- Teorias pós-críticas e educação: socializações ativas e o jovem como sujeito social
A partir dos anos 1970, desenvolvem-se na sociologia as teorias pós-críticas da juventude. Elas tendem a relativizar e até negar a proposição original da sociologia da juventude, que caracterizava esta categoria como uma transição à vida adulta, tendo a tarefa de socialização secundária. Entre as teorias pós-críticas da juventude, algumas, informadas pelo pós-estruturalismo e pós-modernismo, tenderam a negar a permanência ou a validade da estrutura das categorias etárias, como parte da avaliação de que transitávamos à pós-modernidade. Outras, entretanto, relativizaram a concepção de socialização e de categorias etárias oriundas da dita “primeira modernidade”, propondo que as juventudes contemporâneas efetuavam múltiplas e ativas socializações.
Detenho-me ao segundo movimento teórico pós-crítico, já que ele tem sido mais influente, na contemporaneidade, para a construção de políticas públicas e educacionais relacionadas às juventudes. Em vez de negar a noção de socialização, estas teorias pós-críticas a recriam, contestando o sentido tradicional de socialização, na qual gerações adultas educam unilateralmente as novas gerações. Elas advogam, não a superação da sociedade moderna, mas uma mudança profunda no interior dela própria, engendrando uma segunda modernidade. Esta mudança torna mais difíceis e instáveis as transições pelas idades, em especial a vivência da juventude. Por outro lado, a socialização se torna mais plural, admite reversibilidades e tem participação ativa dos sujeitos. (Cf., por exemplo, Beck; Giddens; Lash, 1997 e Bauman, 2003).
A literatura sociológica europeia (Calvo, 2005; Pais, 1993) e latino-americana (Krauskopf, 2004; Abramo, 2005) tem presente uma forte constatação: os marcadores tradicionais da entrada na idade adulta implodiram. Rompe-se com aquela expectativa criada na primeira modernidade, na qual a juventude findava com a saída da escola, a entrada no mercado de trabalho, a união conjugal, a saída da casa dos pais ou responsáveis e a experiência de paternidade ou maternidade. Experiências mais ou menos simultâneas que marcavam a entrada na maturidade. As transições à suposta maturidade se tornam labirínticas e reversíveis, de tipo “ioiô”, segundo Pais (1993).
Contudo, se o processo de transição não é (mais) linear, a socialização se torna múltipla e ativa. E plural: socializações múltiplas e ativas. Peralva (1997) afirma que quando o tempo tem ritmo acelerado, tal qual o da primeira modernidade, pode ser criado um fosso entre a geração mais velha e a mais jovem, do que decorre a tensão geracional. Em sociedades tradicionais, com mudanças muito lentas, não se conforma este fosso geracional, já que o passado tende a repetir-se no presente, de modo que adultos e jovens compartilham dos mesmos ideais, valores e experiências sociais significativas. Mas o fosso entre gerações pode deixar de ocorrer também quando as mudanças se tornam rápidas demais, mais do que se via na primeira modernidade. É o caso do mundo contemporâneo: as transformações de ordem econômica, tecnológica, política e cultural são tão rápidas que impedem a cristalização de distintas identidades geracionais. Reforça-se, assim, a obsolescência daquele modelo de socialização no qual as gerações mais velhas transmitiam experiências passadas às mais novas para ordenar e domesticar o futuro. Em seu lugar, aparece um modelo mais “configurativo” de socialização, baseado no aprendizado comum pelos diferentes grupos etários, diante de um mundo mutante. Jovens e adultos se veem diante de desafios e dilemas semelhantes, ainda que enfrentados com diferentes experiências de vida acumuladas.
- Teorias sociológicas da juventude e políticas públicas
As teorias sociológicas contemporâneas da juventude apresentadas acima têm importante influência nas políticas públicas no Brasil atual, tanto as políticas ditas sociais quanto os programas educacionais “não escolares” ou não formais. Elas ajudam tanto a criticar noções limitadas acerca da juventude que se mantêm presentes nestas políticas quanto a propor políticas afinadas a suas concepções. De modo sintético, pode-se dizer que, dos anos 1990 à atualidade, no Brasil, duas concepções de juventude se apresentaram como polos extremos na práxis das instituições socioeducativas e das políticas públicas: a juventude como problema social e os jovens como sujeitos sociais (Castro, 2009; Brenner; Lânes; Carrano, 2005). Na verdade, estas imagens estão também presentes nos discursos e nas práticas escolares para os jovens, mas prefiro, por ora, destacar mais sua presença nestes outros espaços para além da escola.
Quanto à juventude tida como problema social, ela apareceu na figura do perigo, risco ou regressão às drogas, à promiscuidade e à violência. De modo esquemático, pode-se dizer que esta imagem foi usada como mote e justificativa de muitas ações socioeducativas de projetos e instituições do dito “Terceiro Setor” e suas organizações não governamentais (ONGs) e fundações empresariais, assim como das primeiras políticas “públicas” para a juventude do governo federal, nos anos 1990 no Brasil (Spósito; Carrano, 2007). Ainda hoje, entretanto, como justificativa bem ou mal disfarçada, ou assumida, ou ainda como “ato falho”, a imagem do jovem como problema, a juventude perigosa, aparece como importante elemento destas ações e políticas. O principal exemplo disso, tratado melhor adiante, é o ProJovem (Programa Nacional de Inclusão de Jovens). Outro, diversos programas sociais efetivados por ONGs e fundações em áreas ditas “vulneráveis”, tais quais as “comunidades” cariocas que recebem Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), utilizadas como forma de capturar supostas energias juvenis perigosas mais do que promover sua condição de cidadão em condições de igualdade aos dos jovens do asfalto (Arantes, 2014).
Quanto ao jovem como sujeito social, este conceito tende a reconhecer a importância de se ouvir, entender e considerar as vozes juvenis no mundo público: na escola, no trabalho e na política, inclusive na formulação das políticas públicas para a juventude. Mas há distintas versões. Primeiro, aquela do protagonismo juvenil, uma ideia nascida do mundo das fundações empresariais (Tommasi, 2005) que influenciou o juízo de que os jovens participantes dos programas estatais de transferência de renda devem propor e realizar “ações comunitárias”. Entretanto, tais ações têm alcance reduzido e eficácia questionável, tais como varrer ruas e pintar escolas. Enfim, esperam que sujeitos já tão excluídos de benefícios sociais e oportunidades econômicas, resolvam os problemas de sua localidade, justo onde há mais falta de equipamentos e serviços públicos (Spósito; Corrochano, 2005). Há também o protagonismo utilizado como tática de construção do consenso, de projetos de ONGs a políticas públicas de amplo espectro, na qual os jovens são envolvidos com as discussões de aspectos secundários de políticas ou projetos – em geral, detalhes sobre a execução de atividades – mas excluídos das decisões mais importantes, acerca inclusive da necessidade destas ações (Gonzalez; Guareschi, 2009; Souza, 2009).
A versão mais interessante do jovem como sujeito social, assumida, por exemplo, pelos Observatórios da Juventude da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), considera que o jovem deve ser reconhecido como cidadão ativo e participativo.
Tomar os jovens como sujeitos não se reduz a uma opção teórica. Diz respeito a uma postura metodológica e ética, não apenas durante o processo de pesquisa, mas também em meu cotidiano como educador. A experiência da pesquisa mostrou-me que ver e lidar com o jovem como sujeito, capaz de refletir, de ter suas próprias posições e ações, é uma aprendizagem que exige um esforço de auto-reflexão, distanciamento e autocrítica. (Dayrell, 2003, p. 44).
No meio termo entre a juventude-perigo e a juventude como sujeito, há aquela concepção legitimada pelas teorias tradicionais da juventude, tão importantes também no ânimo das instituições escolares: a juventude como fase de transição, para sua socialização e a garantia da integração social. De certo modo, ela se completa com a noção da juventude-perigo, constituindo mesmo a imagem positiva da juventude que se oferece como remédio ao risco do desvio e da regressão que paira sobre os jovens. (Spósito; Carrano, 2007). As imagens da juventude como perigo e da juventude como transição, combinadas, reforçam o poder das instituições sociais dadas e dos adultos sobre os jovens, tratados como seres vulneráveis ou incapazes, porque ainda incompletos, em formação. Tendem a desconsiderar as perspectivas distintas dos jovens acerca do mundo e do tempo, desvalorizadas diante da suposta superioridade da “experiência” dos adultos. Dificultam o diálogo entre as gerações, porque levam a pensar que os adultos nada têm a aprender com os mais jovens, que os mais novos apenas são alvo da ação formadora dos mais experientes (Arroio, 2014). Supõem que os próprios adultos não possam sofrer novas transformações, como se já fossem “seres completos” (Oliveira, 2004).
Há, enfim, outra concepção neste meio termo, mais próxima, entretanto, do polo da juventude como sujeito: a juventude como direito. Ela deve muito à noção de moratória psicossocial e, especialmente no Brasil, se filia às propostas dos movimentos em defesa dos direitos da criança e do adolescente que deram origem ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Ainda que importante como projeto civilizatório, há limites na ideia de uma rede jurídica e institucional de proteção à juventude pautada no modelo construído para a infância e adolescência (e que aproximou mais o adolescente da criança que do jovem), especialmente porque há certa infantilização da juventude. É mais coerente uma concepção acerca dos ciclos da vida que compreenda as especificidades e as potencialidades de cada uma das idades (Moll, 2014). Por exemplo, a puberdade leva o adolescente a uma diferente relação com seu corpo em comparação com a criança. Outro exemplo, os jovens, na sua relação com a vida pública e com os adultos, tendem a adquirir maior autonomia em comparação com os mais novos. Contudo, a concepção da juventude como direito não deixou de ser um passo em direção a uma noção mais abrangente de cidadão: não apenas um portador de direitos, mas ator, agente, sujeito presente na vida pública e nas decisões políticas.
Há, certamente, tendências recentes muito positivas. Primeiro, o apelo de sociólogos da juventude e da educação para um diálogo mais aberto e franco entre as escolas de ensino médio e as culturas juvenis (Dayrell, 2007; Martins; Carrano, 2011). Por meio deste diálogo, os educadores poderiam deixar de ver as vivências dos jovens para além da educação formal como mera barreira ao aprendizado ou desvio, bem como poderiam considerar a riqueza das criações juvenis como veículo para a construção de conhecimentos escolares mais significativos. Segundo, pelos mesmos pensadores, mas também reconhecida, ao menos retoricamente, pelos líderes políticos: a importância das vozes ativas dos sujeitos jovens na construção das políticas sociais para a juventude, em particular, e na vida pública, em geral (Carrano, 2011).
Entretanto, há pelo menos dois limites ou problemas a apontar. O primeiro limite é que parece ainda ser pequeno o resultado dos apelos para o diálogo entre escolas e culturas juvenis, resultando no contínuo diagnóstico da falta de sentido do ensino médio aos jovens (Ribeiro, 2011). O sistema educacional tem dificuldades de integrar os “outros” – em especial, os estudantes das camadas populares – ao seu funcionamento e na elaboração de seu currículo. Continua marcante a concepção estritamente propedêutica, portanto tão somente preparatória ao ensino superior (ou ainda menos, aos exames de seleção) e uma concepção homogeneizadora do currículo, com dificuldades para considerar as experiências e as especificidades dos diversos sujeitos que, outrora alijados deste nível de ensino, chegam ao ensino médio (Arroyo 2014). Enquanto as análises pós-críticas indicam a diversidade das transições e a complexidade das socializações juvenis, as concepções hegemônicas no ensino médio continuam embebidas em noções tradicionais sobre a condição juvenil, esvaziando-a de sentido próprio, já que ela é pensada tão somente como estágio preparatório a padrões pré-definidos e estreitos da vida adulta.
O segundo limite é a presença, em geral latente, das concepções de juventude como perigo, apenas como fase de socialização ou como mera “protagonista” de ações comunitárias nas ações socioeducativas e nas políticas de transferência de renda para os jovens pobres. Predomina, como mote, o tom de que se deve realizar a “inclusão” dos excluídos, por meio de um projeto de salvação pela oferta de “capacitações” e valores civis aos sujeitos jovens “vulneráveis”, aos quais se deve conduzir a uma posição mais estável (ainda que subalterna) na estrutura social. A principal das Políticas Públicas de Juventude (PPJs) no Brasil ostenta em seu próprio nome esta concepção tão restrita de juventude: Programa Nacional de Inclusão de Jovens. O ProJovem, voltado aos jovens das camadas mais empobrecidas das classes trabalhadoras, tratou-os oficialmente como “vulneráveis”, em “situação de risco” ou “excluídos”. Estes, que seriam os mais interessados na definição dos sentidos de juventude e educação das PPJs, tiveram participação pouco relevante na sua proposição. Antes, foram alvo de discursos e representações diversas, que combinaram distintas e mesmo contraditórias imagens, em especial, a imagem do jovem-problema combinada com a do jovem como sujeito de direitos, e a concepção das práticas educativas como forma de preencher o tempo ocioso (afastando os jovens das ruas) combinada com a formação para a cidadania. Diversas pesquisas têm indicado estas contradições e limites (Moraes; Nascimento; Melo, 2012), que nos fazem defender a necessidade de outras, radicalmente outras, políticas socioeducativas destinadas aos jovens.