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Invertendo a ordem geracional: a relação das crianças da zona rural de Orobó (PE) com as novas TIC’s

O uso da internet pelas crianças: as redes mais acessadas

O mundo está se tornando cada vez mais tecnológico, e as crianças “estão usando cada vez mais as tecnologias digitais” (Cabello; Claro; Cabello-Hutt, 2015). “Em 2014, mais de 70% das crianças e dos adolescentes brasileiros entre 10 e 17 anos de idade foram considerados usuários da Internet” (CGI.br, 2015). Esse crescimento também vem ocorrendo com as crianças da zona rural.

O título deste tópico aponta para a rede social mais utilizada pelas crianças da zona rural de Orobó, o youtube. Talvez, pela diversidade que essa rede proporciona, pois ali se pode encontrar diversos vídeos sobre músicas, filmes, desenhos, vídeos de comédias, tutoriais sobre variados temas. Percebemos então que o uso da rede social para as crianças se apresenta muito mais como um entretenimento. A partir do momento em que se conectam, uma gama de informações culturais passa a fazer parte do universo da criança: ela conhece outros lugares, outras culturas, outras práticas e costumes. Essa conexão faz com que as crianças vivam em universos multiculturais (Friedmann, 2012).

Apesar de o youtube ser a rede mais acessada pelas crianças, há uma distinção entre aquilo que é visto por meninas e meninos, e há ainda outras redes que são acessadas com menor frequência. As meninas geralmente assistem a vídeos de músicas, desenhos, tutoriais de maquiagem. Um dos canais também bastante mencionado foi o “Bela bagunça”4, um canal onde uma menina de aproximadamente 10 anos de idade, juntamente com seu irmão mais novo, produz vídeos sobre vários assuntos. Os meninos, em sua maioria, assistem a filmes, vídeos de comédia, jogos.

A expressão “oi, galerinha do youtube” foi reverberada por algumas crianças quando, em conversa com uma das pesquisadoras, descobriram seu aparelho celular e logo perguntaram se filmava. Quando a câmera foi ativada, as crianças falaram “Oi, galerinha do youtube”, fato que nos chamou a atenção. Entre os adolescentes, o youtube também é uma rede muito acessada, mas as redes sociais como facebook já começam a se fazer presentes, o que não ocorre entre as crianças.

Poucas são as crianças que usam a internet para fins educacionais como pesquisar algum trabalho da escola. Em geral, seu uso encontra-se muito mais relacionado com a socialização e a sociabilidade do que com questões educativas.

Outro fator importante é que, embora esse avanço tecnológico venha ganhando espaço na zona rural, sobretudo entre as crianças, elas não estão voltadas exclusivamente para essa relação. As crianças continuam brincando nas ruas, nas praças, e os novos elementos que vão surgindo como a introdução das novas TIC’s vão sendo incorporados e acrescentados com a prática já estabelecida. É como se houvesse uma fusão entre elementos novos e tradicionais.

Considerações Finais

Nosso objetivo com este trabalho foi demonstrar como a zona rural tem se tornado cada vez mais conectada às novas TIC’s, acompanhando, ainda que não no mesmo ritmo, os avanços tecnológicos no mundo. Procuramos mostrar também como as crianças são peças fundamentais para essa propagação naquele contexto. São elas que, na curiosidade própria da infância, descobrem e dominam mais facilmente esse mundo. Elas também ensinam aos adultos a conectarem, a usar o smartphone para falar com um parente que mora em outra cidade, facilitando-lhes o processo de comunicação. Essa relação de inversão funcional geracional nos mostra que “não há uma idade única para o aprendizado cultural: não apenas as crianças aprendem, mas os adultos não cessam de aprender; as crianças aprendem tanto quanto ensinam, dos/aos seus pares e dos/aos adultos” (Pires, 2010, p. 148).

Reafirmamos que, nesse contexto, o uso das novas TIC’s pelas crianças não contribui para o individualismo, produzindo a chamada “cultura de quarto”, mas, pelo contrário, as crianças, além de fazerem até mesmo o uso coletivo das novas TIC’s em lugares públicos como praça e calçadas, continuam brincando nas ruas. Brincadeiras com bola e o andar de bicicleta são as mais comuns, mas outros tipos também podem ser vistas, como brincar no balanço, brincar de roda, pega-pega e até mesmo brincar com alguns animais de pequeno porte como, por exemplo, a galinha, também são brincadeiras comuns e presentes. O uso lúdico das novas TIC’s não exclui, nesse contexto, as brincadeiras mais tradicionais como parece acontecer na visão de alguns autores que afirmam que tais brincadeiras parecem estar cada vez mais raras, tendo em vista o aumento do uso das novas TIC’s (Paiva; Costa, 2015).

Embora a democratização do acesso à internet seja um fator evidente na zona rural de Orobó, a escola, mesmo equipada com computadores e possuindo acesso à internet, ainda não explora essa capacidade de seus alunos, o que não contribui para o uso das TIC’s para fins educacionais.

Por fim, alertamos para a necessidade de se produzir políticas educacionais que ensinem e incentivem as crianças a usar a internet de forma educativa, que alertem as crianças para os possíveis perigos de um mau uso. E isso, certamente, pode contribuir positivamente para a continuidade das mudanças e avanços no mundo rural. Finalizamos, afirmando que, dada a limitação que a elaboração deste trabalho acarreta, acreditamos que as lacunas aqui existentes possam ser futuramente preenchidas em trabalhos vindouros.

4 – O Bela Bagunça é um canal no youtube que apresenta atualmente 3 milhões e 900 mil inscritos. No instagram, a página Bela Bagunça conta com 275 mil seguidores, a maioria crianças. Alguns dos vídeos possuem mais de 4 milhões de visualizações.

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Resumo

 

O presente trabalho, desdobramentos de pesquisas sobre a infância rural na cidade de Orobó (PE), objetiva discutir um fenômeno relativamente recente na região e que nos tem chamado a atenção: o crescente uso do acesso à internet pelas crianças da zona rural e uma inversão da ordem geracional, através da qual as crianças ensinam aos adultos a como fazer uso das novas TIC’s, contribuindo para um processo de subversão da ordem do processo de transmissão do conhecimento no mundo rural. Nesse cenário, destacamos, sobretudo, o acesso à internet por meio do smartphone, ganhando destaque a relação com as redes sociais como o whatsapp e o youtube. Metodologicamente, o trabalho se enquadra numa perspectiva qualitativa, na qual a etnografia foi a base para o desenvolvimento da pesquisa atrelada ao uso da observação participante.

 

Palavras-chave: crianças, geração, zona rural, novas TIC’s.

 

Datas de recebimento: 28/02/2018

Data de aprovação: 9/06/2018

Patrícia Oliveira S. dos Santos patriciaoss1288@yahoo.com.br

Doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), Brasil. Mestre em Antropologia e bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Brasil. É integrante do grupo Crias: criança, sociedade e cultura da UFPB e trabalha com temas relacionados à criança e à infância, com destaque atualmente para a infância rural.

Maria de Assunção Lima de Paulo assuncaolp@yahoo.com.br

Doutora em Sociologia. Professora da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), Brasil. Desenvolve pesquisas no campo da sociologia rural com ênfase em cultura, identidades, juventude rural e educação.