo e surgiu entre o final da década de 1970 e o início dos anos de 1980, fortalecendo os espaços de resistência que se constituíram vindos dos povos mais pobres e marginalizados, justamente no declínio da ditadura militar, autorizando a tomada das ruas dos grandes centros urbanos pelos movimentos sindicais e populares.
Souza e Bernardes (2018) realizaram um estudo sobre as batalhas de MCs no contexto do movimento Hip Hop em duas cidades da Região Norte Fluminense, revelando que, mesmo o Hip Hop tendo passado por certa massificação nos últimos anos, continua sendo um movimento cultural urbano juvenil, com característica de luta pelos direitos sociais de jovens das periferias.
As duas modalidades mais conhecidas na cena do Rap são chamadas de batalha do conhecimento e batalha de sangue. A batalha do conhecimento tem como principal objetivo desenvolver rimas sobre temas preestabelecidos pela organização ou pela plateia durante o evento, enquanto que, na batalha de sangue, não existe tema, o conteúdo é livre e tem como foco atacar (verbalmente) e responder ao ataque do adversário através do improviso. As batalhas de rima produzem ricos conteúdos espontâneos que marcam a criatividade, a resistência e o saber coletivo popular.
Há uma significativa produção nas trocas simbólicas dos jogadores, através das quais se criam enfrentamentos contra o modelo hegemônico de ser e brincar, permitindo a expressão de uma cultura invisibilizada. O que se fala a respeito do movimento Hip Hop o associa às atividades culturais de resistência, oposição e contracultura. No entanto, Albuquerque (2013) problematiza esse aspecto ao afirmar que a resistência não pode ser entendida simplesmente como uma oposição. A autora aponta para a utilização do conceito de resistência como uma proposta de relação entre as pessoas que buscam, nos discursos que acionam, o vínculo a ser construído no momento da interação. Destacamos que as produções culturais costumam ter um forte efeito nos territórios em que ocorrem e podem, inclusive, transformar papéis e lugares, criando um sentimento de pertença, politizando o cotidiano e estabelecendo redes que permitem novas apropriações e atuações.
Neste estudo, as crianças estavam marcadas pelos desafios de trocas agonísticas, interações que não envolviam apenas o ato agressivo em si, mas eram compostas por exibições, fugas e conciliações, em que uma criança procurava se impor a outra, tentando anular a possibilidade de resposta do adversário, momentos em que “[…] o ataque não visa encerrar o embate, mas provocar a resposta” (Oliveira, 2007, p. 331). Tudo isso se dá através da “zoação” rimada direcionada ao adversário. A brincadeira é essencialmente duelos de honra, nos quais o adversário deve humilhar, “zoar” o outro para se autoafirmar. Ganhar no jogo significa manifestar sua superioridade “rimante”.
As batalhas de rima protagonizadas por um grupo de crianças na favela da Maré tiveram como foco suas interações e vínculos, com base na disputa para manter a honra e a autoestima diante do grupo mais do que a resistência ou protesto a algo. Assim, a pesquisa buscou compreender os diferentes significados e repercussões relacionais desse jogo enraizado no território e na cultura local mareense.
A pesquisa com as crianças
Durante dez meses, através de visitas a uma turma com 30 crianças do terceiro ano, pertencentes a uma escola pública localizada em uma das comunidades do complexo de favelas da Maré, efetuamos uma pesquisa etnográfica com observações e interações de crianças, entrevistas semiestruturadas, situações de brincadeiras com a pesquisadora, elaboração de desenhos, registros fotográficos, caminhadas pelas ruas da favela com gravações de áudio e vídeos.
A escola apresentava um cenário contraditório: exibia excelente espaço físico e bons equipamentos, além de uma equipe comprometida com o ensino; ao mesmo tempo, estava localizada em um contexto repleto de tensões, situada em um território de grande escassez econômica, com frequentes conflitos devido à disputa territorial entre as organizações criminosas do comércio de varejo de drogas e as intervenções policiais.
Com o foco nas brincadeiras do grupo, as observações foram realizadas entre e durante as aulas regulares, as refeições e as atividades extras. Percebendo a frequência com que as crianças costumavam rimar e a maestria delas durante a composição de seus versos, entregamos uma proposta para a escola, sugerindo organizar pequenas batalhas de rima durante duas aulas extras, nas quais a pesquisadora e dois professores da escola teriam o papel somente de auxiliar, procurando agregar às ideias das crianças.
Uma vez a proposta tendo sido aceita, cinco encontros foram organizados para planejar e realizar as batalhas de rima. Os momentos das disputas foram registrados em vídeos cujos áudios foram transcritos. Desses momentos, foram destacadas para análise as imagens das expressões corporais e as falas das crianças consideradas relevantes para compreender o processo de organizar e realizar as batalhas. Um dos pontos que assumiram grande importância foi a criação das regras, fundamentais para que a brincadeira acontecesse. Trazemos aqui, portanto, a análise desse aspecto da brincadeira, que apontou para os laços de cumplicidade entre os jogadores e os valores do grupo.
A construção de regras: fronteira entre autoafirmação e agressão
A maioria das regras foi combinada em dois encontros, tornando-se elementos centrais, pois delinearam, em muitas circunstâncias, o limite entre a agressividade das crianças e a fronteira do zoar e humilhar, de modo que se produzisse uma moderação na intensidade do jogar.
Inicialmente, apresentamos o projeto para as crianças, dizendo que ele seria construído com a participação de suas ideias, explicando que iriam votar nas decisões a serem tomadas e participando do processo de construção. A partir desse momento, falamos sobre a necessidade de criar regras – o que valeria e o que não iria valer na brincadeira. As crianças começaram a dar ideias que foram registradas em um quadro branco. Abaixo, estão as regras iniciais sobre o modo como iriam “batalhar”, sendo que algumas foram modificadas na medida em que as batalhas ocorriam e as crianças sentiam a necessidade de novos ajustes:
1) quem não quiser participar vai falar que não quer e não será obrigado;
2) tem muitas formas de participar: rimando; dando ideia e julgando;
3)não pode zoar o amigo(regra modificada pelas crianças). Não pode magoar o amigo;
4) antes de chegar à sala de leitura geral, vai ao banheiro para não atrapalhar as batalhas;
5) não xingar a mãe dos outros;
6) respeitar quando perder;
7) não falar junto com o colega;
8) levantar a mão pedindo para falar; e
9) não pode falar que o colega “mija” e “caga” na cama.
Nesse momento, houve a participação ativa das crianças, que animadamente votaram e deram ideias, concordando e discordando, tendo a oportunidade de vivenciar conflitos e divergências. A título de exemplo, a ausência do Ju1, que não estava no primeiro encontro, mas que, no segundo estava presente, foi essencial para as mudanças que ocorreram no segundo dia. Quando fomos reler as regras combinadas e registradas em uma cartolina, ao chegar à regra de que não podia “zoar”, ele discordou veementemente, afirmando que a batalha de rima é “zoar o outro”. Júl, que havia proposto essa regra, defendeu sua ideia: “eu disse isso porque não pode fazer o amigo ficar triste e chorar, não pode magoar”. Mas, ao mesmo tempo, disse: “zoar pode, não tem rima sem zoar!”. Então, depois de algumas ponderações, em que muitas crianças falavam ao mesmo tempo, a pesquisadora organizou uma votação na qual quem concordasse em mudar essa regra deveria levantar a mão. A maioria levantou a mão e a regra foi modificada. Portanto, a regra de “não zoar” saiu, pois a brincadeira era de “zoação”, como pode ser percebido na lista das regras acima.
Depois dessa etapa, passamos para a votação de que tipo de batalha seria: de sangue ou de conhecimento. Surpreendentemente, foi eleita a batalha de conhecimento, contradizendo a maneira com que os duelos costumavam ser, pois eram de xingamentos, ou seja, de sangue. As crianças, quando brincavam na escola, se enfrentavam frequentemente, procurando desvalorizar a outra para se autoafirmar através da depreciação pública do rival. Outra surpresa foi quando escolheram como tema para ser rimado “animal”, pois entre as opções havia futebol e videogame, jogos com os quais costumavam brincar.
Apesar dessas escolhas, na prática, continuaram se xingando nas batalhas, usando nome de animais como: carrapato; cavalo ou urubu. No entanto, nem sempre conseguiam rimar usando nomes de animais, fato que, no decorrer das batalhas e após várias chamadas da pesquisadora a respeito, fez com que mudassem de ideia e as batalhas passassem a ser oficialmente batalhas de sangue. Assim, ficaram mais à vontade para os enfrentamentos, momentos em que as regras serviram de fronteira para que a autoafirmação pelo xingamento não se transformasse em um nível de agressividade mais danoso. O processo de elaboração de regras foi importante para que as crianças fossem testando paulatinamente seus limites entre se autoafirmar e agredir respaldadas pelo grupo e pudessem manifestar o desejo de mudar ao longo do caminho o tipo de batalha e as regras já construídas.
Após os acertos iniciais, ficou estabelecido que a batalha seria entre grupos rivais e existiria um júri composto pelas demais crianças que não desejassem participar dos confrontos.