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O treinamento do olhar etnográfico: relações de gênero entre crianças

Relações de Gênero e Poder em uma classe de Educação Infantil

 

Depois de calçar os tênis, descemos para o refeitório. Pude me enturmar melhor com as crianças, sentando ao lado delas enquanto lanchavam. Um dos meninos não quis comer o biscoito oferecido pela funcionária da escola, e uma das meninas, observando o ocorrido, disse que ele estava apaixonado. Ao ouvir a fala, uma das professoras indagou: “Como assim, Vitória? O que você quer dizer com isso?” Ao que ela prontamente respondeu: “Quem não come tá apaixonado porque fica assim, pensando demais” e colocou a mão no queixo em gesto pensativo. As professoras e as crianças riram entre si, separadamente, e essas começaram a cantar a frase repetidamente “Lucas tá apaixonado!” (Nota de campo no. 3, 2013).

 

Apesar de amor e paixão não serem temas comuns nos currículos da Educação Básica, meninos e meninas já têm interesse sobre esses assuntos desde a mais tenra idade. Temáticas como essas, bem como a de sexualidade, de gênero e de corpo já se manifestam nessa etapa de suas vidas. Na verdade, como indivíduos que já nascem imersos em uma cultura, eles trazem elementos que identificam as normas estabelecidas pela sociedade. Isso já ocorre até mesmo antes de nascer, quando as roupas, berços e brinquedos são comprados de acordo com a expectativa social do gênero masculino ou feminino.

 

A construção da identidade de gênero está inserida em instituições, instâncias e dispositivos culturais que transmitem a noção de comportamentos masculinos ou femininos. Isso porque, como toda categoria cultural, o gênero está inserido em uma complexa teia de discursos, produzindo subjetividades diversas. Padrões que, por sua vez, excluem e discriminam práticas consideradas desviantes (Louro, 2008).

 

Aprendemos a viver o gênero e a sexualidade na cultura, através dos discursos repetidos da mídia, da igreja, da ciência e das leis e também, contemporaneamente, através dos discursos dos movimentos sociais e dos múltiplos dispositivos tecnológicos. As muitas formas de experimentar prazeres e desejos, de dar e de receber afeto, de amar e de ser amada/o são ensaiadas e ensinadas na cultura, são diferentes de uma cultura para outra, de uma época ou de uma geração para outra (Louro, 2008, p. 22-23).

 

A questão da participação dos gêneros na Educação Infantil é tão forte que a maioria esmagadora do quadro de profissionais nessa etapa de ensino é composta por mulheres[2]. Mas não são só os profissionais da educação infantil que se veem atravessados por questões de gênero. Meninas e meninos que frequentam as escolas de educação infantil, como seres históricos e culturais, não estão à margem dessas problemáticas, ainda que tais questões atuem de maneira diferenciada. A entrada de uma criança na educação infantil, por exemplo, pode ser uma das primeiras experimentações dos significados de ser menino ou menina no convívio social perante outras crianças.

 

As experiências de gênero são vivenciadas desde as idades mais precoces, quando as crianças aprendem desde pequenas, a diferenciar os atributos ditos femininos e masculinos. Aprendem o uso das cores, dos brinquedos diferenciados para cada sexo, aprendem a diferenciar os papéis atribuídos a mulheres e homens (…) (Finco; Oliveira, 2011, p. 61).

 

Utilizando os referenciais teóricos acima, trago algumas experiências de campo. Os trechos selecionados foram extraídos das anotações escritas sempre no mesmo dia da atividade, com o intuito de não perder o mínimo de detalhes. Essas notas demonstram diferentes níveis de apropriações (por parte das crianças) e interdições (por parte dos adultos), pautadas, sobretudo, em discursos e nas relações que perpassam a discussão a respeito da identidade de gênero e da sexualidade.

 

As tensões que envolvem identidade de gênero e sexualidade mostraram-se mais evidentes no momento de interação entre professoras e meninas e meninos da escola pesquisada. As duas notas de campo selecionadas para ilustrar o texto são reações das professoras às falas das crianças, que, ao simplesmente indagarem curiosidades e dúvidas, são repreendidas pelas adultas, geralmente de maneira irônica.

 

Enquanto as crianças brincam, uma das professoras está chamando menina por menina para tirar a medida da saia que elas usarão na festa de dia das mães do domingo. Uma das crianças pergunta se as meninas usarão essa saia no domingo e a professora responde: “você acha que essa saia ficaria bem nos meninos? Não, né! É claro que ela servirá para as meninas” e ri. (Nota de campo no. 3, 2013).

           

Apesar de a criança ter feito uma pergunta simples, sem o intuito de problematizar ou questionar as relações de gênero, a professora utiliza-se de uma forte carga repreensiva. Os papéis de gênero são afirmados de forma categórica para cada um saber qual é o seu lugar. Os docentes utilizam-se da situação privilegiada de poder na relação social estabelecida nesse espaço para formatar os indivíduos de acordo com as expectativas sociais de gênero.

 

As pesquisas de Finco (2013) chegaram a conclusões muito parecidas. Segundo ela, professoras reforçam, muitas vezes sem ter consciência, os comportamentos que são esperados para meninos e meninas, o que inclui, obviamente, suas roupas. A forma como as professoras conversam com meninas, elogiando sua postura doce e meiga ou justificando uma atividade sem capricho de um menino; o fato de a ajuda da menina ser solicitada na tarefa de limpeza, enquanto o menino é solicitado para carregar algo; a maneira como os adultos separam conflitos, defendendo e preservando as meninas de uma agressividade “natural” dos meninos – tudo isso demonstra que as expectativas de comportamento são diferenciadas para meninas e meninos. O que é valorizado para uns não é para outros e vice-versa (Finco; Oliveira, 2011).

 

É importante considerar que as representações de feminino e de masculino com as quais as crianças se relacionam são, em grande medida, as representações de suas educadoras. Para Silva e Luz (2010), no entanto, as crianças não apenas reproduzem as representações e práticas dos adultos, mas interagem, negociam e, em muitos casos, transgridem regras impostas. Balizadas em diferentes estudos sobre gênero na escola, as autoras afirmam,

 

As educadoras proporcionam aos meninos e às meninas experiências distintas ancoradas nos modelos de masculinidade e feminilidade padronizados em função de uma questionável naturalização do que é “mais adequado” para cada sexo e repreendendo o que consideram inadequado (Silva; Luz, 2010, p. 25).

 

Às vezes, as crianças tentam romper as fronteiras de gênero por meio da brincadeira. Nessa atividade, pode-se maquiar o rosto, colorir os lábios de batom, ter os cabelos compridos – em suma, transformar o corpo (Finco; Oliveira, 2011). Trata-se de uma forma de transgredir os limites, introduzindo elementos de instabilidade e crise. No entanto, quando os meninos começam a indagar ou adotar práticas que geralmente são associadas a meninas, dispositivos são acionados para que a criança volte ao padrão de comportamento “esperado”, geralmente marcado pela fala das professoras em tom jocoso. Finco (2013) identifica que esses dispositivos são micropenalidades, mecanismos de incentivos e desencorajamentos, castigos ou reprovações de comportamento. Para ela,

 

[…] as formas de controle disciplinar de meninas e meninos estão intrinsecamente relacionadas ao controle do corpo, à demarcação das fronteiras entre feminino e masculino e ao reforço de características físicas e comportamentos tradicionalmente esperados para cada sexo nos pequenos gestos e nas práticas rotineiras da educação infantil (Finco, 2013, p. 7).

           

Essa concepção fica bastante clara em mais um trecho das minhas notas de campo.

 

Na descida para o lanche da tarde, a professora comentou a respeito dos cabelos de “Maria Chiquinha” de uma das alunas. Pedro, que tem o cabelo raspado à máquina, perguntou se alguém estava falando do cabelo dele. A professora disse que era do cabelo de Mariana: “já pensou Pedro com um cabelão de Maria Chiquinha! Não combina, né?!” (Nota de campo no. 4, 2013).

 

Para um observador desatento, pode parecer uma situação corriqueira ou natural. Um olhar apurado, contudo, revela uma tentativa de controlar, regular e normatizar os corpos infantis. Trata-se de uma violência perpetuada por um adulto, no caso a professora, contra uma tentativa de afirmar uma identidade de gênero fora dos padrões estabelecidos. As professoras orientam e reforçam comportamentos, habilidades e posturas diferentes nos meninos e nas meninas, algumas vezes de forma sutil, transmitindo expectativas e manipulando sanções e recompensas.

 

O preconceito, enraizado e naturalizado pela sociedade, é reforçado pela instituição escolar, sem capacidade de problematizar ou desnaturalizar situações de opressão cotidianas. É por esse, entre outros motivos, que homens que usam brincos ou penteados diversos são ainda motivos de chacotas, dependendo de sua inserção social ou profissional. O mesmo acontece com mulheres que preferem se vestir de calças, fazer tatuagens ou ter cabelos curtos. Pelo mesmo motivo, não é incomum que homossexuais que trocam afetos ou homens que se vestem com roupas “femininas” em locais públicos sejam ridicularizados ou mesmo vítimas de violência no Brasil, inclusive de assassinatos[3].

 

Minhas observações de campo vão ao encontro do trabalho de Finco e Oliveira (2011) e nos fazem refletir sobre as formas de diferenciação, ainda que sutis, nas relações estabelecidas entre professoras e crianças.

 

As observações revelam que as relações afetivas entre professoras e as crianças, como dar o colo, afagar o rosto, os cabelos, elogiar, atender ao choro, consolar nos momentos de conflitos, angústias e medo, que deveriam ser dispensados a todas as crianças, acontecem de forma diferenciada para meninas e meninos (…) (Finco; Oliveira, 2011, p. 64).

 

Assim, corpos são cotidianamente normatizados para que cumpram papéis “esperados” pela sociedade, reprimindo meiguices ou agressividades e ressaltando obediências ou competições, de acordo com o gênero em questão. Estereótipos cristalizam-se em corpos de crianças pequenas de acordo com a expectativa dos adultos; negligenciam-se seus próprios interesses e desejos; por conseguinte, formaliza-se o desejo explícito (e implícito) de uma sociedade heteronormativa, fundada em estereótipos biológicos de gêneros.

 

[2] Os limites desse texto impedem uma discussão mais apropriada a respeito da feminização da docência em um contexto de precarização e de luta das mães trabalhadoras por espaços onde pudessem deixar seus filhos.

[3] No Brasil, no ano de 2013, um homossexual foi assassinado a cada 28 horas, de acordo com pesquisa. De cada cinco gays ou transgêneros assassinados no mundo, quatro são brasileiros. Disponível em:< http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/relatorio-aponta-312homossexuais-brasileiros-assassinados-em-2013/.> Acesso em 23 fev. 2014.

Thiago Bogossian thiagobogossian@gmail.com

Professor da Educação Básica, atuando nas redes pública e privada de instituições de ensino localizadas nas cidades de Niterói e Rio de Janeiro, Brasil. É Mestre em Educação, Bacharel e Licenciado em Geografia pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e estudante do Mestrado em Adult Education for Social Change, da University of Glasgow (Escócia).