Foto: Rogelio Marcial

“Foi o Estado”: O caso dos jovens desaparecidos de Ayotzinapa e a crise política no México

Os pais dos desaparecidos receberam o apoio de um grupo argentino de antropólogos forenses, que, frente à desconfiança em relação ao governo, conseguiram detectar restos de ossos em diferentes fossas e reuni-los como deve ser feito. Por sua parte, o governo mexicano enviou muitos destes restos humanos para o Instituto de Medicina Forense da Universidade de Innsbruck (Áustria), especializado nestes casos. Até a data de hoje, sabe-se que um dos ossos menos calcinados encontrados no lixão de Cocula (Guerrero) pertenceu a um dos estudantes de Ayotzinapa (Alexander Mora Venancio). Os demais foram analisados pelos especialistas austríacos, que concluíram quatro meses depois dos acontecimentos que “[…] depois da aplicação de uma técnica de quantificação muito sensível para avaliar a quantidade de DNA mitocondrial, não se encontrou quantidade útil de DNA que permitisse obter um perfil genético sob esta técnica” (La Jornada, 2015b). O passo seguinte é aplicar outra técnica mais sofisticada, conhecida como sequenciamento massivo paralelo, que consegue detectar mais DNA do que a já empregada de quantificação. No entanto, os especialistas austríacos não garantem ter sucesso com esta técnica devido ao grau de calcinação dos ossos enviados. Esclareceram, porém, que é altamente provável que, depois de aplicá-la, os restos fiquem ainda mais deteriorados e incapazes de contribuir com alguma informação. No relatório, reconhecem que é o caso mais difícil que já enfrentaram em sua história e que não seria possível obter nenhum resultado antes de três meses (isto é, até o final de abril de 2015). O Procurador Geral da República, Jesús Murillo Karam2, com o argumento de que se a evidência não contribui com dados então já não é evidência, autorizou o laboratório da Universidade de Innsbruck a proceder com a nova análise. Ante a dificuldade deste caso forense, especialistas alemães também ofereceram o seu apoio ao governo mexicano.

Em 23 de outubro de 2014, Ángel Aguirre Rivero solicitou licença do cargo de Governador de Guerrero, a pedido do seu partido político, o PRD, para ajudar com isso nas investigações. Existia a exigência de se declarar o “desaparecimento de poderes”3 em Guerrero e esta saída do governador era uma tentativa de não se chegar a isso. O Congresso estatal nomeou Rogelio Ortega Martínez como governador interino até novas eleições4. Por sua vez, a PGR, encabeçada por Murillo Karam, deteve quase uma centena de supostos responsáveis por estes atos de barbárie, entre os quais estão o ex-prefeito de Iguala, José L. Abarca (já acusado de delinquência organizada, sequestro e homicídio qualificado), a sua esposa, Ángeles Pineda (acusada de delinquência organizada, delitos contra a saúde e operação com recursos de procedência ilícita), agentes da polícia de Cocula e de Iguala, e membros do Cartel Guerreros Unidos (entre os quais se encontram El Cepillo, El Cabo Gil e o líder Sidronio Casarrubias). Foi detido também César Miguel Peñaloza Santana, prefeito de Cocula, mas depois foi liberado por “falta de provas”. O grande ausente entre os detidos e peça-chave dos atos de barbárie é, até o momento, Felipe Flores, cujo paradeiro é desconhecido. As mobilizações cidadãs durante estes quatro meses conseguiram a solidariedade dentro e fora do México. As redes que foram sendo tecidas, inclusive em nível internacional, conseguiram pôr em xeque o governo federal de Peña Nieto e manchar com isso o suposto avanço do México em matéria econômica, de segurança social, de democratização do país e, obviamente, do triunfo na luta contra o crime organizado. Peña Nieto e a sua equipe receberam duras críticas acerca de sua ineficiência, principalmente no exterior, o que implica em uma profunda crise de legitimação5.

Finalmente, as mobilizações e os protestos se mantêm em Guerrero, sobretudo em Chilpancingo (a capital), Iguala e Acapulco, devido aos pais dos estudantes, aos seus companheiros da Normal Rural, a CETEG6 (Coordenadora Estatal dos Trabalhadores da Educação de Guerrero) e a algumas forças cidadãs. Com cores de uma guerra civil, a ingovernabilidade nesta província implicou em ações violentas por parte de manifestantes, que atearam fogo a instalações, veículos e equipamento da polícia, do governo e do comércio, especialmente em Iguala e Chilpancingo. As mobilizações em outras partes do país diminuíram, apesar da existência de coletivos e organizações que acompanham de perto os acontecimentos e difundem informação a respeito, apoiando os estudantes companheiros e os pais de família dos desaparecidos. Esta situação também traz consigo uma grande incerteza sobre o processo eleitoral que em junho de 2015 elegerá o novo governador de Guerrero, já que a CEGET tem declarado em diferentes ocasiões que não permitirá que estas se realizem. Por sua vez, frente ao fracasso das provas com os restos humanos enviados à Áustria, os familiares dos 42 estudantes desaparecidos declararam, através de Vidulfo González (advogado deles e coordenador jurídico do Centro de Direitos Humanos da Montanha Tlachinollan), que para eles seus filhos ainda estão vivos e que não abandonarão as buscas. Por isso, estudantes da Normal Rural de Ayotzinapa e membros de organizações civis se uniram aos pais de família para manterem uma “busca cidadã” permanente dos jovens na região de Iguala.

2 – Murillo Karam foi duramente criticado quando, em uma conferência de imprensa, ante a incapacidade da PGR de esclarecer o que aconteceu, afirmou já estar “cansado”.

3 – “La desaparición de poderes” é um ato de intervenção federal no Estado em questão, cujo governador é destituído e é nomeado outro em seu lugar. (N.T.)

4 – Em um afã de legitimar suas ações ante a crise política originada pelos lamentáveis acontecimentos em Ayotzinapa, o governo decide nomear Ortega como governador interino devido a seus antecedentes. Ortega é professor da UAGro (Universidade Autônoma de Guerrero, a universidade pública desta província) desde os anos 70 do século XX. Sociólogo com Mestrado em Estudos Latino-americanos pela Universidade Complutense (Espanha), foi dirigente estudantil na própria UAGro e duas vezes candidato a reitor. Militou na ACNR (Associação Cívica Nacional Revolucionária, braço político do movimento guerrilheiro de Genaro Vázquez durante os anos 1970 e 1980). Em 2009 foi denunciado ante a PGR por supostas ligações com as FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), sem que se comprovasse nada. Também teve cargo público como titular da Subsecretaria de Educação Média e Superior de Guerrero, sob as ordens de Zeferino Torreblanca, outro governador saído das fileiras do PRD. É autor de vários livros e artigos acadêmicos, e personagem reconhecido por sua luta pela democracia.

5 – Como aconteceu durante os últimos anos com o caso do EZLN (Exército Zapatista de Libertação Nacional) de Chiapas, no sudoeste mexicano, a vinculação, difusão e apoio do exterior têm conseguido um impacto muito mais forte sobre o Estado mexicano do que o que acontece quando os problemas nacionais ficam “encerrados” no México.

6 – No México, o movimento sindical dos professores se encontra dividido entre duas organizações. A oficial, o SNTE (Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Educação), subordinada ao governo e dirigida por muitos anos por Elba Esther Gordillo, hoje presa por enriquecimento ilícito, desvio de recursos, lavagem de dinheiro e associação criminosa; e a CNTE (Coordenação Nacional dos Trabalhadores da Educação), radicalmente oposta ao SNTE e muito mobilizada, sobretudo em Oaxaca, Guerrero e Chiapas. A CETEG faz parte da CNTE.

Rogelio Marcial rmarcial@coljal.edu.mx

Professor e pesquisador do Colégio de Jalisco e do Departamento de Comunicação Social, Centro Universitário de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Guadalajara (México).