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Projeto de Vida Titanzinho: jovens e direitos humanos

De maneira mais direcionada para a temática gênero, foi realizada a dinâmica “Coisa de Homem e Coisa de Mulher”, na qual, em uma cartolina separada em duas partes e com colagens, o grupo selecionou o que seria “coisa de homem” e o que seria “coisa de mulher”. Feita a divisão, o grupo foi desconstruindo, por meio da conversa, essa divisão. Dois convidados que participaram da atividade, por dedicarem-se ao estudo da temática gênero, problematizaram as questões e apresentaram exemplos na sociedade que ampliavam as possibilidades de atividades que homens e mulheres realizam. Em outros encontros, também, para abordar esse tema, foram apresentados vídeos, fotos e informações estatísticas.

Essas temáticas suscitaram a relevância de se trabalhar a partir da perspectiva da Identidade Social (Tajfel, 1982), pois esse é um dos mecanismos que explica a discriminação das pessoas, o que pode ajudar a explicar as diferentes formas de defesa dos grupos que sofrem discriminação e que têm buscado um fortalecimento de uma identidade social mais positiva. Dessa maneira, pode-se pensar em estratégias tanto para perceber os outros grupos de maneiras mais positivas ou em outras perspectivas, quanto para valorizar o local em que o indivíduo se encontra.

Outra adaptação realizada no cronograma foi relativa ao tema de educação ambiental, pois diante da realidade da comunidade – falta de saneamento básico, falta de coleta de lixo, proximidade com o mar e contato com animais de rua e marítimos –, percebeu-se a necessidade de se trabalhar tal assunto com maior profundidade. Este foi relacionado aos direitos humanos, tendo em vista a perspectiva de direito à saúde e de cidadania, com o foco na preservação do meio ambiente. Para tal, foram realizadas diferentes atividades para se trabalhar o assunto.

Para a introdução do tema, um estudante de Biologia foi convidado. O grupo desenhou um mapa do bairro, os animais que eles encontram diariamente na comunidade e problemas ambientais e de poluição. Tais assuntos foram debatidos, construiu-se um conhecimento sobre os animais que habitam o local e se discutiu sobre quais seriam as soluções para os problemas encontrados. De igual modo, realizou-se um passeio pelas dunas da Sabiaguaba, sendo este um momento de entrar em contato direto com a natureza. Além disso, conversamos sobre os benefícios que ela possui e os problemas que são causados pelas intervenções humanas, tendo como guia um biólogo que estuda a região.

Na semana seguinte, os próprios participantes do projeto guiaram os facilitadores do grupo pelo bairro, mostrando lugares na comunidade que tinham significado para eles, além de terem contato com elementos da natureza. Esse contato consiste em uma maneira de pensar o ambiente não somente em relação com a natureza, mas em relação aos outros e consigo.

No dia das crianças, foi realizado um mutirão de limpeza da praia, sendo que a equipe que coletasse mais lixo venceria a brincadeira. Outra intervenção relativa ao tema foi a exibição do documentário Lixo Extraordinário (2010), seguido por um debate sobre o documentário e um planejamento de ações que poderiam ajudar na preservação do bairro.

Na semana seguinte, o grupo foi dividido em duas equipes para que cada uma desenvolvesse um plano de ação para diminuir a poluição na comunidade. Posteriormente, foram convidados dois estudantes de Engenharia Ambiental e Sanitária para explicarem acerca dos resíduos sólidos.

Os resultados alcançados foram realizações de ações intramuros, produção de cartazes e realização de gincanas produzidas pelos jovens, além de eventos extramuros, como uma atividade cultural em alusão à cultura negra e a coleta de materiais recicláveis.

Para uma avaliação individual sobre o aprendizado e engajamento dos participantes, foram realizadas entrevistas semiestruturadas individuais no início e no final do grupo. O roteiro de entrevista foi composto por perguntas sócio-demográficas (idade, escolaridade, com quem mora) e sobre: (1) compreensão do tema “direitos humanos”; (2) relatos de direitos humanos infringidos; (3) expectativa sobre o projeto (antes); (4) sugestões e demandas (depois).

Avaliando as entrevistas antes e depois das atividades, de uma maneira comparativa, foi possível perceber que o conhecimento inicial sobre a temática de direitos humanos já era existente, porém, de maneira mais abstrata: “Respeitar uns aos outros” (M.S., menino de 12 anos); “A pessoa ter o direito dela a se expressar e fazer o que quiser” (L.O., menino de 13 anos). Depois das atividades, observaram-se respostas mais elaboradas e relacionadas com os temas trabalhados durante o ano: “Se a pessoa tem seus direitos, deve correr atrás. A gente sozinho não pode fazer nada” (L.O., menino de 14 anos); e ainda “Direitos iguais, sem humilhar as pessoas. […] O bullying com as mulheres” (E.S., menina de 12 anos).

Em relação aos relatos de direitos humanos infringidos, observa-se que, na primeira entrevista, os jovens apresentaram relatos sobre os quais não se implicavam tanto: “Pessoas negras sofrendo preconceito” (R.E, menino de 15 anos) ou “No colégio, várias pessoas desrespeitam os professores” (M.S., menino de 12 anos). Já no segundo momento, notam-se relatos mais próximos de suas vivências: “No fórum, quando o pai não assume a responsabilidade, a promotora deveria procurar mais direitos”; “Na escola, quando tomei a frente de todo mundo na fila”; “Quando a vizinha coloca o som alto demais” (V.S., menino de 14 anos) ou “Quando matam alguém de nossa família. […] Quando a polícia para um cara por ser negro um bocado de vezes” (L.O., menino de 14 anos). Além disso, foi possível observar uma maior implicação dos jovens sobre o tema, reconhecendo que também já violaram direitos dos colegas ou seus direitos foram violados, vivências relacionadas principalmente com o preconceito: “Quando chamo o X [colega do projeto] de viado” (M.S., menino de 12 anos) e “Na escola me chamam de burro, negro […] os apelidos” (B.S, menino de 12 anos).

Com a finalização das atividades, foi possível perceber o conhecimento teórico e cognitivo dos jovens sobre os temas. Apesar disso, as mudanças de comportamento não foram tão claras, sendo possível observar a exposição de opiniões contra outros integrantes do grupo, colocando em questão as vivências promovidas sobre igualdade e respeito às diferenças. Diante disso, reitera-se que a conscientização é um processo e que o convívio social e as atividades em grupo contribuem para tal. Assim, a estimulação do pensamento crítico e a libertação, por meio do diálogo, incentivo de atividades intersubjetivas nas quais os atores produzem, partindo de suas realidades vivenciadas, devem seguir. Ainda, deve-se considerar que o conteúdo aprendido não é uma cópia do que foi transmitido, pois as pessoas reelaboram o que recebem a partir de suas experiências, vivências e cultura (Freire, 2016; Gohn, 2014).

Em relação às expectativas, demandas e sugestões que foram apresentadas pelos jovens, observam-se, tanto antes quanto depois, apontamentos sobre o interesse em atividades dinâmicas, passeios e gincanas. Além disso, como sugestão de temas mais recorrentes, apareceram os assuntos de educação ambiental, racismo, preconceito e bullying, o que reitera a importância do trabalho de facilitação de grupos com jovens em uma perspectiva lúdica e dinâmica, tendo em vista que essas temáticas foram contempladas com maior variabilidade de métodos e dinâmicas.

Considerações Finais

Tanto as informações estatísticas apresentadas neste texto quanto o relato sobre a história do nascimento do bairro Serviluz apresentam notórias violações aos Direitos Humanos. Violações que podem ser representadas pelos altos índices de homicídios, baixo IDH-B, remoção de moradores e interesses públicos que favorecem uma minoria privilegiada. Apesar desses fatores, o bairro possui diversos movimentos internos, seja de associações e escolas de surf, seja de projetos sociais, grupos que promovem atividades de arte, cultura e esporte.

Essas atividades por si só já são promotoras de saúde e promovem acesso a determinados direitos que poderiam não existir se não fossem por elas, como o convívio em comunidade e o lazer, também proporcionando reflexões críticas específicas de cada tema. Porém, outros processos também aparecem como relevantes para instigar reflexões e discussões críticas, sendo um deles a facilitação de grupo de jovens aqui relatada. O conhecimento cognitivo dos Direitos Humanos pode por si só estimular jovens a reivindicar seus direitos e identificar a violação que sofrem, porém, o envolvimento por meio de vivências e trocas em grupo apresenta maior engajamento dos participantes em relação à temática.

Diante disso, o psicólogo possui um compromisso ético e profissional com esse tipo de atuação, tratando as perspectivas do autoconhecimento e conhecimento do contexto social e apresentando comprometimento com os Direitos Humanos. Esse profissional deve, sobretudo, manter uma postura crítica e reflexiva sobre os fenômenos sociais para que não reitere desigualdades e injustiças. Para esse processo, as práticas da educação não formal podem ser fortes aliadas. Esse modo de atuar possui como vantagem sua maior flexibilidade e a possibilidade de permear por variados temas, o que pode proporcionar a adesão de jovens participantes.

Observar que em apenas um ano de trabalho um grupo de jovens se formou de maneira tão coesa e já propor atividades para melhoria de acesso aos direitos humanos do bairro já é uma grande conquista. Além disso, observa-se que, através do projeto, os jovens puderam ter maiores relações com a comunidade, conhecendo novas pessoas e ocupando de maneira diferente os espaços que já habitavam. Nas atividades externas ao bairro, os jovens também puderam ter contato com novos ambientes e pessoas que provavelmente não conheceriam se não integrassem o grupo de participantes do projeto.

Embora as mudanças de comportamento dos jovens não tenham sido tão perceptíveis, devido à persistência de apelidos e desrespeito aos colegas, em determinados momentos, percebe-se uma mudança de discurso dos participantes sobre os temas. Ademais, os integrantes apresentaram interesse em permanecer no grupo, sugerindo temas e atividades para o ano seguinte (2017), mesmo que esta não seja uma atividade obrigatória.

Diante do exposto, há que se destacar as potências dessa caminhada que apenas foi iniciada e que segue em busca do desenvolvimento de pessoas ativas, questionadoras e participantes na sociedade. Seguindo com conteúdo e dinamicidade para que os jovens possam ter uma compreensão global e implicada sobre os assuntos discutidos no grupo.

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Resumo

O Serviluz, oficialmente denominado como Cais do Porto, é um bairro da cidade de Fortaleza, Ceará, que se encontra em situação de vulnerabilidade social, com alto índice de violência, baixo nível de desenvolvimento humano e uma grande população de jovens em situação de risco. Em 2015, foi realizada uma atuação com os jovens da comunidade com a proposta de trabalhar um Projeto de Vida. Em 2016, o projeto foi nomeado como Projeto de Vida Titanzinho e passou a atuar com a temática de Direitos Humanos, tendo como objetivo provocar reflexões, discussões e ações sobre o assunto. A metodologia envolveu roda de conversa, apresentação e construções de conteúdos, palestras, atividades de campo e grupos de arte. Como resultados das intervenções, foi possível perceber que os jovens apresentaram conhecimentos mais elaborados sobre os direitos humanos e relacionados aos temas trabalhados durante o ano.

Palavras-chave: direitos humanos, Serviluz, psicologia social, educação informal, Projeto de Vida Titanzinho.

Abstract

Serviluz, officially named Cais do Porto, is a neighbourhood in the city of Fortaleza, which finds itself in a situation of social vulnerability, with a high incidence of violence, a low incidence of social development, and a large youth population at social risk. In 2015, a work was done with the community’s young people with the intent of discussing their life project. in 2016, the project was named Titanzinho Life Project and began to revolve around the theme of Human Rights, in order to provoke reflections, discussions and actions involving the subject. The methodology of this project involved discussion groups, the presentation and construction of lectures, field activities and art groups. As a result of these interventions, it was possible to see that the young people involved showcased a more elaborate knowledge on Human Rights and related themes worked on throughout the year.

Keywords: human rights, Serviluz, social psychology, informal education, Titanzinho Life Project.

Data de recebimento: 07/05/2018

Data de aprovação: 11/01/2019

Iara Andrade iara_andrade_@hotmail.com

Mestranda em Psicologia pela Universidade de Fortaleza – UNIFOR, Brasil. Atualmente é membro do Laboratório de Estudos sobre Processos de Exclusão Social (LEPES). Também atua com intervenção social por meio do Projeto de Vida Titanzinho.

Paula Autran autranpaula@gmail.com

Graduada em Psicologia pela Universidade de Fortaleza – UNIFOR, Brasil. Pós-graduação em Neuropsicodiagnóstico – Educação a Distância, pela Unichristus, Brasil. Mestranda em Psicologia, Universidade Federal do Ceará - UFC, Brasil. Também atua com intervenção social por meio do Projeto de Vida Titanzinho.