Foto: Leo Lopes

Crianças, jovens e suas famílias nas esquadrias da epidemia do HIV/AIDS

Letícia

M. descobriu que era soropositiva com 22 anos. Quando seu marido adoeceu trabalhava como empregada doméstica e, a pedido de sua patroa, realizou o exame. A confirmação do diagnóstico positivo para o HIV fez com que fosse demitida.

Nesse mesmo período, descobriu que Letícia, sua filha, também estava infectada pelo HIV. Ficou muito triste, porque havia realizado o pré-natal corretamente, mas, no terceiro trimestre, não solicitaram a realização do exame para investigar presença do HIV.

No bairro em que residia, por intermédio de um pedido de ajuda que sua mãe fez para a Igreja, muitas pessoas souberam da sua soropositividade. As pessoas do bairro e do prédio em que morava fizeram um abaixo-assinado, pedindo que mudasse dali. Ela não encontrava quem cuidasse da criança para que ela pudesse trabalhar.

Sem alternativas, buscou a instituição para cuidar de Letícia – que ali permanecia na semana, recebendo visitas no fim de semana. Para M., a instituição tem o sentido de escola que ajudou a cuidar de sua filha, que lá permaneceu por volta de três anos. No diário de campo, fiz o seguinte relato sobre a visita domiciliar.

Recebem a pesquisadora com carinho, convidam para o almoço. Quando o tema da AIDS surge, Letícia corre para fechar as janelas. Mãe e filha pedem que nos dirijamos ao fundo da casa, que tem chão de concreto. Fechamos as portas. Aí sim, elas podem falar à vontade sobre a AIDS. (relato de visita domiciliar – diário de campo)

Quando da realização da entrevista e visita domiciliar, ambas moravam com uma companheira da mãe em uma “ocupação” em região pobre da cidade de São Paulo. A mãe cuidava do próprio tratamento e do tratamento da filha. Entretanto, a filha não queria tomar remédios. A mãe, ainda que tenha realizado corretamente o pré-natal, sentia-se culpada. Aos 11 anos, Letícia não via muitas perspectivas. Não tinha coragem de contar para nenhum amigo(a) que tem HIV. Quando indagada sobre a AIDS, chorava intensamente: “É muito ruim ter isso”.

Neste caso, a institucionalização ofereceu oportunidade para que a mãe se reestruturasse e pudesse receber de volta sua filha, vivendo em uma família. O retorno aconteceu porque a instituição fez o movimento de retomar o processo de convivência familiar da criança. Juntas estão felizes. O desafio ainda é continuar a viver com medo, fechando as janelas para a sociedade preconceituosa.

Este caso, que se mostrou uma possibilidade de desinstitucionalização/suporte familiar, infelizmente é exemplar no sentido de promover a reflexão sobre os profundos sentidos das falhas no sistema de saúde. A mãe relata que fez o pré-natal, mas não pediram o exame para identificação do HIV no terceiro trimestre da gestação. E a menina nasceu após 1996, ano em que o protocolo da profilaxia para transmissão vertical já estava disponível no país.

Na atualidade, ainda nascem crianças com HIV no Brasil e, considerando que existe a possibilidade de prevenção, este fato é bastante grave. Excelente que tenhamos diminuído os índices da transmissão vertical, mas o caso de Letícia mostra o quão difícil pode ser para uma criança viver com HIV. É preciso – e possível – que nenhuma criança nasça com AIDS.

Poderia ainda citar muitas outras histórias e trajetórias. Estas duas histórias encontraram caminhos para desinstitucionalização e, considerando os relatos e processos, fica visível que as instituições tiveram um papel importante na desinstitucionalização, e só puderam agir assim porque apresentaram abertura para repensar concepções de infância e família e da própria instituição.

Entretanto, trajetórias assim coexistem com vidas que têm outros percursos. Instituições que, mesmo sem querer ou perceber, fazem julgamento moral da família (que, pela pobreza ou pelo modo como estabelece vínculos, é considerada inadequada para cuidar), famílias que efetivamente não têm condições de cuidar, crianças cujas referências familiares não são encontradas, famílias que acreditam que a instituição cuida melhor.

Elizabete Franco Cruz betefranco@usp.br

Psicóloga, Mestre em Psicologia Social, Doutora em Educação. Professora do Curso de Obstetrícia e do Mestrado em Mudança Social e Participação Política da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo, Brasil.