O caráter destrutivo
Se o neofascismo – “novo estágio nos modelos de gestão imanentes ao neoliberalismo” (SAFATLE, 2020, n.p.) – encontra uma catástrofe para “chamar de sua”, ao apontar para a destruição da vida, para o sacrifício em nome de uma economia abstrata como destino inexorável dos homens, a inflexão para a infância nos faz retomar o caráter destrutivo, essa estranha imagem do pensamento descrita por Benjamin, cujo olhar para a história vale-se de uma espécie de farejar que tem como bússola “uma desconfiança insuperável da marcha das coisas” (BENJAMIN, 1987, p. 237), imagem da interrupção da máquina do progresso e convocação de uma abertura para o novo.
Na descrição de um Estado suicidário, Vladimir Safatle (2020) exibe sua materialização ao relembrar o telegrama pelo qual Hitler proclamou sua derrota: “se a guerra está perdida, que a nação pereça”. Nesse sentido, a destruição não reconhece limites, não há espaço nem mesmo para a derrota quando ela precisa ser rapidamente apagada. A destruição pelo Estado mobiliza-se por uma direção ditada pela destruição pura e simples. O contexto da pandemia, nessa perspectiva, é a catástrofe oportuna da qual o Estado brasileiro – “A República Suicidária Brasileira”, nas palavras do autor – se apropriou; pelo “flerte contínuo com a morte generalizada”. Assim, “só encontra sua força quando testa sua vontade diante do fim”.
Seu exército não serviu à outra coisa que se voltar periodicamente contra sua própria população […]. A pátria da guerra civil sem fim, dos genocídios sem nome, dos massacres, dos processos de acumulação de capital feitos através de bala e medo contra quem se mover (SAFATLE, 2020, n.p.).
Foi Walter Benjamin (1987) quem propôs o caráter destrutivo como tônus ético de interrupção e de explosão das abstratas continuidades históricas empreendidas pela ciência histórica burguesa da primeira metade do século passado, incapaz de abandonar sua lassidão diante do avanço do fascismo e do nazismo na Itália e Alemanha. O caráter destrutivo, esse tônus impulsivo e resistente, não se adequa nem ao sentimentalismo burguês em relação ao passado nem ao evolucionismo teleológico e fatalista.
O horror foi possível no século XX e ainda o é no século XXI. A destruição, como expressão estética e política, recusa a integração epistemológica do passado ao presente absoluto, não acata o princípio aditivo de abordagens históricas evolucionistas e, muito menos, as historiografias ressentidas da perda. O caráter destrutivo, pragmática da barbárie positiva – conceito controverso e polissêmico no pensamento de Walter Benjamin – procura farejar nas ruínas do passado as correspondências entre o que já aconteceu e o que vivemos agora. As crianças, nos textos de Walter Benjamin (1987), são herdeiras irrequietas do caráter destrutivo, demorando-se nas ruínas, trazendo para junto do corpo os fragmentos do tempo histórico. O passado requer uma atitude exercitada pelas crianças que interrompem continuísmos.
Sob o signo da pressa e da exiguidade daquilo que é novo nas sociedades ocidentais contemporâneas, como nos ensina Jeanne Marie Gagnebin (1994) em um dos seus comentários sobre a obra de Walter Benjamin, acostumamo-nos a neutralizar nossa inquietação, supostamente indiferentes ao destino coletivo da humanidade, buscando nos aferrar aos nossos próprios objetos e deixando no interior de nossas casas apenas os nossos próprios vestígios. Walter Benjamin (2012), em um texto originalmente escrito em 1936, nos convoca a um desvio da obviedade da sociedade da informação:
Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações. Em outras palavras: quase nada do que acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação (BENJAMIN, 2012, p. 219).
A inflação da informação reitera a governamentalização de nossa própria sensibilidade, como propagação do tédio, do medo e do horror.
Curiosamente, em 2019, o professor Eduardo Viveiros de Castro diagnosticou, de modo muito próximo ao de Benjamin em sua visada sobre os anos de 1930 na Europa, o horrível desfilar de informações que nos são impostas desde as vésperas das eleições presidenciais de 2018 no Brasil, marca inquestionável de nossa vertiginosa e repetida escalada ao fascismo tropical, como nos lembram Mizoguchi e Passos (2019) no ensaio Antifascismo Tropical. Diz-nos Viveiros de Castro (2019, p. 6-7):
Como continuar falando quando não há mais adjetivos suficientemente fortes para qualificar a situação e seus protagonistas? Quando cada manhã traz notícias mais mortificantes que as da manhã anterior; quando o ritmo das absurdidades anunciadas é tal que cada novo absurdo faz sombra ao precedente […]?
As histórias transmitidas como informações não são mais surpreendentes, como apontava Benjamin (2012), e se adicionam ao conjunto de notícias amargas e autoritárias. O que fazer diante do acúmulo de informações que estremecem nossa confiança em nós mesmos? Como instituir formas resistentes, mesmo que precárias, de narrativas que não sejam mortificantes e que se sustentem numa relação imediata com a vida que não queremos que morra sob a política oficial que apregoa o Brasil “acima de tudo e Deus acima de todos”?
Seguimos as pistas deixadas por Benjamin (2009, p. 142), que afirma que “onde as crianças brincam, existe um segredo enterrado”, segredos de reencantamento do mundo. Há uma narrativa “Iorubá” que conta que os únicos que conseguiram vencer a morte foram duas crianças. A história conta que Icu, a morte, havia colocado diversas armadilhas em todos os caminhos, e assim “homens, mulheres, velhos ou crianças,” ninguém escapava de sua voracidade. Icu devorava os humanos antes que o tempo de morrer tivesse chegado. Todos se uniram na tentativa de parar a voracidade de Icu, sábios, curandeiros, bruxos…, Mas Icu derrotava um a um. Foi quando os gêmeos Ibejis tramaram um plano para deter a morte. Caminharam pela floresta na direção de uma de suas armadilhas, uma das crianças ia pela trilha perigosa, tocando seu tambor, enquanto a outra a seguia escondida, acompanhando à distância. A morte ficou maravilhada com o toque do tambor, dançava enfeitiçada. Não quis que a criança morresse e lhe avisou da armadilha. Quando a criança que tocava o tambor se cansava, o irmão gêmeo tomava seu lugar e, assim, elas se revezavam no toque do tambor. Enquanto isso, a morte não conseguia parar de dançar, pois, ainda que estivesse exausta, o toque era irresistível. Icu passou então a implorar para que parassem de tocar um pouco, pois precisava descansar. Então, as crianças lhe propuseram um acordo: iriam interromper a música se ela retirasse todas as suas armadilhas. Assim conta a história de como os Ibejis salvaram os humanos da morte antes da hora (PRANDI, 2001).
Em 1936, Walter Benjamin guia o pensamento a vasculhar as ruínas da tradição de contar e ouvir histórias no célebre texto traduzido como O Narrador (2012) e posteriormente como O Contador de Histórias (2018). A figura do contador de histórias surge como um sobrevivente, como ruína da tradição, na modernidade. As duas figuras arcaicas do contador de histórias são o marinheiro, que traz histórias de lugares distantes, e o camponês, que vive a passagem do tempo no mesmo lugar e, por isso, acumula histórias e experiências a serem transmitidas.
Assim, contar e ouvir histórias pressupõem algo que se efetua pelos movimentos da distância no tempo e do deslocamento no espaço: o artesão que tem a experiência do tempo em um mesmo lugar e o marinheiro que recolhe histórias de lugares distantes. Essa ideia aparece também na discussão empreendida por Ricardo Piglia (2012), para quem a verdade sempre aparece como ficção que desloca o relato para um outro que permite tornar possível o que se quer dizer. Encontramos esse gesto de partilha da transmissibilidade quando o porta-voz zapatista5 pede que Eduardo Galeano escreva a história da luta por libertação e a história das crianças para quem o Deus dos ricos esqueceu-se de deixar um anjo da guarda.
No motivo da escrita desse ensaio, manifesta-se uma força política que nos impele a acompanhar movimentos de imagens no exílio de um tempo de infância operadas por Walter Benjamin no encontro com o deslocamento da espacialidade instável da modernidade. Na luta política contra o esquecimento da disputa em torno da verdade pelo lado minoritário da história – em tempos de crescimento dos discursos de defesa de um território nacional, pátria fortificada, muros e fronteiras.
As crianças dos diferentes espaços e territórios do Brasil, apelando para que uma nova história possa ser contada, agoniadas com o regime austero imposto a elas e a grande parte de nós, nos lembram da imagem arquetípica que constitui a composição do tempo presente: de novo, uma nova história. Contar e ouvir histórias que possam interromper o fatalismo convergem com a experiência das crianças, testemunhas tenazes do tempo que atravessamos.
Explodindo a pedagogia do continuísmo e da quietude, as crianças dos textos de Benjamin (1987) não se satisfazem com as informações, contínuo fragmento de gestão de nossa sensibilidade neutralizada politicamente. As histórias narradas sob as ruínas do presente podem reativar nossa relação com o passado e com o próprio tempo histórico. O apelo narrativo de Walter Benjamin pode estar mais próximo da tarefa de estabelecimento de uma ética nos tempos presentes do que imaginávamos. Cansados da submissão ao tempo acelerado da informação, podemos nos aproximar da importância ética de contar.
Herdeira das ruínas da tradição de contar histórias, a infância reanima o potencial de fazer dessas narrativas longínquas certa matéria-prima de orientação para o presente e o porvir. Histórias para despertar e para adormecer posicionadas na exata indistinção entre ação e imaginação. É nessa indistinção liminar cujo efeito provém da possibilidade de ouvir uma história que está sendo contada que podemos vislumbrar a possibilidade de despistar um “eu” individualizado e solitário, descompromissado com o que lhe acontece coletivamente. É a tensão de forças – entre o sono e a vigília – que liberta a imagem de um mero devaneio onírico para lançá-las aos apelos coletivos do presente e da história. Há, dessa forma, a efetuação de um jogo paradoxal nesses “dois componentes da memória”, escreve Gagnebin (2013, p. 25), em uma dinâmica que “submerge a memória individual” e que, ao mesmo tempo, “recolhe, num só instante privilegiado, as migalhas do passado para oferecê-las à atenção do presente”.