“A cultura” em questão
O contraste entre as discussões suscitadas pela proposta de lei nos três países aqui considerados põe também em evidência particularidades quanto à associação entre “violência” e “cultura”. Visto a partir do Brasil e do Uruguai, este debate enfatiza a necessidade de uma mudança cultural e situa a “violência contra a criança” como uma questão desta ordem. No Uruguai, isto é claramente explicitado através da publicação do “Manual para a erradicação cultural do castigo físico e humilhante” (Arcoiris, 2008), elaborado por uma ONG local com o apoio financeiro da ‘Save the children’ e destinada à capacitação de técnicos da área social vinculados a serviços públicos ou privados. No Brasil, a proposta de legislar sobre o tema dos castigos físicos baseia-se numa produção bibliográfica que afirma a existência de uma “mania de bater” arraigada nas práticas educativas desde o período colonial (Azevedo; Azevedo, 2001; 2005). A justificativa que consta no projeto de lei encaminhado à Câmara de deputados retoma as pesquisas realizadas desde o final dos anos 80 pelo Laboratório de estudos da criança (Lacri) do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), cujo coletivo de pesquisadores aponta o recurso aos castigos físicos como uma prática cultural recorrente e legitimada no Brasil como método educativo (Ribeiro, 2013).
Na França, os argumentos a favor de uma lei contra castigos não põem em questão “a cultura” de modo totalizado, mas defendem a necessidade de mudar a maneira de educar e de exercer a parentalidade. As categorias “violência educativa” e “violência educativa ordinária”, bastante usuais neste país2, não são claramente formuladas no Brasil e no Uruguai. Assim, por exemplo, a associação “Eduquer sans frapper” (Educar sem bater), criada em 1997, mudou seu nome após uma pesquisa de opinião (TNS Sofres, 2009), na qual os pais afirmavam de forma recorrente: “nós não batemos em nossos filhos; só lhes damos pequenas palmadas”. A fim de desfazer qualquer ambiguidade, a associação passou a chamar-se “Ni claques, ni fessées” (Nem tapas, nem palmadas).
Nestes posicionamentos, fica claro o lugar da lei (e especialmente da expansão dos direitos humanos das crianças) como uma arena de tensas interlocuções em torno da modificação de padrões socioculturais. Nos termos de Segato (2006), nisto reside a importância pedagógica da lei: “sua simples circulação é capaz de inaugurar novos estilos de moralidade e desenvolver sensibilidades éticas desconhecidas” (Segato, 2006, p. 212). Pode-se dizer que o movimento mundializado pelo fim dos castigos físicos coloca-se em acordo com esta intenção. Na perspectiva proposta pela ONU, afirma-se que o principal objetivo da inscrição em lei da proibição dos castigos físicos é dizer aos pais (ou adultos) que eles não podem usar de violência sob o pretexto de educar as crianças (Organização das Nações Unidas, 2006). Afirma-se insistentemente o caráter educativo e não criminalizante da lei (Damon, 2005), e, portanto, a intenção de promover uma sensibilidade particular de acordo com a qual é inaceitável infligir sofrimento para educar ou afirmar autoridade.
No Uruguai, desde 2002, uma campanha de sensibilização contra maus tratos de crianças e adolescentes é realizada por ONGs e pelo governo federal. Sob o lema “Uruguai, país do bom trato”, anualmente, em torno de 3.000 adolescentes engajados por 140 organizações participam da campanha nacional “Un trato por el buen trato” no âmbito da qual realizam uma atividade de “vacinação simbólica” contra a violência. Visando promover uma “cultura do bom trato”, os adultos abordados recebem um “certificado de vacinação”, um adesivo e uma bala que simboliza uma “dose oral de doçura” (Claves, 2014). Em campanhas desta natureza, também realizadas em outros países da América Latina, busca-se mudar comportamentos, problematizar modos de agir e, portanto, incidir sobre as relações interpessoais. É, sobretudo, neste plano que “cultura” e “violência” estarão associadas.
Na França, os debates em torno da proposta de lei apresentam outra crítica cultural. Eles são a ocasião para que se discuta sobre a estrita separação entre as esferas pública e privada que caracterizaria esta sociedade. Em seguida, a advertência do Conselho da Europa à imprensa menciona a erupção quase vulcânica de reações irônicas em torno deste tema que, conforme observa Damon (2005), pode parecer anedótico. Para uns, legislar sobre o assunto seria percebido como uma intrusão insuportável na família, num país que permaneceria impregnado da cultura do ‘pater familias’. Para outros, o incômodo causado pela advertência recebida em 2015 deixaria entrever que a sociedade francesa atribui positividade ao direito de correção na esfera privada quando ela visa inculcar o respeito à autoridade. Nesta perspectiva, afirma-se que a sociedade francesa estaria pouco disposta a mudanças nas normas da vida privada (Dupont, 2015a, 2015b).
A partir desta leitura cruzada de desdobramentos locais da iniciativa globalizada de legislar sobre castigos físicos, foi possível observar a produção de reflexividade em relação a padrões socioculturais, tanto no sentido de contestá-los quanto para reforçá-los. Isto não é surpreendente quando se considera os direitos humanos (e os direitos da criança) como um campo de lutas simbólicas pela inscrição jurídica de uma determinada posição ética acerca da relação com o Outro (Segato, 2006). Historicamente, as mudanças de sensibilidade relativas à integridade corporal e ao que configura formas de invasão a este território (Héritier, 1996) estão estreitamente relacionadas às produções legislativas, a exemplo do que observa Vigarello (1998) em relação ao estupro.
No entanto, outra associação entre “cultura” e “violência” marca a defesa da proibição dos castigos físicos no Brasil e extrapola as intenções de transformação das sensibilidades. Neste país, onde as desigualdades sociais e os índices de violência são largamente superiores aos do Uruguai e da França, os defensores da proibição legal dos castigos físicos afirmaram que a violência na sociedade brasileira enraíza-se na violência familiar. Conforme a fórmula exaustivamente repetida durante a discussão do projeto de lei na Câmara de deputados: a sociedade brasileira é violenta porque a família é violenta. A partir desta leitura, a proibição dos castigos físicos seria um modo de pacificar a sociedade posto que a criança socializada sem violência não reproduziria este padrão de relação social. Colocada a serviço da proibição legal de castigos físicos, esta lógica, bastante simplista se considerarmos a complexidade do conflito e da violência na história do Brasil, tende a situar a violência em comportamentos herdados no âmbito doméstico. Na medida em que deixa em segundo plano fatores estruturais, econômicos e políticos da violência, da insegurança e da criminalidade no Brasil (condições de vida, acesso a serviços públicos, ao emprego, ilegalidades cometidas pela polícia etc.), pode-se afirmar que esta interpretação da violência social tende a contribuir para a manutenção do ‘status quo’.