Patrícia Corsino – Lucia, você já começou a falar um pouco dessa agenda da infância, que é uma agenda internacional, quando traz a Associação Internacional de Sociologia (ISA). Você poderia falar um pouco mais sobre essa questão, dessa agenda internacional de estudos da infância e da juventude, que não é só uma discussão só da nossa realidade brasileira, mas que perpassa de uma forma mais ampla a sociedade?
Lucia Rabello de Castro – Isso é bem interessante, Patrícia, porque assim como eu chamei atenção para o nosso momento lá em 1998, de fundação do NIPIAC, que se articulou muito com o movimento nacional por conta do ECA, da Constituição de 1988, internacionalmente, esse movimento já estava em curso. Então, por exemplo, um dos maiores centros de estudos da infância, que se encontra na Noruega, em Trondheim, que é um instituto enorme, foi fundado em 1982. Eu me lembro de que fui lá quando eles fizeram o primeiro Congresso Internacional de Estudos da Infância, reunindo pesquisadores da infância. É interessante que não era um congresso de uma área disciplinar, mas sim um congresso aberto a pesquisadores da área da infância, completamente interdisciplinar. Isso foi em 1988. Houve um movimento de iniciativas de institucionalização de núcleos, de centros, de institutos, de observatórios. Tem o Observatório Jovens e Sociedade da Universidade de Quebec, que foi fundado na década de 90, também com essa característica de aglutinar várias áreas interdisciplinarmente. Por exemplo, universidades na Finlândia, que é um país que tem um olhar e um cuidado muito acentuado em relação à infância e a juventude, têm vários institutos ligados e direcionados às questões da infância e juventude. Há também em outros países, como Portugal e Estados Unidos. Essas iniciativas podem se firmar como lugares institucionais dentro das universidades, ou em institutos financiados por agências públicas ou até dentro das associações internacionais. Por exemplo, esse Comitê de Sociologia da Infância também começou na década de 80 e se instituiu como um comitê de pesquisa dentro da Associação Internacional de Sociologia mais ou menos na década de 90. Então, a gente vê com muita nitidez que é um movimento muito sistemático, crescente e que está causando um certo reboliço nos estudos da infância, porque é uma área que tem cada vez mais se firmado como uma área própria, que tem um campo de estudos. E, a partir disso, a gente vê que o número de publicações científicas tem crescido nessa área específica. Isso é um dado importante.
Patrícia Corsino – Como você vê essa discussão em termos da nossa realidade brasileira? E como você vê o lugar dessa iniciativa na UFRJ, de criação do NIAJ, um núcleo de estudos de infância, adolescência e juventude? Você falou do internacional, mas nós aqui do Sul também temos nossas questões.
Lucia Rabello de Castro – Exatamente. Na apresentação que nós fizemos no Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH) da proposta de um programa de mestrado do NIAJ, alguns comentários foram assim: “Como a UFRJ não tem ainda um programa nesse sentido?”. É um pouco esse sentimento, porque o NIPIAC foi crescendo, assumindo atuações cada vez mais importantes, tanto no cenário nacional quanto internacional, e foi acontecendo um amadurecimento de pensar onde nós estamos dentro da universidade e como esse lugar possibilita ou limita a nossa possibilidade de atuação. Esse foi um aspecto importante até para a gente poder dar esse passo que foi pensar se não deveríamos nos tornar um núcleo, agora dentro de uma perspectiva mais ampla. Porque é claro que o NIAJ suplanta o NIPIAC em termos de pensar seu lugar na estrutura da universidade, da UFRJ. O NIPIAC é um núcleo de estudos muito ligado às ciências humanas e sociais, e os professores que fazem parte são muitos do CFCH. E, atualmente, o NIAJ se pensa como um núcleo realmente interdisciplinar e de toda a universidade, incluindo o Centro de Ciências da Saúde (CCS), o Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas (CCJE), o Centro de Letras e Artes (CLA), incluindo esses centros que não estavam presentes na configuração do NIPIAC. Nesse sentido, eu acho que foi um amadurecimento gradual. É como se a gente tivesse que dar esse passo até por uma necessidade de poder realizar atividades que pudessem congregar mais gente e pudessem juntar outras áreas que não estavam originalmente presentes.
Patrícia Corsino – Não é comum esse tipo de iniciativa interdisciplinar nos estudos da infância, adolescência e juventude. Eu acho que o NIAJ é muito inovador, então, gostaria que você falasse mais um pouco desse panorama, sobre como esse núcleo se coloca no panorama nacional.
Cristiana Carneiro – Eu vou dar uma apimentada na pergunta da Patrícia. Pelo que a Lucia está trazendo, ainda na década de 80, as iniciativas mais internacionais já iniciavam sendo bastante interdisciplinares. Como isso chega aqui no Brasil? E o que teria de inovador aqui para nós nessa criação do NIAJ?
Lucia Rabello de Castro – Primeiro, eu destacaria o lugar que a UFRJ tem no panorama nacional em termos de uma universidade pública do porte da UFRJ, e com a capacidade que a UFRJ tem em termos de docentes, pesquisadores e produção. Nesse sentido, quando damos o passo de nos pensarmos como NIAJ, e não mais como NIPIAC, isso teve a ver com o lugar que a UFRJ precisa ocupar nessa área em termos nacionais, pois não existe nenhum lugar institucional dentro das universidades brasileiras que pense infância, adolescência e juventude. E eu acho que pensando em termos inovadores, termo que a Cristiana usa, as universidades estão caminhando cada vez mais para a institucionalização de centros que são interdisciplinares, que agregam uma capacidade instalada, mas que vão facilitar justamente uma produção interdisciplinar mais convergente, uma produção em uma área de inovação. Então, eu penso, por exemplo, na possibilidade de as universidades criarem também os seus centros de estudos africanos, os seus centros de estudos do Sudeste Asiático etc., que são centros interdisciplinares. A nossa área vai nessa linha e, que eu saiba, não existe uma iniciativa similar em outra universidade pública. Mesmo na América Latina, o que existe em termos dessa institucionalização é o Centro de Estudos de Infância e Juventude, em Manizales, na Colômbia. É um centro muito interessante também, mas é de uma universidade particular, e ao qual, é até necessário dizer isso, acorrem muitos brasileiros interessados em fazer pós-graduação em infância e juventude. Então, a gente precisa correr no sentido de ter um lugar dentro do Brasil que possa atender aos interesses e às demandas também dos brasileiros, porque, cada vez mais, também se faz necessário pensar uma pós-graduação nessa área. Patrícia toca nesse ponto importante: cada vez mais se coloca a importância de se pensar teorias a partir do Sul, teorias da infância e da juventude a partir do Sul. A gente não pode se contentar em ser simplesmente país periférico que consome teorias feitas no Norte. A área de infância e juventude é uma área que, por excelência, está basicamente constituída, centenariamente, por pesquisadores do Norte. Eu acho que a gente tem hoje intelectuais brasileiros que trabalham a infância, a adolescência e a juventude que podem contribuir de forma significativa, específica e singular para a gente pensar as nossas questões a partir de formulações que digam respeito mais especificamente à nossa formação histórica, à nossa vocação como país, à nossa formação étnica, cultural e política. Então, é necessário que a gente tenha um lugar institucional para podermos realizar isso.
Patrícia Corsino – Isso é muito importante para pensamos o número enorme de crianças e jovens que temos no Brasil e na América e como nós vamos nos aproximando de um olhar mais específico, com questões mais próprias de cada território, de cada situação.
Cristiana Carneiro – E a importância de criar algo aqui no Brasil. A Lucia deu o exemplo de Manizales, que eles têm um protagonismo e uma proposta interessante, mas se os brasileiros também estão fazendo essa busca lá, é porque temos poucas ofertas aqui, nenhuma oferta aqui. Pensando um pouco nesse aspecto inovador, Lucia, queria lhe perguntar um pouco mais sobre essa proposta de criação de um mestrado interdisciplinar em infância, adolescência e juventude.
Lucia Rabello de Castro – A nossa proposta do NIAJ para a criação de um programa de pós-graduação interdisciplinar na área da infância, adolescência e juventude é também interinstitucional, porque temos no nosso grupo docentes e pesquisadores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), da Universidade Federal Fluminense (UFF), que são colegas que têm trabalhado nessa área de infância, adolescência e juventude. Então é importante que esse espaço possa, de alguma forma, concretizar esse lugar institucional para onde se convergem as discussões de muitos pesquisadores/as aqui do Rio. Você imagina um grupo como nós somos, de mais de 20 professores/as que estão incluídos na proposta do mestrado, que já estão carregando uma experiência de docência, de pesquisa na área da infância, adolescência e juventude em várias áreas disciplinares e que vão estar aí orientando, conversando, publicando conjuntamente, dando aulas conjuntamente. Eu acho que isso é uma potência que vai dinamizar esse lugar da infância e da juventude, dinamizar o conhecimento, o conhecimento brasileiro e latino-americano. Porque é claro que um programa de mestrado vai criar redes também na América Latina, principalmente, os nossos hermanos que também convivem com problemas semelhantes aos nossos. Então, que a gente possa voltar o nosso olhar muito mais para a América Latina do que para o Norte. Eu acho que persiste ainda essa rota viciante de, mesmo que com boas pós-graduações aqui, a gente tenha que fazer essa quase que validação de nossa formação no exterior. Mas eu acho que a potência de institucionalizar esse espaço de interlocução no Rio de Janeiro, com a UFRJ liderando isso, vai ter um impacto e uma consequência muito importante dentro da produção de conhecimento sobre infância, adolescência e juventude no país e também na América Latina. Até porque a gente sabe que o Brasil tem uma posição importante junto a outros países da América Latina, e eu acho que isso consolida essa perspectiva.
Patrícia Corsino – Lucia, você organizou um livro sobre metodologia de pesquisa, sobre metodologias mais participativas e de intervenção. Pensando também dentro do que nós podemos contribuir em termos metodológicos, acho que tem uma produção que vem de uma concepção de pesquisa, de olhar para esses jovens, muito inovadora. Eu acho que o NIPIAC teve esse lugar inovador de pesquisar com crianças e jovens. Recentemente estive em um evento on-line na Itália e uma francesa apresentou, como um trabalho inovador, fotografias tiradas por crianças. E eu falei assim “nossa, mas há quanto tempo a gente já faz isso no Brasil”. Eu fiquei bastante impactada de aquela metodologia estar sendo colocada como extremamente nova, enquanto a gente já fazia esse tipo de pesquisa aqui. Então é bem interessante mesmo como vamos inovando ao pesquisarmos com crianças e jovens, porque eles nos deslocam do lugar que estamos.
Lucia Rabello de Castro – Eu acho que isso é interessante, pensar sobre esse aspecto no sentido de uma certa invisibilização e não reconhecimento da produção brasileira, porque ela é publicada no vernáculo. O pensamento hegemônico na área, o pensamento internacional, não é versado em português, não lê português. Aí o que a gente produz de inovador fica completamente à margem de qualquer reconhecimento, de qualquer visibilidade. Isso tem sido muito discutido dentro do que hoje está sendo colocado como a geopolítica do conhecimento científico, da economia política do conhecimento científico, do lugar que nós do Sul ocupamos na contribuição em determinadas áreas. Então, por exemplo, a área de infância, adolescência e juventude, tem uma infinidade de aspectos em que a produção brasileira e latino-americana é extremamente inovadora, mas que, muitas vezes, nem os colegas do Norte reconhecem isso por uma incapacidade, impossibilidade, de acessar isso, mas também, e o que é pior, uma invisibilização para nós mesmos. Você pega, às vezes, artigos de colegas nacionais que estão citando e aumentando o Google Scholar de colegas do Norte, mas não leem as pesquisas do Sul, não nos leem. Isso é lamentável. E justamente, eu acho que, voltando à questão de uma pós-graduação, uma pós-graduação em infância, adolescência e juventude no Brasil, na UFRJ, ela tem que se dar conta desse problema político, geopolítico, do conhecimento e de proporcionar uma formação que seja uma formação crítica em relação a como que nós pesquisadores do Sul temos que nos posicionar. Eu acho que é um desafio certamente. É um desafio certamente que, em grupo, coletivamente, a gente vai enfrentar.
Patrícia Corsino – Falando em perspectiva do futuro, esse é o futuro dos estudos da infância e juventude, já que o tema do festival é o futuro.
Cristiana Carneiro – Estamos indo para o nosso último bloco. Dividimos a entrevista em três momentos. Nesse último, teriam duas questões: que você falasse um pouco sobre o que o NIAJ vem realizando e quais serão os grandes desafios dessa iniciativa. Você já falou um deles, que é a questão da internacionalização, como fazer isso e de que forma. Mas gostaria que você pudesse falar um pouco mais sobre isso.
Lucia Rabello de Castro – O NIAJ fez uma iniciativa de aprovação na UFRJ como um núcleo suplementar, mas foi uma iniciativa que foi no final de gestão do reitor Roberto Leher3, e a recomendação é que a gente pudesse aguardar. Acho que com os cortes que a gente vem sofrendo nas universidades públicas e agora, mais recentemente, a partir de 2018, com o desmonte do país e da universidade, principalmente da universidade pública, eu acho que certamente isso foi uma medida salutar e que talvez tenha sido necessário a gente ficar aguardando saber como os horizontes vão se delinear melhor. A gente está dentro de uma situação um pouco estranha, porque o NIPIAC continua funcionando enquanto núcleo, mas o NIAJ também está deslanchando. Recentemente, o grupo do NIAJ está fazendo uma série de rodas de conversa, de diálogos virtuais sobre a pandemia. O que vai ser muito interessante é que a gente vai trazer em cada roda de conversa profissionais, pesquisadores, docentes de áreas bem diferentes para falar da pandemia. Vai ser um desafio para nós e para o público para pôr em prática e exercitar a escuta e o diálogo interdisciplinar.
Temos uma outra iniciativa em curso, que é discutir como determinados temas podem ser vistos de uma forma interdisciplinar. Vou dar como exemplo “violência na infância e na juventude”, em que a gente tem a pesquisa da Psicanálise, a perspectiva do Serviço Social, e a da área médica, pediátrica. Então tem um texto que está sendo construído dessa forma, mas há outros textos com essa característica de propiciar um olhar e uma perspectiva interdisciplinar. Esses textos vão ser publicados na DESIDADES. E é claro que a nossa proposta do curso de mestrado está aguardando a abertura do edital de cursos novos da Capes, que é a proposta do programa interdisciplinar de infância, adolescência e juventude. Eu, por exemplo, estou sendo muito perguntada, porque já comecei a anunciar esse programa e os estudantes perguntam quando que o curso vai estar aberto. Então já há uma demanda.
Em relação ao público-alvo da proposta do mestrado, seriam estudantes e egressos de áreas, seja da Administração, da Economia, do Direito, da Educação, da Psicologia, da Medicina, da Enfermagem, que queiram ter um aprofundamento nas áreas de infância, adolescência e juventude. A gente vê também a oportunidade de profissionais que atuam nos campos da Justiça, da Educação e do Serviço Social de terem um aprofundamento nessas áreas. Eu diria, por exemplo, que seria muito bem-vindo que juízes que atuam na área da infância, da juventude e adolescência pudessem fazer uma formação necessária para entender melhor a dinâmica de jovens e crianças e poderem estar mais confortáveis para fazer os seus despachos nos seus processos.