Sophie Shapiro

A proibição legal de castigos físicos na infância: alguns contrastes entre Brasil, Uruguai e França

Considerações finais

Para concluir cabe retomar alguns pontos que se destacam no contraste entre Brasil, Uruguai e França quanto à proibição de castigos físicos, a partir dos dois eixos escolhidos: o tema das relações de poder e as associações discursivas entre violência e cultura. Em primeiro lugar, de modo geral, a resistência à colocação em lei da interdição de castigos físicos sugere a persistência simbólica da noção de adestramento que, apesar de associada a “outro tempo”, permaneceria viva como prerrogativa capaz de resguardar a hierarquia e o dever de obediência das crianças aos adultos. As diferentes posições quanto à proibição de castigos físicos deixam perceber múltiplas lógicas atuando nas relações educativas e tutelares e o interesse de abordagens etnográficas que permitam sair da oposição contra ou a favor de uma lei com este conteúdo para a compreensão do que está em jogo contextualmente (ver, por exemplo, Medaets, 2013; Fernandes, 2015). Em segundo lugar, para além de uma condição de dominação da criança (Delanoë, 2015), evidenciada pelos posicionamentos contrários à lei, a genealogia da construção do projeto de lei no Brasil e observações quanto a sua implantação no Uruguai indicam a relevância de manter-se ativa a hipótese de que a lei produza efeitos desiguais conforme a posição social das crianças e de suas famílias. Finalmente, o enlace discursivo que pude identificar entre as diferentes posições quanto à proibição universal de castigos físicos e formas de crítica cultural apontam diversos agenciamentos da noção de cultura associada ao tema da “violência contra criança”. Por um lado, atribui-se à lei a função de mudar a cultura ou, ao menos, o modo de educar e de exercer a parentalidade. Nesta perspectiva, ela seria um instrumento para mudança de sensibilidades culturais relativas à integridade corporal e ao que se designa como violação de direitos da criança. Por outro lado, vimos que no Brasil, a defesa da interdição legal de castigos físicos buscou apoio também num raciocínio que explica a violência social pela violência familiar fazendo abstração dos múltiplos fatores relacionados às altíssimas taxas de violência neste país. Se associarmos a esta lógica, a tendência também observada de situar as famílias pobres como as principais destinatárias da lei, corre-se o risco de que, indiretamente, esta iniciativa possa contribuir para reforçar a ideia de que as famílias pobres são as principais responsáveis pela violência social que, no entanto, vitima principalmente os seus filhos.

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Resumo
Desde o início dos anos 2000, os países signatários da Convenção sobre os direitos da criança (1989) são convocados a explicitar em lei o direito das crianças a serem educadas ‘sem nenhuma forma de violência’. Para além da categoria “maus tratos”, preconiza-se a proibição de um repertório mais amplo de atos designados através da categoria “castigos físicos, tratamento cruel e degradante”. Neste artigo, abordarei algumas ressonâncias locais desta ação transnacional, tomando como referência desdobramentos desta proposta no Brasil, no Uruguai e na França. Atenta às conexões entre direitos humanos e os processos de mudança nas sensibilidades, abordo a intenção desta lei em sua dimensão produtiva. Ou seja, na sua capacidade de jogar luz sobre posições de poder e de provocar crítica cultural.

Palavras-chave: leis, castigos físicos, direitos da criança.
Data de Recebimento: 30/09/2015
Data de Aceite: 21/03/2016

Fernanda Bittencourt Ribeiro feribeiro@pucrs.br

Doutora em Antropologia pela Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (EHESS, Paris, França), professora da faculdade e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), em Porto Alegre, Brasil. Coordenadora do Idades – Grupo de Estudos e Pesquisas em Antropologia (CNPq). Coeditora da Civitas – Revista de Ciências Sociais.