Destaco o lugar de “objeto” da criança nesta discursividade: “recambiar, emprestar”. E o lugar da mãe não é explicitado na fala, mas está implícito no contexto: ou ela é “incompetente” ou “tem má-fé”. E a amiga, de algum modo, é preservada: “demorou porque teve alguns problemas…”
A ambivalência afetiva (querer e não querer o bebê) é uma dimensão psicológica que pode ser observada no decorrer da gestação. Será que este sentimento não poderia estar presente em uma mulher pobre e soropositiva? Não se trata de tutela, piedade ou condescendência, mas sim de entender a subjetividade humana com uma postura menos moralizadora. Não sei ao certo como surge a palavra “emprestar”, mas assim foi registrada na delegacia. Se a mãe não quisesse o bebê, teria ido à sua busca? Se a busca por si só não garante o interesse, ela declara que mudou de ideia, a avó diz que ela (a mãe) cuida das crianças e, ainda assim, perde a guarda dos dois filhos.
Lendo o prontuário, percebo que a instituição teve um papel importante na recuperação da guarda e na “pequena”7 permanência no abrigo. A instituição valorizou as visitas da mãe, recomendou que a mesma recebesse apoio social e sinalizou a volta para a família. Acompanhei essa instituição há alguns anos e penso que isso pôde acontecer porque a instituição tem revisitado sua perspectiva sobre família, repensado seu papel.
Podemos construir muitas narrativas sobre os mesmos fatos. Podemos olhar para esta mãe pelas suas “faltas”: deixar a criança com amiga, ter HIV, ser pobre, não ter registrado o bebê, ter pensado em dar o bebê para alguém, ou pela lente das suas possibilidades e dificuldades: ela se mobilizou para encontrar o bebê, ficou preocupada, está com HIV, tem dificuldades financeiras, duas crianças pequenas para cuidar, dar o bebê poderia ser um modo de garantir que a criança receba cuidados etc. Narrativas diferentes também podem ser construídas sobre os abrigos, as delegacias e os conselhos tutelares, mas fica a pergunta: neste caso, como foram concebidas as crianças e suas necessidades? Como foram concebidas a família e as instituições? Que formação pessoas e instituições precisam ter para realizar trabalhos deste escopo?
Na resposta a estas questões, temos muitas dimensões e muitas possíveis respostas. Convido a pensarmos em alguns pontos. A terminologia utilizada mostra que a criança foi concebida como objeto e sua necessidade compreendida a partir de uma perspectiva moralizadora em relação à mãe. Talvez, ao invés da institucionalização, fosse possível um trabalho com a mãe e a avó para fortalecer as condições de cuidado das crianças no âmbito da família. O abrigo ajudou na desinstitucionalização justamente porque trabalhou com as potencialidades da família.
A formação profissional que penso como ideal deve estimular não somente a formação escolar/acadêmica como também a formação continuada mesmo para profissionais que têm nível superior. Nesta formação, é preciso incluir leituras e discussões de textos atualizados, problematizadores dos conceitos chaves envolvidos no trabalho. É relevante também pensar um processo de supervisão e/ou de discussão de “casos” e construção de projetos de trabalho. Vale lembrar que é importante incluir a dimensão afetiva, pois vínculos são criados, existem múltiplos sentimentos que emergem no cuidado com as crianças, os jovens, as famílias e com situações que envolvem vulnerabilidades, desamparo, fragilidades de alternativas. Em síntese, a formação precisa ser continuada e contemplar dimensões teóricas, práticas, éticas, políticas, afetivas.
7 – “Pequena” diante de institucionalizações que demoram 13 ou 14 anos. Entretanto, fica a reflexão: o que significa para uma mãe que está buscando os filhos ser separada das crianças por mais de 70 dias?