UNICEF, Brasil e racismos: infâncias negras importam
O UNICEF (2010) lançou um relatório específico sobre os racismos nas infâncias brasileiras, sendo o primeiro em que esta temática é colocada como central em uma publicação desta agência multilateral. No ano dessa publicação, o Fundo das Nações Unidas para a Infância completava 60 anos, portanto, esse documento ganha uma visibilidade importante na medida em que apresenta uma questão relevante para o país simultaneamente à comemoração da existência dessa organização internacional. O título do relatório é O Impacto do Racismo na Infância. O documento destaca que houve diminuição da mortalidade infantil e redução da miséria no Brasil. Porém, estes indicadores não seriam os mesmos quando se trata de crianças negras e indígenas.
Um ponto abordado na introdução do relatório é a grave conjuntura de desigualdades sociais e econômicas na vida de crianças e adolescentes brasileiros(as), quadro este que se materializa nas escolas, nas cidades, nos estabelecimentos de saúde, na segregação social, no âmbito das violências sofridas e das políticas de assistência social. Espaços de proteção podem se tornar lugares de discriminação negativa e de preconceito, bloqueando acessos e oportunidades, por exemplo, como é possível visualizar, abaixo:
Essas crianças e adolescentes ainda vivem em contextos de desigualdades. São vítimas do racismo nas escolas, nas ruas, nos hospitais ou aldeias e, às vezes, dentro de suas famílias. Deparam-se constantemente com situações de discriminação, de preconceito ou segregação. Uma simples palavra, um gesto ou um olhar menos atencioso pode gerar um sentimento de inferioridade, em que a criança tende, de forma inconsciente ou não, a desvalorizar e negar suas tradições, sua identidade e costumes (UNICEF, 2010, p. 3).
Vinte e seis milhões de crianças e adolescentes brasileiros vivem em famílias pobres. Representam 45,6% do total de crianças e adolescentes do País. Desses, 17 milhões são negros. Entre as crianças brancas, a pobreza atinge 32,9%; entre as crianças negras, 56%. A iniquidade racial na pobreza entre crianças continua mantendo-se nos mesmos patamares: uma criança negra tem 70% mais risco de ser pobre do que uma criança branca (UNICEF, 2010, p. 6).
Os índices de mortalidade infantil de crianças indígenas e negras é bem maior do que o de crianças brancas, assim como o da pobreza. Iniquidades históricas têm sido reproduzidas no tocante à raça-etnia no Brasil, e estas atingem de modo intenso as vidas de infâncias negras, as prejudicando gravemente em diferentes áreas e setores de suas vidas e existências.
No Brasil, apesar de todos os esforços que asseguraram uma taxa de mortalidade infantil em torno de 19 mortes para cada 1.000 crianças nascidas vivas, a taxa de mortalidade infantil indígena ainda representa um sério problema de saúde pública. Em 2009, relatório oficial da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) revelou a taxa de 41,9 mortes infantis para cada 1.000 crianças indígenas nascidas vivas. Embora esse dado reflita uma forte tendência de queda desde 2000, ele representa valores acima da população em geral (UNICEF, 2010, p. 6):
Uma criança indígena entre 7 e 14 anos tem quase três vezes mais chance de estar fora da escola do que uma criança branca na mesma faixa etária; e uma criança negra entre 7 e 14 anos tem 30% mais chance de estar fora da escola do que uma criança branca na mesma faixa etária (UNICEF, 2010, p. 7).
O bloqueio escolar e a evasão fazem parte de repúblicas pouco democráticas e que exclui muitos da condição de cidadania efetiva ao impedir a escolarização de determinados grupos sociais de diferentes modos pelo preconceito, discriminação negativa e ausência de políticas sociais afirmativas. Castel (2008), ao estudar o processo de bloqueio escolar, na França, ressaltou que em boa parte eram filhos de imigrantes da África e, para este sociólogo, esses estudantes eram construídos como autóctones da República, em uma política explícita de impedimento educativo. Esta prática assinala um ponto importante a ser considerado na colonialidade cultural, educativa e científica na medida em que deixa evidente o campo de disputas racistas no apagamento das crianças e adolescentes cedo, já no contexto escolar:
Na adolescência, algumas das maiores violações são os homicídios, a exploração sexual. […] No tema da exploração sexual, as vítimas desse tipo de crime, em sua grande maioria, são adolescentes entre 15 e 17 anos de idade, quase sempre negras ou indígenas (UNICEF, 2010, p. 7).
Na adolescência, algumas das maiores violações são os homicídios, a exploração sexual nas grandes cidades e os suicídios nas aldeias indígenas. Segundo o estudo realizado sobre o Índice de Homicídio na Adolescência (IHA) – uma parceria entre Laboratório de Análise da Violência, UNICEF, SEDH e Observatório de Favelas –, o risco de ser assassinado é 2,6 vezes maior para os adolescentes negros em comparação aos brancos, nas grandes e médias cidades brasileiras, com população acima de 100.000 habitantes (UNICEF, p. 8).
O extermínio de adolescentes negros(as) e o alto índice de mortalidade infantil de crianças negras é um analisador da necropolítica e da tanatopolítica na medida em que evidencia o deixar morrer e o matar aqueles que são classificados como vidas matáveis e que são desvalorizadas de modo racista pelo Estado e pela sociedade. O deixar morrer é o não agir para diminuir e eliminar a vulnerabilidade maior de um grupo pela implementação de políticas sociais e definição de orçamento específico para tais ações. Já o genocídio de jovens negros(as) é a própria política de morte e da inimizade em ato, na matança desse grupo por milícias, por policiais e durante o cumprimento de medidas socioeducativas de privação da liberdade, por exemplo. É nesse sentido que Mbembe (2018) destaca que o matar se torna uma assunto e ato de alta precisão, no contemporâneo. A patrulha e a intimidação são também maneiras de efetuar guerras altamente destrutivas na atualidade contra os grupos que são tornados não valorizados e não importantes.
Cálculos econômicos produzidos nos últimos anos mostram que, para superar os atuais indicadores de desigualdades raciais na população brasileira, seriam necessários R$ 67,2 bilhões, investidos em curto prazo. Com esses recursos, seria possível equalizar os indicadores de educação, habitação e saneamento, e como consequência desencadear um processo de equilíbrio na igualdade de acesso aos serviços para os diferentes grupos da sociedade. Esse valor pode ser revertido em ações comprometidas com a cidadania e com a ética, que buscam a promoção da igualdade étnico-racial, resultando em efeitos positivos na educação de crianças e adolescentes (UNICEF, 2010, p. 12):
Chamar a atenção sobre os impactos do racismo na formação de uma criança é reconquistar os valores e as atitudes que possibilitam o reconhecimento da riqueza da diversidade brasileira; e de como essa riqueza tem valor como bem imaterial para nossas crianças e adolescentes, gerando uma sociedade mais justa.
O Brasil tem desenvolvido muitas ações relevantes em favor da criança, mas a distância entre a política pública e as crianças indígenas, brancas e negras é muito grande e persiste há muitos anos. Precisamos pensar mais sobre por que essas distâncias não diminuem apesar das políticas e refletir sobre como nossas crianças estão se desenvolvendo sob a naturalização do racismo. Para fazer acontecer a igualdade, é preciso olhar de frente essa questão e dar o valor devido à diversidade (UNICEF, 2010).
Estes acontecimentos relatados pelo UNICEF (2010) delineiam o que Butler (2019) definiu como quadros de guerra, cujos enquadramentos das políticas públicas apontam que alguns grupos de crianças são privilegiadas face a outros que têm seus direitos negados. A maneira de distribuir recursos, de tomar decisões políticas e a prática de implementação e acompanhamento das intervenções sociais são formas de silenciar, apagar, interditar e subalternizar grupos. Portanto, a colonialidade é um projeto e não uma naturalidade econômica, cultural e subjetiva. Mbembe (2018) assinala que grupos produzidos como selvagens não são vistos como cidadãos.
Crianças e adolescentes têm o direito a conhecer e valorizar os diferentes modos de agir, de pensar, de ver o mundo e de aprender a se relacionar com o outro. Crianças também têm o direito de ser reconhecidas em suas identidades e de desenvolver a sua autoestima e seus valores como grupo étnico ou histórico. Dessa forma, tecidos sociais de igualdade tendem a ser mais fortes e reais (UNICEF, 2010).
Ser reconhecido(a), acessar direitos e ser valorizado(a) em uma sociedade é o efeito e resultado de um complexo contexto de ações éticas, estéticas e políticas, em um tempo e espaço históricos específicos. A colonialidade ocorre como uma guerra em que se exerce uma necropolítica, a qual forja alguém como inimigo e, sobretudo, visa submeter quem é colocado neste lugar. Este suposto inimigo é alvo de suspensão da sua humanidade, da sua cidadania e da sua condição de singularidade subjetiva. Alguém sem poder materializar e ter reconhecida a sua fala e o seu pensamento é um ser que é anulado e destituído de uma sociedade de direitos e da própria condição ontológica de existir como um ser humano.
Conclusões provisórias
Quando se problematiza educação e colonialidade, busca-se analisar o quanto os corpos dependem de condições de sobrevivência e de instituições sociais para reduzirem a precariedade da vida. A desumanização de grupos, sobretudo negros e indígenas, é parte de um projeto de sociedade em que disciplina, soberania, biopolítica, tanatopolítica, necropolítica, colonialidade, educação, dominação e violência estão interligadas, em uma imensa rede de forças, algumas mais duras e centrípetas; outras, mais flexíveis e centrífugas.
Os níveis de responsabilidade de cada política aprovada e/ou extinta, de cada aspecto das apreensões do pensamento, do conhecer e reconhecer são e podem ser distribuídos por todos e todas, na medida em que posiciona cada ser em um imenso plano de compromisso com o bem comum. Algo sério deve-se problematizar quando o sofrimento do outro não incomoda e toca alguém.
Ora, Butler (2018) provoca cada um a pensar o quanto a comoção é fabricada e como ela é resultante de uma regulação política. Qual é a capacidade do povo se indignar face aos poderes da necropolítica e da tanatopolítica, da violência e dominação, dos enquadramentos mortíferos das guerras e dos processos diferenciadores dos corpos em classificações disciplinares e soberanas, entrelaçados em uma biopolítica? Como o controle das imagens e dos discursos por um projeto colonial pode modular e em que medida um governo das condutas pautado no extermínio e o quanto o luto se torna passível de ser vivido a partir destas práticas?
Estas e outras questões são contundentes e auxiliam a formular um campo profícuo de estudos e políticas de cuidado com viés (des)colonial para que se realize uma educação libertária, a qual não desumanize nem menorize ninguém. Acreditar no que pode um corpo e tomar posse da fala, do lugar de quem pode falar porque ocupa uma posição sem ser necessariamente um especialista de algo, mas pela própria dimensão da experiência enquanto ato legítimo de uma política afirmativa da vida.
O UNICEF, ao trabalhar a infância sem racismo, atua em uma visão liberal de abertura de oportunidades e acessos, de quebra de preconceitos e segregações. Ainda atua na vertente dos direitos à igualdade e ao reconhecimento como fundamentais para a garantia da vida e do respeito às infâncias negras, no Brasil. Neste sentido, essa agência é uma parceira importante na defesa e promoção dos direitos das crianças e adolescentes negras e no enfrentamento aos racismos no país. O Fundo das Naçoes Unidas para a Infância faz pressões relevantes ao Brasil para a implantação de políticas públicas concretas de ruptura dos racismos e de resistências às práticas necropolíticas, biopolíticas e tanatopolíticas bem como de crítica aos apagamentos, desautorizações e interdições discursivas sofridas pelas crianças e adolescentes negras.
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Resumo
Este artigo busca problematizar práticas do UNICEF de (des)colonização e, paradoxalmente, de silenciamento e controle dos corpos de crianças e pela atualização dos mecanismos de colonialidades das vidas negras, a partir de uma conversação entre Mbembe, Foucault, Sontag, Carneiro, Gonzalez e Butler. O texto é resultado de pesquisas com documentos do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). Trabalha-se com documentos sobre a situação da infância brasileira, produzidos em português pela referida agência internacional, no país. Problematiza-se o enquadramento das vidas de crianças negras e como elas são construídas como precárias a ponto de serem vulnerabilizadas por mecanismos biopolíticos e necropolíticos de desautorização e interdição discursivos de todos(as) que são classificados(as) como não humanos, logo, alvos de colonização. Por fim, abordam-se fragmentos de relatórios do UNICEF em que os enquadres de guerra biopolíticos e necropolíticos são materializados por tanatopolíticas.
Palavras-chave: colonialidade, necropolítica, biopolítica, UNICEF, infâncias negras.
Unicef, (de)colonialidads y niños: la vida negra importa
Resumen
Este artículo busca problematizar las prácticas de UNICEF de (des) colonización y, paradójicamente, de silenciar y controlar los cuerpos de los niños y actualizar los mecanismos de colonialidad en las vidas de los negros, basado en una conversación entre Mbembe, Foucault, Sontag, Carneiro, Gonzalez e Butler. El texto es el resultado de una investigación con documentos del Fondo de las Naciones Unidas para la Infancia (UNICEF). Trabajamos con documentos sobre la situación de la infancia brasileña, producidos en portugués por la mencionada agencia internacional en el país. El encuadre de las vidas de los niños negros se problematiza y cómo se construyen como precarios hasta el punto de ser vulnerables por mecanismos biopolíticos y necropolíticos de desautorización e interdicción discursiva de todos los que están clasificados como no humanos, por lo tanto, objetivo colonización. Finalmente, aborda fragmentos de informes de UNICEF en los que los marcos biopolíticos y necropolíticos de la guerra se materializan por tanatopolítica.
Palabras clave: colonialidad, necropolítica, biopolítica, UNICEF, infancias negras.
Unicef, (de)colonialities and children: black lives matter
Abstract
This article seeks to problematize UNICEF practices of (de)colonization and, paradoxically, of silencing and controlling the bodies of children and by updating the mechanisms of coloniality in black lives, based on a conversation between Mbembe, Foucault, Sontag, Carneiro, Gonzalez e Butler. The text is the result of research with documents from the United Nations Children’s Fund (UNICEF). We work with documents on the situation of Brazilian childhood, produced in Portuguese by the aforementioned international agency in the country. The framing of the lives of black children is problematized as is how they are constructed as precarious to the point of being vulnerable by biopolitical and necropolitical mechanisms of disauthorization and discursive interdiction of all who are classified as non-human, therefore, target colonization. Finally, it addresses fragments of UNICEF reports in which the biopolitical and necropolitical frameworks of war are materialized by tanatopolitics.
Keywords: coloniality, necropolitics, biopolitics, UNICEF, black childhoods.
Data de recebimento: 08/09/2020
Data de aprovação: 08/02/2021