Foto: Felipe Hadler/FreeImages.com

O treinamento do olhar etnográfico: relações de gênero entre crianças

Etnografia e o Treinamento do Olhar

 

Estudar alunos de uma escola kaxi na floresta amazônica, compreender dispositivos de poder entre gangues de Chicago, analisar a diversidade cultural em um bairro como Copacabana, entender a dinâmica de funcionamento de uma instituição educacional em uma grande metrópole brasileira, identificar as características marcantes dos conflitos entre grupos étnicos no coração do Sudão. Todas essas pesquisas têm um ponto em comum: a escolha do método etnográfico como uma interessante possibilidade para desenvolvê-las com rigor e compreender o ponto de vista dos próprios sujeitos que estão sendo investigados.

 

A etnografia é o método por essência da Antropologia, ciência que busca investigar grupos sociais e suas culturas. No entanto, ela vem sendo utilizada por outras áreas de conhecimento, alargando o rol de pesquisas qualitativas nas chamadas humanidades, como a História, a Geografia, as pesquisas educacionais, entre outros saberes. Esse método envolve a observação, a participação, a descrição e o registro dos fenômenos do grupo social que o pesquisador está estudando – “o outro”. Ele se desenvolveu no final do século XIX e início do século XX – em uma tentativa de observar o modo de vida de grupos sociais de forma mais integrada, mais holística.

 

No nascimento da Antropologia, enquanto estudavam culturas “exóticas” fora da Europa, os cientistas faziam observações e descrições minuciosas a respeito do comportamento dos integrantes das comunidades. Eles buscavam se inserir, ao máximo possível, no ritmo de vida dos grupos que estavam estudando para obter a compreensão de sua língua, de suas rotinas, de seus rituais e de suas religiões. Passavam meses partilhando da comida e apreendendo as relações familiares de sociedades africanas, asiáticas ou latino-americanas.

 

Boa parte das preocupações originais da etnografia se manteve quando os antropólogos também começaram a se interessar pelas culturas de grupos sociais “familiares”. O contato direto e pessoal com o universo investigado, a observação participante, a entrevista aberta, por exemplo, tornaram-se métodos utilizados em qualquer contexto de pesquisa. Além disso, é amplamente consensual que a vivência durante um período de tempo razoavelmente longo seja outra premissa de uma investigação desse tipo. Isso ocorre porque há alguns aspectos da cultura e da sociedade que não são explicitados de imediato, que exigem um esforço maior, detalhado e aprofundado de observação (Velho, 1987).

 

O aprendizado dessa técnica, a que Rosistolato e Pires do Prado (2012) se referem como o “treinamento do olhar”, inclui “ficar atento aos atos, gestos, expressões e silêncios” presentes na interação entre investigador e grupos pesquisados. Ao mencionarem um trabalho que envolvia a aplicação de um questionário, os autores afirmam que não se deve ficar atento apenas ao resultado do que é gravado, mas que as impressões e o que não é dito também devem fazer parte do relatório da pesquisa (Rosistolato; Pires do Prado, 2012).

 

O não dito é fundamental para quem faz pesquisa com crianças. Primeiro, por uma razão prática: muitas crianças não possuem vocabulário desenvolvido e exprimem seus sentimentos de outra maneira, por meio da linguagem corporal, do riso ou do silêncio. Segundo, porque já nascem pertencendo à determinada cultura, ou seja, todas as interdições se manifestam desde essa fase da vida. É o que pode ser visto na nota abaixo.

 

Outra criança está segurando um boneco de roupa e capa preta e um capacete vinho e uma máscara de esqueleto, típica de um vilão. Sento ao seu lado, e ele me mostra o boneco. Pergunto quem era aquele, e ele diz que não gosta de falar o nome, mas que o ser vive embaixo da terra. Indago por que ele não gosta de falar o nome do boneco, e o menino responde que é de Deus, e que o boneco não. No entanto, ele continua segurando o boneco, enquanto pega outro, de um famoso desenho infantil, e me pergunta se eu conheço a história daquele personagem. Respondo que não, então ele começa a contar um pouco sobre o enredo da animação. Em seguida, começa a falar de alguns outros filmes, desenhos e novelas que assiste, inclusive de uma mulher que deseja namorar outra mulher. O menino conta baixinho, como se fosse um segredo, e começa a rir em seguida. Pergunto se ele acha que há algum problema em uma mulher namorar outra mulher. Ele começa a rir novamente, mas diz que não (Nota de campo, 01/04/2013).

 

Nota-se que a criança carrega interdições do contexto cultural e religioso, tensionadas pelo desejo de brincar com aquele boneco. Além disso, seu comentário sobre uma relação homoafetiva é feito de forma discreta. A questão da sexualidade é tratada pelo menino por meio do riso e do segredo, como se fosse motivo de piada ou algo a ser escondido.

 

Uma análise que se pautasse apenas pelo dito não seria capaz de identificar que há um discurso carregado de significado nos gestos e nos movimentos desse menino. É o treinamento do olhar que permite a melhor apuração desses pormenores. Sendo a escola, atualmente, a principal instituição social oficial que transmite ideias, valores, atitudes e comportamentos de uma geração para a outra, essas instituições continuam sendo loci privilegiados para se apreender certos costumes que fundam nossa sociedade.

 

Na pesquisa com crianças, Corsaro argumenta que a aproximação com crianças pequenas não é tão simples porque somos adultos e identificados rapidamente pelas crianças como “o outro”. Esse autor aponta para certas diferenças, especialmente o tamanho físico, as quais podem não ser plenamente superadas e, portanto, aconselha uma participação periférica por parte do pesquisador (Corsaro, 2005). Em suas investigações, Corsaro relata que tentava ocupar os espaços e ouvi-las e, para isso, adotou uma estratégia que denominou “entrada reativa”. Minha pesquisa esteve amparada por essa perspectiva, algo que fica evidente na epígrafe que abre este artigo.

 

No entanto, todas essas considerações metodológicas só são possíveis devido a um importante movimento feito dentro dos estudos sociais sobre crianças proposto pela Sociologia da Infância. Esse campo de estudos inaugurou outro olhar sobre meninos e meninas, criticando a ideia de socialização e preparação para o mundo adulto. Ao criar a categoria de culturas infantis, os sociólogos da infância compreenderam que elas têm uma lógica própria de se relacionar com o mundo, suas identidades são coletivas e algumas características em comum permeiam todos os aspectos dessa cultura: a brincadeira, a ludicidade, a imaginação, entre outros (Delgado; Müller, 2005).

 

Para isso, é necessário romper com o adultocentrismo que tanto marcou a pesquisa sobre crianças, e aqui a etnografia revela uma contribuição ímpar. Dentre os “mandamentos” da pesquisa participante, é necessário o respeito pelo grupo pesquisado, pelas suas próprias visões e habilidades. Essa condição ética – não só epistemológica – também marcou as concepções da Sociologia da Infância. Segundo Sarmento (2003), a infância foi historicamente definida com base nas noções de ausência e de negatividade. Na cultura ocidental, durante milhares de anos não havia o entendimento de que ser criança se configura como uma etapa da vida, diferente da do adulto, com suas particularidades e em sua totalidade própria.

 

Quando se começou a fazer distinção entre adultos e crianças, ela era sempre pautada pela negatividade: a criança é uma versão miniatura do adulto; a criança não sabe pensar de maneira lógica; a criança não sabe se vestir sozinha. Usa demais sua imaginação porque não tem elementos visuais objetivos ou laços relacionais com a realidade. As primeiras definições de criança estavam, pois, ligadas a um suposto déficit ou incompletude: não fala, não trabalha, não tem direitos políticos, não tem responsabilidade, carece de razão etc. (Sarmento, 2003).

 

Nessa concepção tradicional de infância, a criança é vista como desprovida de instrumentos ou linguagens particulares. Não é produtora de cultura e, portanto, não está integrada à sociedade. Só após chegar ao mundo adulto é que ela poderá ser considerada um sujeito dotado de livre arbítrio e passará a fazer parte do todo social.

 

No entanto, o que vemos, inclusive dentro de nossas investigações de campo, é que a infância é uma etapa da vida dotada de riqueza e de diversidade enorme. Pudemos notar como as crianças são observadoras e como refletem e tiram conclusões a partir das situações que observam. Suas brincadeiras, muitas vezes, buscam representar situações do mundo adulto, aproximando a linguagem infantil da linguagem adulta, mas sem perder de vista a cultura infantil que produzem e na qual estão inseridas. Meninos e meninas têm uma lógica de funcionamento própria, com uma visão de mundo peculiar e com uma enorme riqueza de sentimentos, de formas de comunicação, de experiências de ser e estar no mundo e de cultura.

 

Superar a negatividade que marcou os estudos sobre a infância é fundamental para uma investigação rigorosa e profunda acerca de meninos e meninas. Nesse sentido, a etnografia se mostra como o método mais recomendado para atingir esse objetivo. Suas proposições permitem que as pesquisas sejam feitas de forma a compreender, ao máximo, o olhar do outro e os sentidos que ele próprio atribui a suas ações. Trata-se não de restringir a etnografia a microescalas, mas de desconstruir uma visão de ciência moderna fragmentada, hierarquizada, etnocêntrica (e, portanto, adultocêntrica) e positivista. O método etnográfico com crianças faz desabrochar uma concepção científica que possibilita a construção de um olhar mais respeitoso, justo e menos desigual sobre a sociedade. E é essa nova perspectiva que nos move até aqui.

 

Thiago Bogossian thiagobogossian@gmail.com

Professor da Educação Básica, atuando nas redes pública e privada de instituições de ensino localizadas nas cidades de Niterói e Rio de Janeiro, Brasil. É Mestre em Educação, Bacharel e Licenciado em Geografia pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e estudante do Mestrado em Adult Education for Social Change, da University of Glasgow (Escócia).