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Discutindo projetos de vida com crianças e adolescentes em vulnerabilidade social

Imaginar o que se deseja para a vida adulta faz parte do processo de construção da identidade na infância e adolescência. Entretanto, saber como realizar seus desejos pode ser um desafio quando os projetos são pouco claros e limitados e, sobretudo, em contextos sociais em que as condições materiais e simbólicas são desfavoráveis. Na adolescência, pode haver a experimentação do presente de forma mais imediata, sem se questionar sobre as consequências das escolhas atuais para o que se almeja na fase adulta. Segundo Teixeira (2005), adolescentes têm muitos anseios, mas nem sempre sabem dizer o que fazer no presente para realizar seus desejos no futuro, pois há dificuldade em identificar as relações que existem entre o hoje e o amanhã. Além disso, a pouca clareza das escolhas profissionais pode contribuir, para além dos demais desafios, para um processo de distanciamento dos seus projetos de vida, gerando frustrações (Sarriera et al., 2001).

A adolescência é uma fase marcada por descobertas associadas à formação cognitiva e pelas influências do seio familiar. Assim, as principais escolhas da vida e projetos de adolescentes começam a ser construídos a partir da autoimagem e daquilo que projetam atingir em função da sua subjetividade (Serrão; Baleeiro, 1999).

Dessa maneira, a adolescência constitui-se como um processo de construção da identidade, que envolve novas buscas, escolhas e relações diversas que se estruturam e podem gerar ansiedade, medo e insegurança (Nascimento, 2002).

A adolescência é considerada uma fase de transformações psicológicas, físicas e sociais. O reconhecimento do indivíduo nessa etapa da vida como sujeito de direitos corresponde a um processo histórico que, no Brasil, se concretizou na década de 1990, com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Entretanto, foi só a partir dos anos 2000, sobretudo pela atuação dos novos movimentos sociais, que o sujeito adolescente passa a ser concebido também em sua autonomia, como protagonista (Moraes; Vitalle, 2015).

Para que crianças e adolescentes se desenvolvam plenamente como pessoas adultas e cidadãs, são necessários tempos de vivências e relações de qualidade que possibilitem o autoconhecimento, a experimentação e o desenvolvimento de suas habilidades. A/o adolescente é fruto de uma construção social e histórica, marcada pelas condições de gênero, étnico raciais, de origem social e de outras dimensões que a/o constituem, cujas especificidades precisam ser levadas em conta no momento de planejar o futuro (Leão; Dayrell; Reis, 2011).

Considerando as condições de vida de adolescentes e suas famílias em situação de vulnerabilidade social, Ferretti (1988) reconhece que limitações no acesso à saúde, educação, trabalho, lazer e cultura podem estar associadas a um conjunto de desvantagens sociais. Essa realidade reduz, ainda mais, as expectativas desses jovens quanto às escolhas profissionais.

Essas vulnerabilidades produzidas pelas desigualdades sociais, resultantes dos processos de exclusão e discriminação, podem incluir a baixa escolaridade, a exploração do trabalho e a privação da convivência familiar e comunitária. Ademais, em alguns casos, são vivenciadas situações críticas que vão desde homicídios, gravidez na adolescência e infecções sexualmente transmissíveis, entre elas a contaminação por HIV/Aids, à exploração sexual e uso abusivo de drogas. Esses aspectos da pobreza são considerados obstáculos para a consolidação dos direitos de adolescentes, pois dificultam o seu pleno desenvolvimento e impedem a realização de escolhas afetivas e profissionais saudáveis na vida adulta (UNICEF, 2011).

Nesse contexto, adolescentes em situação de vulnerabilidade possuem sua autonomia reduzida. Autonomia que, segundo Navarro e Andrade (2007), é definida como a liberdade individual e o poder de escolher o que é melhor para si. Essa privação, reproduzida ao longo das gerações, instala o denominado ciclo intergeracional da pobreza. Esse é mais perceptível entre adolescentes do sexo feminino de baixa escolaridade que, continuamente, sofrem discriminação de gênero. Essas jovens são conduzidas, direta ou indiretamente, para uma vida marcada pela miséria, que pode culminar no casamento infantil e, em muitos casos, na violência doméstica (UNICEF, 2011).

Dessa forma, ações de educação em saúde que visam à promoção da qualidade de vida junto a crianças e adolescentes auxiliam a/o jovem a desenvolver uma melhor compreensão do mundo, dos outros e de si, contribuindo também para o fortalecimento da autonomia em suas escolhas. A construção da autonomia está profundamente associada à resiliência do indivíduo, ou seja, sua habilidade e força de vontade para enfrentar os obstáculos sociais e encontrar saídas criativas frente aos desafios que a vida lhe impõe. Acreditar em si é um aspecto relacionado à autoestima, que se constitui como um requisito indispensável para se conquistar a autodeterminação (Assis; Avanci, 2004; Costa; Bigras, 2007). A resiliência, entretanto, não se resume às características individuais. Ela se relaciona justamente com as condições sociais e culturais do território em questão. A resiliência se define nas relações grupais, estando intrinsecamente ligada à dimensão relacional das redes afetivas e de apoio social, dos quais emergem elementos restauradores para o desenvolvimento. Essas redes protetivas de interação podem constituir processos coletivos direcionados à educação (Juliano; Yunes, 2014).

Assim, a educação em saúde como estratégia para a participação ativa de adolescentes na condução de suas atitudes, sentimentos, conhecimentos e habilidades se faz essencial para que aprendam a lidar com os problemas e conflitos do dia a dia, visando ao desenvolvimento e ao alcance de projetos de vida (Azevedo; Vale; Araújo, 2014).

O delineamento de um projeto de vida pode servir como orientação para que adolescentes descubram suas potencialidades e limitações, compreendendo os caminhos mais favoráveis para a sua realização. São projetos em construção que permitem ao sujeito se refazer e se modificar com o tempo, desenvolvendo estratégias individuais que ajudem a refletir o passado, situar-se no presente e a projetar o futuro (Gomes et al., 2016; Mascarenhas, 2019).

Assim sendo, este trabalho teve por objetivo analisar uma experiência de preparação de crianças e adolescentes para refletir sobre os seus projetos de vida. Por meio de estratégias de educação em saúde, as oficinas educativas, realizadas com um público em vulnerabilidade social, colocaram em pauta a promoção de melhorias na qualidade de vida das/os participantes, de suas famílias e da comunidade em que estão inseridas/os.

Métodos

Delineamento

O trabalho com projetos de vida por meio de oficinas educativas de educação em saúde foi realizado durante 10 meses, nos anos de 2016 e 2017, em uma casa de assistência filantrópica gerida por uma igreja católica do bairro, que busca promover um espaço de formação permanente para adolescentes de uma comunidade localizada no município de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. A casa situa-se em um bairro periférico e atende estudantes de 6 a 15 anos, de classes populares, de famílias de níveis econômicos baixos, marcadas por um contexto de desigualdades.

A pesquisa foi realizada após aprovação de seus procedimentos pelo Comitê de Ética do Instituto René Rachou/ Fiocruz Minas, Brasil, que regulamenta pesquisas envolvendo seres humanos.

Organização das oficinas e coleta dos dados

Ao definir a faixa etária das/os participantes do estudo, considerou-se a necessidade de trabalhar os temas de forma mais processual com estudantes do Ensino Fundamental. O objetivo era levar crianças e adolescentes a refletirem sobre seus projetos de vida nessa fase de construção da sua identidade, evitando que apenas ao final do Ensino Médio houvesse oportunidade para a reflexão sobre a escolha profissional. A seleção de participantes seguiu os seguintes critérios de inclusão: crianças e adolescentes na faixa etária entre 9 a 15 anos, alfabetizada/o e matriculada/o na casa de assistência.

Como instrumentos de coleta de dados, foram utilizados um questionário diagnóstico, os registros das oficinas educativas produzidos por participantes e o diário de campo. Para identificar o perfil da/o participante, foi elaborado um questionário de modo a construir um diagnóstico para elaboração das oficinas e conhecer o público do trabalho. O instrumento foi revisado e posteriormente aplicado, adotando-se o modelo proposto por Pilon (1986), retratando informações relacionadas à inclusão social e perspectivas quanto às condições de vida da/o estudante. Foram coletados dados sociodemográficos sobre a idade, gênero, raça, escolaridade, tamanho da família e conhecimento sobre a ocupação das/os responsáveis. O instrumento final constituiu-se de 40 questões que foram auto preenchidas e cada participante foi identificada/o por número, respeitando seu anonimato.

No planejamento das oficinas, a partir do conhecimento do perfil do grupo envolvido, foram definidos os temas, as técnicas grupais e as atividades educativas e reflexivas que seriam utilizadas para alcançar o objetivo de trabalhar o desenvolvimento de projetos de vida. As oficinas aconteceram no formato de dinâmica de grupo, elaboradas a partir das teorias de grupo de Pichon-Rivière (1994) e da educação libertadora de Paulo Freire (2002). A oficina define-se como um trabalho estruturado em grupos, que trata sobre um tema que seja do interesse coletivo das/os participantes de um determinado contexto social (Afonso, 2000).

As ações de educação em saúde junto a adolescentes e o desenvolvimento dos temas e das atividades das oficinas basearam-se no conceito de protagonismo proposto pela Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS) (Brasil, 2010). Para isso, foram trabalhadas ações que incentivassem o grupo ao autoconhecimento, à autoestima, relações dialógicas com familiares e vínculos afetivos, cuidados integrais ao corpo, práticas de atividades que valorizassem seu potencial físico, cognitivo e afetivo, aspectos considerados essenciais para a construção de um projeto de vida.

Foram trabalhados centralmente os seguintes temas: manifestação das emoções e convivência familiar; autocuidado; desigualdades; violências; drogas; cidadania; direitos sexuais e direitos reprodutivos e escolha da profissão. Alguns temas específicos foram incluídos e desenvolvidos conforme demanda do grupo, como gênero, sexualidade e relações étnico-raciais.

As oficinas tiveram duração de 50 minutos e ocorreram em 41 encontros, que aconteceram semanalmente, conduzidas pela pesquisadora responsável. Estudantes do turno da manhã e da tarde participaram das oficinas. O grupo de 27 participantes, sendo 13 meninas e 14 meninos, foi dividido em 3 turmas com 9 participantes cada. A partir do material produzido pelas/os participantes, realizou-se a análise de conteúdo. Houve também registro de observações e de perguntas do grupo em um diário de campo.

No encerramento dos encontros, as/os frequentadoras/es da casa de assistência foram convidadas/os a participar de uma Mostra de Profissões, baseada nas profissões citadas nos questionários respondidos. Tal iniciativa se deu em função do grande interesse pela questão das profissões demonstrado pelas/os participantes. Estiveram presentes na Mostra: advogado; veterinária; médico; engenheiro; modelo; atleta; policial e bombeiros. Cada um/a apresentou a sua trajetória profissional e as atividades desempenhadas no exercício do seu trabalho.

Um último encontro foi agendado para apresentar às/aos estudantes outras possibilidades de formação, diferentes daquelas indicadas por eles que, em sua maioria, era em nível de graduação. Os cursos técnicos foram listados abrangendo as variadas áreas, bem como as instituições presentes na cidade de Belo Horizonte, Brasil, a forma de acesso, o tempo de estudo e a gratuidade do ensino.

As mães, pais e responsáveis também foram convidadas/os a participar de um encontro cujo tema era A participação da família na construção dos projetos de vida de adolescentes, tendo a presença de sete pessoas, entre elas pais, mães e avós.

Análise dos Dados e Referencial Teórico

Os dados foram classificados, categorizados, analisados e interpretados com base na fundamentação teórica da análise de conteúdo, seguindo os referenciais de Bardin (2011) e Minayo (2014).

O tamanho do grupo analisado considerou a saturação teórica, sendo a coleta de dados suspensa assim que os elementos novos não subsidiaram a compreensão do fenômeno pretendido (Fontanella et al., 2011).

Cláudia Gersen Alvarenga gersenclaudia@hotmail.com

Bióloga pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil e Mestra em Ciências da Saúde pelo Instituto René Rachou (Fiocruz Minas), Brasil. Pesquisadora na área de Saúde Coletiva, com ênfase em educação em saúde, adolescentes, escola, sexualidade e masculinidades.

Laís Barbosa Patrocino laisbp89bh@gmail.com

Cientista Social e Mestra em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil, e Doutoranda em Saúde Coletiva pelo Instituto René Rachou (Fiocruz Minas), Brasil.
Pesquisadora nos campos da educação em saúde, sexualidade e violência contra meninas e mulheres, especificamente a divulgação não autorizada da intimidade.

Lucas Barbi lucbarbi@gmail.com

Pesquisador na área de Saúde Coletiva, na área de Ciências Sociais e Humanas em Saúde com ênfase na avalição de serviços e intervenções participativas em saúde. Cientista Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil, Mestre e Doutorando em Saúde Coletiva pelo Instituto René Rachou (Fiocruz Minas), Brasil.