A história e a memória da última ditadura argentina, marcada substancialmente pelo assassinato e o desaparecimento planificado de milhares de pessoas, é parte central do campo de estudos da chamada história recente1. Apesar de esses acontecimentos terem lugar entre os anos setenta e oitenta, sua condição “recente” se expressa nas repercussões que as políticas repressivas da ditadura tiveram e têm nas práticas e nos discursos judiciais, políticos, estatais, partidários, sociais, culturais e econômicos das últimas quatro décadas.
Neste sentido, estudar e compreender as caraterísticas das políticas repressivas dos anos setenta (antes e durante a última ditadura) nos permite lançar luz sobre processos que ainda continuam em aberto nas diferentes áreas da vida social. As políticas públicas em torno da infância e da juventude de ontem e de hoje podem (e devem) ser compreendidas à luz dessa história, visto que as formas de entender esses setores sociais e as diferentes propostas para sua “correta” socialização encontram sua formulação nesses anos.
Para ilustrar os modos em que esse passado continua aberto nas disputas sobre a infância e a juventude, podemos tomar como exemplo um acontecimento muito recente. No dia 15 de julho deste ano, por meio da resolução 598/2019 do atual Ministério da Segurança argentino, a cargo de Patricia Bullrich, foi criado o Serviço Cívico voluntário em valores, orientado a jovens entre 16 e 20 anos de idade e que será implementado nos próximos meses do ano de 2019 pela Gendarmería Nacional Argentina2 com seus recursos humanos e infraestrutura, segundo estabelece o artigo nº 3 da norma (Boletim Oficial Nº 34154, 16/7/2019). O envolvimento das Forças Armadas argentinas nas tarefas de capacitação laboral, treinamento físico e educação em valores dos jovens argentinos foi impulsionado e defendido pelos titulares dos atuais ministérios da Segurança e Educação. Esse episódio gerou debates e críticas na opinião pública com diferentes argumentos que incluíram tanto alertar sobre a possível reimplantação do serviço militar quanto o apagamento do rol pedagógico e formativo da escola na trajetória dos jovens.
Entretanto, acreditamos que é possível pensar e inscrever este acontecimento numa perspectiva histórica mais ampla. Nesse sentido, desde os anos setenta existiram pelo menos dois espaços que, mesmo que internamente diversos e complexos, respondiam a duas grandes tendências. Uma delas, predominante no período 1976-1983, se expressou nas propostas das Forças Armadas e do “mundo católico”. Esses setores, durante a ditadura, a partir da Secretaria do Menor e da Família, foram responsáveis pela formulação de políticas públicas destinadas à família, à infância e à juventude. Para esse setor, o conteúdo da educação devia se basear num ideário católico e nacionalista. Por sua vez, propunham atividades conjuntas entre as crianças, os jovens e os militares das diferentes armas, já que consideravam positivamente a socialização das crianças nos valores castrenses ligados à disciplina dos corpos, à defesa da pátria e do modo de vida ocidental e cristão. Um exemplo disso, retomando as linhas de continuidade com a medida anunciada pela atual ministra de Segurança, foi a criação da Gendarmería Infantil durante a ditadura. Essa iniciativa foi “uma tentativa de incidir na socialização das crianças e jovens por parte de um setor do regime militar” (Lvovich; Rodríguez, 2011). O objetivo era manter as crianças e jovens “afastados da subversão”, estabelecendo laços entre este setor da população e as forças de segurança, socializando em valores, princípios e cerimônias próprios dessas forças.
Embora também tenha existido uma rede de atores alternativa relacionada, por exemplo, ao Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), espaços artísticos e culturais, médicos pediatras como Florencio Escardó, dentre muitos outros que eram diversos ideologicamente, mais do que uma socialização autoritária, focavam no desenvolvimento da infância tendo em consideração seus direitos humanos, a ludicidade e a criatividade. Essa não foi a tendência predominante nesses anos, mas é importante considerar que também oferecia propostas distintas no espaço público.
Os setores que defendiam o imaginário conservador próprio da aliança entre católicos e militares eram os funcionários responsáveis pela Secretaria do Menor e da Família, dirigida pelo advogado católico Florencio Varela.
No discurso destes setores, podemos encontrar diferentes tópicos e diagnósticos sobre o acontecido na família, que se traduziram em distintas práticas e políticas em torno da infância e da juventude.
Por um lado, os agentes estatais da última ditadura, em seus discursos, utilizavam metáforas organicistas e biologicistas. Nesse sentido, segundo os diagnósticos do governo, a “subversão” era percebida como um vírus ou uma doença que tinha infeccionado o “corpo social” no seu conjunto, incluindo seus “tecidos” mais microscópicos. A família era representada como a “célula fundamental da comunidade”, sua unidade mínima indissolúvel na conformação desse “corpo social”. Por sua vez, era considerada o lugar depositário dos valores essenciais de uma mítica “identidade nacional”, relacionada com a moral cristã (Filc, 1997). Esse imaginário, próprio das elites católicas, nesses anos, se articulou ao propósito das Forças Armadas de aniquilar o heterogêneo e difuso “inimigo subversivo” que, por sua vez, era representado como um câncer ou uma infecção que se propagava pelo “tecido social” e contagiava todas as “células”. Por conseguinte, se considerava necessário “extirpar” da raiz as partes “contaminadas” do organismo. Igualmente, tentava-se fazer com que as “células do corpo” (as famílias) se protegessem dessa “ameaça” para evitar sua propagação. Nesse sentido, face à presença das ideias consideradas “estranhas” e “subversivas”, se considerou importante fortalecer a moral cristã e reforçar uma hierarquia “natural”, na qual o homem-pai devia ocupar o lugar de autoridade e a direção, enquanto a mulher-mãe devia amar sua família, assegurando o resguardo e a transmissão da tradição. Para conservar a integridade dessa unidade moral indissolúvel, tinha de ser evitado o ingresso de ideias “dissolventes”. Para isso, era necessário controlar, sobretudo, as “partes frágeis” da parede da “célula”: as crianças e jovens da família. Se considerava que, por meio deles, se propagava “o vírus da subversão” e os responsáveis de que isso não acontecesse eram o pai e a mãe. Os pais (principalmente, os homens) deviam “retomar a liderança” para “preservar” a “segurança” do lar, controlando autoritariamente a conduta dos filhos. Considerava-se importante robustecer o conteúdo moral cristão da educação dos menores, ligado ao “verdadeiro” ser argentino. Caso contrário, os jovens se veriam “seduzidos e enganados” pelo “inimigo”, através das drogas e do sexo, recaindo nos “desvios” como a prostituição, a homossexualidade, a loucura e a criminalidade.
Por outro lado, nos discursos dos funcionários, as crianças eram associadas principalmente ao futuro e, neste sentido, representavam um campo de incertezas que era fundamental controlar e dirigir para que se transformassem nos homens, cidadãos e dirigentes do amanhã.
Jorge Rafael Videla, o primeiro presidente dessa ditadura, numa conversa com as “crianças jornalistas” de um programa de televisão, afirmava que “conversar com uma criança é, em alguma medida, dialogar com o futuro e não podem ter dúvida alguma que vocês, hoje crianças, serão os dirigentes do ano 2000” (La Nación, 7/8/1978). A representação da criança como conexão com o futuro poderia implicar um risco – se os pais e responsáveis pela educação das crianças cometessem erros – ou a construção do ideal de Nação que desejavam os setores católicos encarregados da infância e da família. Devido ao fato de que a infância era percebida como o futuro indefinido do país, devia ser corretamente educada nos “valores cristãos e morais da família argentina”.
Tendo em conta esses diagnósticos, representações e as características dos atores relacionados ao universo infanto-juvenil, é possível analisar algumas políticas públicas e iniciativas relacionadas às crianças e aos jovens.
2 – Força de Segurança dependente do Ministério da Segurança composta por um corpo militarizado com funções similares às da polícia.