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Epistemologias do Sul e cotidiano escolar: Desaprendizagem, desobediência e emancipação social

Pinóquio, Lilith e Eva: a desobediência, o livre-arbítrio e a humanização

O livro original Pinóquio (Collodi, 2011) traz uma contribuição importante sobre a questão da desobediência em si e do cenário em que ela se inscreve. O autor se serve de máximas sobre a obediência e o bom comportamento para criticar, ironicamente, a moral vigente na Itália da segunda metade do século XIX e o valor da obediência às suas regras.

A ideia de que Pinóquio pôde se tornar um menino de verdade porque desobedecia ganha múltiplos outros sentidos quando examinada de perto. Mais do que desobediente — o que também é —, Pinóquio é um pedaço de madeira que sente, nos dois sentidos do termo (tem sentimentos e sensações), e faz escolhas, logo, é dotado de livre arbítrio. E esse livre arbítrio é exercido, durante quase toda a obra, para a busca do prazer, o que de certa forma permitiria aproximá-lo do mito de Lilith, cuja revolta contra Adão está, também, ligada ao fato de que ele lhe negava o prazer de estar por cima dele no ato sexual, conforme a maior parte das narrativas encontradas sobre a origem do mito (Noguera, 2018; Robles, 2019; Sicuteri, 1985). Lilith teria sido a primeira mulher de Adão, feita do mesmo barro que ele e, portanto, igual a ele e não inferior. Sua não aceitação da submissão levou-a a rejeitar a vida no paraíso. Por isso, foi banida e enviada a viver com os demônios, tendo talvez se transformado em um, conforme a narrativa. Seu banimento da Bíblia em benefício de Eva, supostamente inferior, contribuiu muito para a consolidação do machismo nas sociedades contemporâneas e sua opção pela liberdade, pela autonomia e pelo que considerava certo soa bastante desconfortável em cenários de valorização da obediência.

Assim sendo, quando buscamos na desobediência de Lilith, Pinóquio e Eva o próprio do humano, encontramos a ideia do livre arbítrio, da capacidade de escolher como fundante do ato de desobedecer, o que o vincula de modo inequívoco à natureza humana. Seja nas narrativas bíblicas e nas afirmações que trazem sobre a criação do ser humano como dotado de livre arbítrio, seja em estudos científicos de diferentes matizes, que afirmam o homo sapiens como a única espécie animal com capacidade de reflexão, encontramos a desobediência como uma faculdade humana, derivada da capacidade de fazer escolhas, obedecendo, então, a si próprio (Gros, 2018).

Associar as noções de desobediência e desaprendizagem implica, ainda, considerar que somos educados para a obediência e, mais do que isso, aprendemos — ao contrário do que nos mostram os argumentos acima — que nos humanizamos na obediência (ibidem). Em casa ou nas escolas, o “bom menino” e a “boa menina” são aqueles que aprendem cedo a obedecer, e mesmo a narrativa de Pinóquio, segundo a Disney, mostra isso. Os que desobedecem são mal vistos como rebeldes, pouco educados, incorrigíveis (Foucault apud. Gros, 2018). E tanto Pinóquio, como Lilith e Eva foram exemplarmente punidos.

Nessas histórias, encontramos sempre o exercício do livre arbítrio, essa capacidade de desobedecer a normas de validade duvidosa, na busca de algo melhor do que aquilo que o status quo oferece — que os valores morais hegemônicos aceitam como certo, como razoável e como “civilizado”. Assim, o livre arbítrio é quem nos dá a capacidade de desobedecer, mas ele não é só guiado pela racionalidade, o é também pelos desejos e pela curiosidade. Pinóquio, Lilith e Eva usam essa capacidade de escolher para dizer não ao que seria “normal” que fizessem, insurgindo-se contra a realidade e suas normas. Sejam as regras impostas a Lilith e Eva pelo Criador e por Adão, sejam aquelas da moral italiana do final do século XIX, todos escolhem arriscar os castigos que lhes são/serão impostos, aparentemente de modo “irracional”, considerando, sobretudo, o peso das punições. Lilith foi transformada em demônio e banida, entre outras penas, que aparecem de modo contraditório nas diferentes narrativas sobre o mito (Noguera, 2018; Robles, 2019; Sicuteri, 1985); no caso de Eva, foi a queda do paraíso e a culpa pelo pecado original do ser humano, a busca do conhecimento, como percebemos, também, no mito de Prometeu, condenado por ter entregado aos humanos a capacidade de conhecer e, sobretudo, a liberdade.

Já em Pinóquio (Collodi, 2011), a obra se inicia narrando como, ainda apenas um pedaço de madeira, ele mostra que sente e pensa e, por isso, deixa de ser talhado como um pé de mesa para ser esculpido como marionete. Ou seja, a princípio, o pedaço de madeira que sente e pensa só ganha direito a se tornar uma marionete e não um humano. Mas Pinóquio é uma marionete incontrolável, diferente, portanto, das comuns. Desde o início, é uma marionete com humor, com ideias próprias e que toma decisões, sempre com mais paixão do que razão, outro ponto importante para as reflexões deste texto. E, contrariamente ao que uma leitura aligeirada da história possa fazer supor, o direito a se tornar humano advém não dessa capacidade de escolher, nem dos conflitos razão/paixão que habitam a personagem. Ele emerge quando Pinóquio se mostra capaz, no final da história, de ser generoso e solidário.

Associamos essa ideia ao que afirma a antropóloga Margareth Mead (s.d.), confirmando, mais uma vez, a validade da argumentação que tecemos neste texto sobre a solidariedade e a necessidade de desaprendizagem dos valores competitivos. Questionada sobre qual seria, para ela, o primeiro sinal de uma civilização, ela responde que é o cuidado com o outro, a solidariedade, em vez de associá-lo a algum tipo de domínio de tecnologias ou modo específico de vida. Diz a narrativa capturada das redes sociais:

Há muitos anos, um aluno perguntou à antropóloga Margaret Mead o que ela considerava ser o primeiro sinal de civilização numa cultura. […], Mead disse que o primeiro sinal de civilização numa cultura antiga era um fêmur (osso da coxa) quebrado e cicatrizado. Mead explicou que no reino animal, se você quebrar a perna, morre. Você não pode correr do perigo, ir até o rio para beber água ou caçar comida. Você é carne fresca para os predadores. Nenhum animal sobrevive a uma perna quebrada por tempo suficiente para o osso sarar.

Um fêmur quebrado que cicatrizou é evidência de que alguém teve tempo para ficar com aquele que caiu, tratou da ferida, levou a pessoa à segurança e cuidou dela até que se recuperasse. ‘Ajudar alguém durante a dificuldade é onde a civilização começa’ disse Mead (Daz, 2020).

Ao longo dos estudos e reflexões que vimos fazendo, vimos avançando nessa convicção social, epistemológica, política e educacional de que está na desobediência, na desaprendizagem da obediência às normas da sociedade capitalista atual, um conjunto de possibilidades emancipatórias junto ao investimento da humanização efetiva, e o quanto essas abrem possibilidades, tanto ou mais que a racionalidade, características fundantes do humano.

A questão da desaprendizagem como desobediência e a tessitura da emancipação social

Esclarecendo, com Santos (2018, p. 261), que “desaprender não significa esquecer. Significa lembrar de modo diferente”, vimos sendo levadas a percorrer uma nova rota de abordagem da questão da formação para a emancipação social. Isso nos levou paralelamente a buscar argumentos em defesa da nossa ideia em outros campos de estudo. Na psicologia, encontramos a ideia de que processos terapêuticos buscam nos levar a repensar vivências negativizadas para nos renovarmos e tecermos novas formas de convivência com elas, renovando a compreensão que delas temos, desaprendendo e “lembrando-as de outro modo” (ibidem). A renovação identitária promovida por esses processos terapêuticos pode ser entendida, portanto, como processo de desaprendizagem, pelo desfazimento de construções anteriores e de novas construções. Uma maneira de, em linguagem mais coloquial, livrarmo-nos do que nos ocupa negativamente, abrindo espaço para o novo.

Por outro lado, e complementarmente, encontramos em ditados populares, em filosofias minimalistas e em algumas correntes da filosofia oriental, ideia semelhante, formulada em outra perspectiva, mas resultando também na necessidade do esvaziamento, interno e externo, que permite a abertura de espaços para que novas possibilidades emerjam. Podemos, assim, considerar a desaprendizagem como forma de nos abrirmos mentalmente, ampliando “espaços” para a entrada de novas perspectivas de vida e de compreensão do mundo, que poderiam levar à superação daquilo que já sabemos ou já vivemos, como os preconceitos, a competição como valor e as hierarquias sociais, culturais e epistemológicas.

Pensar nessas perspectivas filosóficas e psicológicas é importante na defesa e na reflexão a respeito da desobediência, voltada agora para conceber o processo de escolarização numa perspectiva emancipatória e democrática como um processo fundamentado em desaprendizagens, entendidas como condição para que haja aprendizagens.

E é aqui que a questão da possível contribuição de processos de aprendizagemensino à emancipação social, se investidos na tentativa de fazer desaprender preconceitos, hierarquias e valores de competitividade, ganha destaque, já que sabemos, também a partir de Santos (2003), que a emancipação social depende da democratização de nossas próprias subjetividades (Oliveira, 2009), do investimento em mais justiça cognitiva — condição da justiça social — e do desenvolvimento de práticas de cidadania horizontal, nas quais a solidariedade coletiva se mostra. Nesse sentido, o autor propõe, em suas epistemologias do Sul, o reconhecimento daquilo que já existe socialmente — no nosso caso, chegaremos ao que já existe nas escolas — e que foi invisibilizado, negligenciado, desconsiderado pela modernidade e seu sistema de dominação capitalista, patriarcal e colonialista, buscando, a partir desse processo, desinvisibilizar existências negadas, reconhecendo sua presença no mundo e sua legitimidade. Por meio, portanto, da sociologia das ausências, ampliamos o presente, percebendo-o em sua pluralidade, e abrimos as portas para novos possíveis, ainda-não concretizados, mas presentes potencialmente nas realidades ampliadas pela desinvisibilização promovida anteriormente, praticando o que o autor vai chamar de sociologia das emergências (Santos, 2000).

A emancipação social e as epistemologias do Sul

[…] a emancipação não é mais que um conjunto de lutas processuais, sem fim definido. O que a distingue de outros conjuntos de lutas é o sentido político da processualidade das lutas. Esse sentido é, para o campo social da emancipação, a ampliação e o aprofundamento das lutas democráticas em todos os espaços estruturais da prática social conforme estabelecido na nova teoria democrática acima abordada (Santos, 1995, p. 277).

Com essa definição de emancipação social, Boaventura apresentava, em 1995, suas novas teorias da democracia e da emancipação, em um primeiro esboço de um pensamento que desemboca na formulação das epistemologias do Sul e de seus instrumentos principais, que são: “a linha abissal e os vários tipos de exclusão social que cria; a sociologia das ausências e a sociologia das emergências; a ecologia de saberes e a tradução intercultural; a artesania das práticas” (Santos, 2018, p. 47).

Em seu trabalho, o autor vai considerar o pensamento moderno como um pensamento abissal, que é um modelo fundamentado em distinções visíveis e distinções invisíveis, sendo que as primeiras seriam compreendidas pelas últimas ao mesmo tempo em que as invisibilizam. As distinções invisíveis se estabelecem através de uma linha que divide a realidade social em dois universos: aquilo que existe e o que é produzido como não existência (Santos, 2007), e delas deriva a exclusão abissal — daquilo que está do outro lado da linha — mascarada pela exclusão não abissal, daquilo que, estando deste lado da linha, é subalternizado. Ou seja, o pensamento moderno, em sua abissalidade, desconsidera a possibilidade de coexistência e copresença, assumindo determinados conhecimentos e culturas como verdadeiros e válidos e considerando todos os outros modos de estar no mundo e de compreendê-lo como falsos, inexistentes ou inferiores. Contra o pensamento abissal moderno, Boaventura formula o chamado pensamento pós-abissal:

O pensamento pós-abissal parte do reconhecimento de que a exclusão social no seu sentido mais amplo toma diferentes formas conforme é determinada por uma linha abissal ou não-abissal, e que, enquanto a exclusão abissalmente definida persistir, não será possível qualquer alternativa pós-capitalista progressista. Durante um período de transição possivelmente longo, defrontar a exclusão abissal será um pré-requisito para abordar de forma eficiente as muitas formas de exclusão não-abissal que têm dividido o mundo moderno deste lado da linha (ibidem, p. 23).

Definido como ecologia dos saberes, este pensamento assume como premissa o reconhecimento da diversidade epistemológica do mundo, da existência de formas plurais de conhecer o mundo além do conhecimento científico (ibidem). Condição para a justiça cognitiva, já que esta depende da possibilidade de validação de outras formas de conhecer o mundo e de nele estar, a ecologia de saberes se define assim:

Ao contrário das epistemologias modernas, a ecologia dos saberes não só admite a existência de muitas formas de conhecimento, como parte da dignidade e validade epistemológica de todos eles e propõe que as desigualdades e hierarquias entre eles resultem dos resultados que se pretendem atingir com uma dada prática de saber. É a partir da valoração de uma dada intervenção no real em confronto com outras intervenções alternativas que devem emergir hierarquias concretas e situadas entre os saberes (ibidem, p. 159).

O reconhecimento dessa pluralidade epistemológica do mundo e da relação não hierárquica entre os diferentes conhecimentos se inscreve nos procedimentos da sociologia das ausências, que visa a desinvisibilizar conhecimentos e práticas sociais tornados inexistentes, no sentido do reconhecimento e da valorização da inesgotável experiência social que está em curso no mundo de hoje (Santos, 2004). Essa sociologia é, para o autor, um método que permite (des)cobrir existências invisibilizadas pelo cientificismo moderno, que se autorizou a considerar inexistente ou negligenciável tudo aquilo que não se encaixava no seu modelo de racionalidade.

Ao mesmo tempo em que o pensamento pós-abissal promove a ampliação do presente, assumindo a copresença radical de diferentes conhecimentos, produzidos em diferentes contextos sociais e culturais, Santos (2004) considera ser necessário, paralelamente, promover a contração do futuro, operada pela sociologia das emergências. A ideia do autor é a de redução das expectativas radiosas — consideradas possíveis no cenário da modernidade e seu pensamento abissal, mesmo quando incompatíveis com as experiências do presente — fundadas na ideia da planificação da história e da concepção linear do tempo. Situada, portanto, no campo das expectativas sociais, a sociologia das emergências legitima aquelas produzidas em contextos específicos e que, no âmbito das “(…) possibilidades e capacidades, reivindicam uma realização forte e apontam para os novos caminhos da emancipação social, ou melhor, das emancipações sociais” (ibidem, p. 798).

Esta, então, é uma sociologia que se propõe a analisar as possibilidades de futuro inscritas em práticas, experiências ou formas de saber, “agindo sobre capacidades e possibilidades, identificando sinais, pistas e traços de possibilidades futuros em tudo que existe” (ibidem), tornando-se capaz de efetivar uma amplificação simbólica através do excesso de atenção a essas pistas.

A importância dessas sociologias para o que nos interessa neste texto está na viabilização que seus procedimentos trazem de recuperação da pluralidade de saberes e práticas sociais negados pelo pensamento abissal e pela identificação credível de saberes emergentes, ou práticas sociais emergentes (ibidem), que se constituem como desobediência aos ditames das epistemologias do Norte e suas formas de compreender o mundo e de validar seu próprio ideário:

Buscando legitimar modos contra-hegemônicos de produção de práticas educativas no sentido de credibilizar o saber-fazer que habita os espaços educativos como potencial contribuição às possibilidades de emancipação social, tanto no sentido do processo educativo em si, quanto no sentido mais amplo de uma possível contribuição da escola à transformação social democratizante, a adoção metodológica dos procedimentos inerentes à sociologia das ausências [e das emergências] parece, mais do que relevante, fundamental (Oliveira, 2016, p. 24).

É o que faremos a seguir, evocando para tal o último dos instrumentos das epistemologias do Sul, a artesania das práticas, que Santos (2018, p. 71) afirma consistir “no desenho e validação de práticas de luta e de resistência levadas a cabo de acordo com as epistemologias do Sul”. Para o autor, “quando enformado pelas epistemologias do Sul, o trabalho político subjacente às articulações entre lutas, tem muitas semelhanças com o trabalho do artesão” (ibidem, p. 71), bem como o trabalho cognitivo, que:

Não obedece a regras sem lhes imprimir sua liberdade no modo como obedece, se decide obedecer; não concebe conflitos, compromissos ou resoluções como parte de grandes planos ou opções transcendentes de transformação social com privilégio legislativo; reconhece determinações mas não o determinismo, e sente-se frequentemente a ter que operar em contexto de caos […]. Trata-se de um trabalho muito específico que mantém a universalidade à distância […] (ibidem, p. 72-73).

Inês Barbosa de Oliveira inesbo2108@gmail.com

Mestre em Administração de Sistemas Educacionais pelo Instituto de Altos Estudos em Educação da Fundação Getúlio Vargas, Brasil, e doutora em “Sciences et Théories de L'éducation” pela Université de Sciences Humaines de Strasbourg, França. Pós-doutora pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal. Professora Adjunta do Programa de Pós-graduação em Educação (PPGE) da Universidade Estácio de Sá (UNESA), Rio de Janeiro, Brasil, e Professora titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Brasil. Atua na área de Educação, no campo de estudos do Currículo e do Cotidiano Escolar.