Recontar a história e imaginar o porvir
A ficção que reveste as crianças com a imagem de anjos é um simulacro seletivo. Existem aquelas que foram ignoradas pelo conto burguês, que as relega à incumbência de ser o futuro de toda uma geração, as herdeiras do capital familiar. E é assim que Subcomandante Insurgente Marcos6 (2017), em um de seus escritos intitulado Os Diabos do Novo Século, sobre a memória da luta zapatista, conta a história das crianças que foram esquecidas pelo Deus dos ricos: “Deus havia designado, como lhe compete, um anjo da guarda para cuidar de cada uma das crianças da geração do Tratado do Livre Comércio” (MARCOS, 2017, p. 180). No entanto, não sobraram mais anjos para salvaguardar as crianças zapatistas, no que o Deus dos ricos lhes colocou a postos os “diabinhos da guarda”. Na América Latina e em outras partes do mundo, o abandono causado pela “euforia primeiro-mundista” (MARCOS, 2017, p. 181), como escreve o porta-voz zapatista, recaiu também sobre outras milhares de crianças esquecidas pelo neoliberalismo.
“Cento e vinte milhões de crianças no centro da tormenta”, é assim que Eduardo Galeano (2007, p. 17) introduz As Veias Abertas da América Latina, anunciando que nascer, na América Latina, é um ato revolucionário. Obstinadamente, crianças nascem reivindicando o direito a um lugar sob o céu de nosso continente, contra todas as correntes conservadoras que se utilizam de discursos oportunistas para culpabilizar o povoamento dos países subdesenvolvidos por seu próprio subdesenvolvimento. Galeano (2007, p. 22) relembra as missões norte-americanas em solo latinoamericano, na década de 1970, planejadas para esterilizar milhares de mulheres férteis, alertando que, em nossa história, “os dispositivos intrauterinos competem com as bombas e metralhadoras” na capacidade de silenciar aqueles que potencialmente buscarão a verdade pela luta contra o esquecimento, ameaçando a homogeneidade histórica. Que narrativas a linguagem absurda da história do capitalismo mundial pode contar a essas crianças?
Para nós, que vivemos no centro da tormenta de um continente cuja história do subdesenvolvimento integra a história do desenvolvimento do capitalismo mundial (GALEANO, 2007), parece ser mais eficaz jogar com as crianças, ouvi-las, observá-las. Antecipando-nos à destruição pelo poder e pela opressão, pela desconfiança na marcha da história (BENJAMIN, 1987), de modo que a destruição force o vislumbre de um outro futuro, embrionário. E se o momento em que vivemos abre o potencial utópico desse vislumbre, vale lembrar da passagem de Andrés Barba (2018, p. 71) em República Luminosa: “A infância é mais poderosa do que a ficção”.
De uma literatura que surge do limiar entre memória, esquecimento e fabulação, Barba (2018) escreve a história do aparecimento de 32 crianças em uma cidade localizada em um país não identificado da América Latina. Inicialmente não se sabe a origem dessas crianças, que, no decorrer dessa narrativa, vão se avolumando, uma vez que elas passam a ser uma espécie de refúgio encantado para as crianças da própria cidade, as quais começam a fugir de seus lares burgueses atraídas por um chamado que parece dizer também respeito a elas.
O autor narra os efeitos dessa aparição na organização da cidade fictícia: o papel da imprensa, dos estudos acadêmicos e das burocracias políticas e jurídicas, o medo, o terror, a violência. São crianças ágeis, de esconderijos improváveis, e que se comunicam em um dialeto incompreensível para os adultos, dispersam-se entre os territórios da cidade, da selva e do rio. Cria-se a atmosfera de uma massa de diferença aguda e, ao mesmo tempo, de indistinção, de algo que eminentemente faz parte das insurreições infantis, cujas aparições ágeis e rápidas nos confundem. As insurreições infantis na cidade fictícia criam imagens de estranheza e familiaridade e não deixam o leitor se fixar nunca em um só ponto de interpretação passiva e individualizante.
A ficção da república luminosa, título do livro, é capaz de nos revelar a face de algo que somos; e se o autor afirma que “a infância é mais poderosa do que a ficção”, é porque nosso cotidiano está abarrotado desses momentos em que elas interpelam os absurdos que vivemos e que ditamos como realidade ou perigosamente levam a cabo o ponto máximo da violência pela mimesis perversa imposta pelo homem que faz o gesto de uma arma com as mãos.
Inconclusa e futura, a infância nos convida a uma relação não instrumentalizada com o próprio presente, já que interrompe a continuidade, nos convoca a recontarmos parte de nossa história, reinventando um modo de estar juntos, incitando-nos a inventar novas formas de partilha, ansiando pelo mundo que já julgávamos concluído. Irrequieta interrupção da continuidade, convocação narrativa e pragmática do futuro e do passado, a infância pode nos convocar a uma interpelação de nós mesmos.
Considerações finais
Se o fascismo brasileiro encontrou “uma catástrofe para chamar de sua”, como nos alerta Safatle (2020), podemos, ainda, fazer uma convocação insurgente. Convocamos as infâncias e as crianças para as quais a força da ação está intimamente imbricada com o jogo fabulativo. Uma infância coextensiva à vida que não deve ser esquecida no pensamento humano; que se põe a reimaginar a infinitude mágica de composições de imagens que podem ser articuladas em uma língua expressiva, posta a serviço da transformação, e que amplia o volume de coisas vivas na superfície planetária, enfraquecendo o espaço de uma individualidade ilusória. Talvez o contexto da pandemia nos force a imaginar um mundo de espaços libertados, como sugere Jacques Rancière (2018, n.p.) na defesa de que política é “um assunto de imaginação”, uma faculdade estética capaz de reorganizar a forma como ocupamos o mundo e vivemos o ritmo do tempo. Diante do absurdo da pandemia, da espera pelo próximo avanço científico, pela próxima recomendação dos órgãos de saúde, compartilhamos, todos, certa inabilidade infante, e é diante dela que podemos reposicionar tudo. As crianças constroem um universo diferente dentro da morosidade da vida cotidiana.
No recente filme brasileiro Bacurau (2019), em meio às expressões dicotômicas das disputas entre adultos, as crianças interrogam o medo e transpassam pelas composições de corpos e enunciados, brincando e desafiando o terror. Mesmo que não saibamos os destinos das escolhas, as crianças no filme evocam a transitoriedade da brincadeira e do jogo em tensionamento com a certeza. As brincadeiras, no entanto, não se eximem do sentido político das conjunções entre as crianças, uma vez que afrontam o horror e a morte com a inocência, o não saber, e as travessias múltiplas, heteróclitas, resto de presença que quase não se nota na continuidade da narrativa das personagens principais.
Talvez a infância nos inspire, em certa medida, por se conjugar com a concepção de um trabalho ao mesmo tempo dispersivo e pontual, preciso e futuro. Que fim terão tido essas personagens? Não se sabe, quando se lê ou se conta uma história, quais possibilidades serão desdobradas pelos ouvintes irrequietos, que brincam com o sentido das coisas e dos acontecimentos. Daí, a possibilidade de perguntar de novo: o jogo não seria uma importante imagem da experiência política? Temos subsídios do pensamento benjaminiano e de sua concepção política de infância para defender que sim.
Do processo imaginativo, ficcional, disso que nos resta, despertamos para a ação política, na luta contra a passividade que o capitalismo impõe a uma sociedade que sonha e imagina pelo consumo e pela acumulação, pelo estoque individual; pela mentira perversa que nos contam os discursos que sugerem que resguardar a própria vida – como propriedade privada – deve tolerar o abandono das vidas de quem nos rodeia.
É com a infância que aprendemos a nos comunicar pela expressividade do som da matéria do mundo que habitamos, a força da ressonância; onde outra comunidade vai se fazendo “entre as criaturas postas em silêncio” (BINES, 2019, p. 5). Ruidosamente, somos convocados a escutar um mundo de sobrevivências. As crianças impregnam-se com o espaço e os objetos que as rodeiam. Mas esse espaço – o mundo – é, a um só tempo, encantador e tenebroso. As crianças sabem disso, protegem-se em esconderijos ou na própria semelhança com os bichos, em uma certa camuflagem, mimesis instintiva e inventiva, mas também, como nos lembra Benjamin, com o moinho de vento e o trem, ouvindo a língua que o mundo das coisas lança sobre elas, despistando as demarcações individualizantes e solitárias que temos criado para preencher isso que nomeamos “eu”.
A única mimesis permitida em nossa civilização tem sido aquela que trabalha para as forças de constituição exemplar da identidade de um sujeito racional – cujo modelo é branco e patriarcal. O custo dessa constituição tem sido a abjeção e o abandono do mundo da infância e da natureza, como nos lembra Gagnebin (2013) e, portanto, o enfraquecimento de conexões inventivas que proliferem formas de viver e de estar vivo. O enrijecimento do sujeito pela dominação exploratória e predatória da natureza e pela expulsão da infância dos corpos de adultos e crianças antecipa nossa aniquilação e constrói uma natureza ameaçadora, porque violentada.
Herdeira da plenitude do dom mimético originário, a infância exige a atenção dos adultos. Tornamo-nos testemunhas de uma metamorfose que se oferece ao nosso olhar de forma transitória e efêmera, já que as crianças marcam e dispersam os terrenos onde existem segredos enterrados (BENJAMIN, 2009) ou escondidos. Solicitam, portanto, o olhar minucioso, micrológico e inquieto diante da vitalidade das coisas (CASTRO, 2009), olhar de um sujeito da infância que vive residualmente em nós. A concepção de infância que relampeja no trabalho de Benjamin guia uma investigação micrológica dos limites das formas de existir, encontrando possibilidades de travessia. Somente em relação a esse limite, o encasulamento pode se relacionar com a transformação que o casulo opera; como uma força que no homem insiste, “forçando-o a regredir aquém de si mesmo para libertá-lo das formas fechadas” (CASTRO, 2009, p. 211).
Não há sentido em clamar para que as coisas voltem a ser como antes. Na margem extrema desses limites, por uma exterioridade ainda não interditada pelas forças produtivistas do sistema em que vivemos, a infância tem brincado de criar semelhanças; tramando zonas de passagem entre humanos, animais, máquinas e objetos esquecidos. De nossa parte, podemos oportunizar possibilidades de dar forma a essas experiências, enquanto recebermos delas a “franqueza de um olhar não obstruído pelos clichês” (SCHÉRER, 2009, p. 209), a possibilidade de recriar uma linguagem verdadeiramente conectiva e inventiva em tempos de distanciamento.
É por isso que, sem infância, não haverá a invenção de uma passagem para outra forma de viver e de narrar nos oferecendo imagens que tomamos como oportunas para a construção de uma nova coletividade frente ao poder que se reitera sobre o fato de sermos vivos.
Referências Bibliográficas
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Referências Cinematográficas
BACURAU. Direção: Kleber Mendonça Filho, Juliano Dornelles. Pernambuco: Vitrine Filmes, 2019. (132 min).
Resumo
O presente artigo, escrito no contexto da pandemia do novo coronavírus no Brasil, vale-se da proposição imagética do caráter destrutivo presente nos escritos de Walter Benjamin e aponta para condensações históricas e temporais em que o mundo é posto à prova em sua vocação para a destruição. Neste artigo, buscamos operacionalizar o jogo que compõe a relação entre a imagem de uma destruição necessária para a abertura do novo e a possibilidade de operacionalizar um gesto retroversivo da narrativa que se faz pela aliança com a infância, isto é, transformando as formas de contar a história e de atravessar o tempo presente. Para isso, passamos por uma crítica à concepção hegemônica de infância que é silenciada pela docilização e nos amparamos em uma concepção política de infância. Entre o que desmorona, as crianças são herdeiras da sobrevivência da arte de contar histórias, enfrentando a acelerada temporalidade da informação, reanimando o potencial de fazer dessas narrativas longínquas certa matéria-prima de orientação para o presente e o porvir. Utilizamo-nos também de produções literárias protagonizadas por crianças na América Latina que nos oferecem a imagem da face de algo que somos e nos convocam à reparação pela possibilidade de recontarmos parte de nossa história.
Palavras-chave: infância, jogo, história, literatura.
Delante del fin del mundo, recomenzar por la infancia
Resumen
Este artículo, escrito en el contexto de la pandemia del coronavirus en Brasil, hace uso de la proposición imaginaria del carácter destructivo, presente en los escritos de Walter Benjamin, que apunta a condensaciones históricas y temporales donde el mundo se pone a prueba en su vocación por la destrucción. En este artículo buscamos operacionalizar el juego que estabelece la relación entre la imagen de una destrucción necesria para la apertura de lo nuevo, y la posibilidad de operacionalizar un gesto retroversivo de la narrativa que tiene lugar mediante la alianza com la infância, que es decir, transformar las formas de contar la historia y atravessar la actualidad. Para ello, pasamos por una crítica a una concepción hegemónica de la infancia que la silencia mediante la docilización, y nos apoyamos en una concepción política de la infancia. Entre lo que se derrumba, los niños son herderos de la supervivencia del arte de contar historias, enfrentando la temporalidade acelerada de la información, reviviendo el potencial de hacer de estas narrativas lejanas cierta materia prima para orientar el presente y el futuro. También utilizamos produciones literárias protagonizadas por niños em América Latina que nos ofrecen la imagen del rostro de algo que somos, y nos llaman a la posibilidad de volver a contar parte de nuestra historia.
Palabras clave: infancia, juego, historia, literatura.
Facing the end of the world, start over with childhood
Abstract
This article, written in the context of the coronavirus pandemic in Brazil, draws on the imaginary proposition of the destructive character, present in Walter Benjamin’s writings, which points to historical and temporal condensations where the world is tested in its vocation for destruction. In this article, we seek to operationalize the game that makes up the relationship between the image of a necessary destruction for the opening of the new, and the possibility of operationalizing a retroversive gesture of the narrative that is made through the alliance with childhood, that is, transforming the ways to tell the story and pass through the present time. For this, we go through a critique of a hegemonic conception of childhood that silences it by docilization, and we support ourselves on a political conception of childhood. Among what collapses, children are heirs to the survival of the art of storytelling, facing the accelerated temporality of information, reviving the potential to make these distant narratives a certain raw material to guide the present and the future. We also use literary productions carried out by children in Latin America that offer us the image of the face of something that we are, and call us to reparation for the possibility of retelling part of our history.
Keywords: childhood, play, history, literature.
Data de recebimento: 31/01/2021
Data de aprovação: 25/07/2021