Guerra de pipoca: a infância como substância
Parte importante de uma de nossas pesquisas se deu na escola da localidade conhecida como Rodeador e no trajeto do acampamento sem-terra Canaã até ela. Diariamente, as crianças das chácaras, acampamentos e assentamentos próximos ao Rodeador faziam o trajeto de ônibus. Os ônibus que as transportavam eram diferentes, de acordo com classificações etárias. O ônibus dos menores – para crianças de 4 a 7 anos – passava mais cedo. O ônibus dos maiores – mais de oito anos – passava em seguida. E os adultos pegavam o ônibus de linha para irem para suas aulas, à noite.
Abrindo uma exceção ao pesquisador, o ônibus dos menores transportou o antropólogo junto com as crianças em seu trajeto à escola. Depois de entrar, o ônibus passava em outros acampamentos, assentamentos e chácaras, buscando outras crianças. Em uma das idas à escola, acompanhei e fui acompanhado por Caetano, 5 anos, filho de Dona Rita, que me abrigou em sua casa por três semanas durante a pesquisa. Caetano estava sentado ao meu lado e pediu para eu colocar o cinto de segurança. Expliquei para ele que o cinto era muito pequeno para mim. Foi então que uma menina da turma dele, Bianca, me questionou:
Bianca: Você vai estudar? Você tá nos ônibus dos menores por quê?
Gustavo: É. Eu sou criança – disse em tom de brincadeira, curioso para ver aonde ela levaria.
Bianca: Criança? Cadê sua mochila de ir para a escola?
Gustavo: Olha aqui meu caderno – apontando para o diário de campo.
O menino da frente entrou na conversa também.
Menino: Nunca vi criança de bigode!
Bianca: Você tem carteira – disse ela apontando para meu bolso. Você não é criança.
Ao chegar à escola, na saída do ônibus, Bianca voltou a levar a sério o que eu tinha dito. “Você fica na fila dos meninos!”, indicando-me que, para ser criança, teria que agir como uma: desfazer-me da carteira, do bigode, usar mochila e entrar na fila. No ônibus dos menores, eu deveria usar o cinto.
Mais do que uma classificação que permite identificar crianças e adultos baseada em uma concepção cultural, Bianca sugeriu que ser criança dependia de um fluxo que a relacionava a um conjunto de objetos, de características. A mochila, o cinto e o ônibus carregavam consigo uma substância infantil. A carteira e o bigode continham o ser adulto em sua composição. Os atributos de adultos e de crianças não implicavam para Bianca uma consequente classificação estanque, em uma taxonomia. Eu poderia ser adulto e estar no ônibus dos menores e, possivelmente, uma criança que tivesse uma carteira não seria menos criança. O fluxo entre coisas de criança e de adultos transpunha a barreira do que era concebido como ser criança e ser adulto.
Essa ideia de que um conjunto de coisas possui propriedades “de criança” também apareceu em uma das visitas que fiz a Laura, uma das moradoras do Canaã. Na ocasião, sua mãe, que mora no interior do Piauí, estava visitando a filha e os netos no acampamento e aproveitando a estadia na capital para fazer consultas no hospital. A mãe de Laura tinha por volta de 60 anos. Laura a apresentou para mim:
Laura: Ela está doente. Veio ver um médico.
Mãe de Laura: É. Daqui a pouco estou que nem criança… Você sabia, meu filho, que gente velha vira criança? Eu não virei criança ainda, não. Falta uns anos ainda. Mas gente muito velha tem que usar fralda, tem que comer na mão dos outros. Fica dependendo dos outros, sabe? Precisa dos outros pra banhar, pra trocar de roupa…
Como para Bianca, para a mãe de Laura, ser criança é uma propriedade que emerge na relação que se tem com objetos, com necessidades, em suma, com outras coisas além de si mesmo. As fraldas comportam algo de criança. A necessidade específica de cuidados também é característica de crianças. No entanto, nem a fralda nem a ajuda dos outros para tomar banho ou trocar de roupa são exclusivos das crianças. Velhos também desfrutam desse fluxo de cuidados similar aos que se destinam para crianças. “Ser criança”, portanto, não seria uma característica exclusiva de crianças.
A noção fluida de ser criança, como substância, transformadora de quem a compartilha, fez-se notar vividamente em um dos fins de semana em que fui passar filmes no acampamento. Naquela ocasião, duas moradoras do Canaã – Rosa e Eliana – mostraram que as fronteiras entre crianças e adultos não eram pensadas ou vividas de forma rígida. Naquele domingo, com o projetor do Departamento de Antropologia da UnB, com o DVD do filme, com três refrigerantes e alguns sacos com milho de pipoca, retornei ao Canaã. Passei na casa de Dona Rita e falei para Caetano e sua irmãzinha Verônica irem para a igreja, onde eu passaria o filme. Chamei também as crianças da casa de Eliana. Quando fui para a casa de Rosa para avisar André, Kethlen e Felipe acerca do evento, ela me perguntou:
Rosa: E é só para criança, é? Eu posso ir também?
Gustavo: Pode!
Rosa: Eu sou criança também, sabia?
A afirmação de Rosa me deixou um pouco desconcertado. Não estava preparado para ouvir “Eu sou criança também” de uma mulher com três filhos e mais de trinta anos. Falei para Rosa que ela poderia assistir ao filme também. Ela se animou e disse que chamaria Eliana para ver junto. No caminho para a igreja, sem entender o ponto de Rosa, fiquei imaginando se a mãe gostaria apenas de assistir ao filme. Será que ela achou que eu negaria a ela a possibilidade de ver o filme? “Passar-se por” criança seria uma “estratégia” para conseguir comer pipoca e ver um desenho animado?
Quando chegamos à igreja, estavam todos sentados. Rosa e Eliana estavam lá. Enquanto fui montar o projetor, Eliana disse que ia estourar a pipoca. Alguns minutos depois, Eliana voltou com duas bacias de pipoca e as colocou no chão, entre as cadeiras e a imagem projetada do filme. Assim que ela regressou, coloquei o filme para começar. A animação do dia era O Menino e o Mundo, uma produção brasileira de 2014. O filme conta a história de um menino que deixa a aldeia onde vive para encontrar seu pai, que foi tentar ganhar a vida na cidade. Algumas crianças acompanharam atentamente o filme, reagindo às ações do menino e rindo. Victor, a todo o momento, levantava para pegar a pipoca da bacia no meio e parecia pouco se interessar pela animação. Leonardo e Caetano ficaram vidrados no filme.
Quando acabou a projeção, perguntei “O que vocês acharam?”, com o propósito de saber as impressões sobre a animação. Minha postura, naturalizada pelos vícios acadêmicos e pedagógicos, revelava uma ansiedade para promover um inquérito com tons dialógicos, a fim de avaliar se a atividade tinha sido produtiva ou não. A resposta à minha crença desenvolvimentista veio com o grito de Lucas, de doze anos: “Guerra de pipoca!”. Lucas encheu a mão com a pipoca da bacia e jogou em Cleonice, de 11 anos. A menina respondeu com o mesmo gesto. As outras crianças entraram rapidamente na brincadeira. As pipocas eram lançadas para todos os cantos. As crianças riam. Em meio às nuvens de pipoca que entrecruzavam a igreja, olhei para Eliana e Rosa com a expectativa de que elas interrompessem a brincadeira. Ainda não me dera por vencido, em meu afã de educador popular de fim de semana. As duas mães, sem titubear, encheram a mão com pipoca da bacia e participaram da guerra como as outras crianças. A pipoca da bacia espalhou-se toda pelo chão da igreja. Eliana, Rosa, Verônica (16 anos) e eu varremos o chão depois da guerra, enquanto as demais crianças foram jogar futebol no campinho lá fora.
A conversa com Rosa e sua participação na guerra de pipoca continuaram me desestabilizando após aquele domingo. As ações de Rosa não faziam parte daquilo que eu – e qualquer um como eu – esperaria de um adulto. Na minha expectativa, o adulto, naquela ocasião, seria sério, interromperia a guerra de pipoca por fazer sujeira, por dar muito trabalho. Um adulto chamaria a atenção das crianças para participar do debate, para externar suas opiniões sobre o filme. Rosa e Eliana tomaram outro caminho. Elas não imitaram uma criança. Elas entraram na brincadeira da mesma forma que as crianças. Isso de forma alguma era entendido como algo de que deveriam sentir vergonha, algo que as diminuísse. Em outra ocasião, ela voltou a afirmar ser criança. “Você estuda crianças, né? Então vai ter que me estudar também.”
Assim como Bianca e a mãe de Laura, para Rosa, ser criança não tem a ver com uma classificação estanque que parte de um conceito ao qual a experiência deve reverência. Em parte, porque passa longe de ser mensurável – não é uma diferença etária e nem de tamanho. Ademais, a brincadeira da criança pode impregnar o adulto. Mexe com a criança que nele pode vir a ser. Tem a ver com um fluxo que conecta pessoas, coisas, brincadeiras e desenhos animados. Ser criança vem acompanhado dos movimentos da guerra de pipoca, da queimada, do pique-cola. Deixar se afetar por músicas e desenhos animados também faz parte do fluxo. Tornam-se crianças por pegarem o ônibus dos menores e por usarem mochila, como Bianca. Eliana se faz criança cantando as músicas do MST e jogando pipoca em outras crianças. Rosa é criança também. Esse fluxo criança – ou devir, na acepção de Deleuze e Guatari (1997/1980) – não exclui adultas ou idosas no seu movimento.
O fluxo-criança, no entanto, não apaga as diferenças que se estabelecem entre ser adulto e ser criança, pois assim como o ser criança, o ser adulto tampouco corresponderia a uma categoria taxonômica rígida. Ser adulto também é um fluxo. Em vez de conectar as pessoas com desenhos animados e brincadeiras, o adulto é feito com carteira, com bigode, com bebida alcoólica2, talvez com trabalho. Existe um movimento em sentido diverso do ser criança, que é o movimento de ser adulto. E este movimento de tornar-se adulto tampouco é exclusivo das pessoas adultas, uma vez que crianças também trabalham, também bebem bebidas alcoólicas, também podem ter carteira. Em suma, existe um devir-adulto que também pode atravessar as crianças. Entre as concepções estanques do que é criança e do que é adulto cabem muitas figuras: a criança trabalhadora; o adulto analfabeto; a criança mãe; a adolescente em conflito com a lei; a liderança sem-terrinha; a mãe na guerra de pipoca ou o vizinho adulto no jogo de queimada, divertindo-se com as crianças pequenas, como veremos na próxima seção.
A guerra de pipoca da qual Rosa e Eliana participaram não deveria ser reduzida a uma lembrança da criança que elas foram3. Não é uma regressão a um estágio anterior de sua vida. Rosa e Eliana se fizeram criança no presente, simultaneamente ao movimento da guerra de pipoca. Assim como a criança que trabalha na roça não necessariamente preconiza ou antecipa seu futuro como adulto. Ela se faz adulta no presente, no movimento de seu trabalho. Criança e adulto convivem e se sucedem em um tempo que não é linear, independentemente de seu tamanho ou idade. O que normalmente chamamos passado, presente e futuro, conformam tempos coexistentes, ou melhor, um amálgama indivisível, tornando impossível separar a infância da fase adulta em uma linha ascendente e sem volta.
3 – Sobre a distinção entre devir-criança e a criança como memória, ver Deleuze e Guatari, 1997, p. 81.