Foto: Sophie Shapiro

A escuta de crianças no sistema de Justiça no Brasil: ações e indagações

Entrevista de Tatiana Fernandes com Leila Maria Torraca de Brito

Tatiana Fernandes – Gostaríamos de saber um pouco sobre a sua trajetória na universidade.

Leila Torraca – Tenho trabalhado com disciplinas relacionadas à Psicologia Jurídica desde 1986, quando comecei a lecionar no curso de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), no curso de especialização em Psicologia Jurídica e, posteriormente, na pós-graduação em Psicologia Social.

Sobre o tema específico da escuta da criança no sistema de Justiça, logo que surgiu a demanda para atuação de psicólogos no chamado “depoimento sem dano”, iniciei, junto com alunos, uma série de pesquisas e discussões. A investigação começou com um projeto em que se buscava entender como era feito esse depoimento das crianças que supostamente sofreram abusos sexuais. Posteriormente, em outra pesquisa na qual contamos com o apoio da Faperj, iniciamos uma série de entrevistas com psicólogos em diversos estados de todas as regiões do país. Com esse estudo, começamos a analisar como era feita essa “escuta da criança”, não só nos tribunais, mas também nas delegacias e no Ministério Público.

Tatiana Fernandes – Como se dá, no sistema de Justiça, a escuta da criança que supostamente foi vítima de abusos sexuais?

Leila Torraca – Quando se começa a falar mais sobre violências e abusos contra crianças, surgem também serviços especializados para lidar com esses casos. E aparecem com o objetivo de colaborar e realizar parcerias com o Judiciário, visando uma avaliação mais ampla da situação apresentada. Em 2003, porém, surgiu no Rio Grande do Sul a proposta de aplicação da técnica denominada de “depoimento sem dano”, um projeto do Dr. José Antonio Daltoé César. A partir de então, muitos serviços são instalados com base nesta proposta.

Tatiana Fernandes – O que seria o “depoimento sem dano”?1

Leila Torraca – Hoje, após várias discussões sobre qual seria a denominação mais apropriada – depoimento sem dano, depoimento especial, depoimento com redução de danos –, utiliza-se a nomenclatura “depoimento especial”. Este surgiu com o propósito de uma escuta diferenciada da criança. Ao invés de falar diretamente ao juiz, ela fica em uma sala separada, na companhia de um psicólogo, que permanece com um fone de ouvido, enquanto o juiz, os advogados e os demais interessados estão na sala de audiências. Alega-se que, nesses casos, o psicólogo serviria de mediador, intérprete, recebendo as perguntas do juiz e transmitindo-as às crianças, com o intuito de adequar para elas as informações. O depoimento é gravado e transmitido em tempo real para a sala de audiências. O projeto inicial, lançado pelo Dr. Daltoé, previa uma sala especializada, adequada para a criança se sentir bem, com mesinhas e cadeirinhas, material lúdico, brinquedos. A fase inicial consistiria em um ‘rapport’, um acolhimento da criança. Esta fase não é filmada e dura cerca de 20 minutos. Depois, ocorre a fase das perguntas e no final pode ser feito o encaminhamento. Esta última fase também não é filmada.

Nas pesquisas que realizamos, percebemos diferenças na maneira de executar este depoimento especial, portanto não poderíamos dizer que seria o mesmo procedimento, tampouco que traria os mesmos resultados e desdobramentos. Em alguns serviços, por exemplo, era a criança que ficava com o fone de ouvido, escutando as transmissões diretamente do juiz, e o psicólogo, ao lado, auxiliando caso existisse alguma dúvida. Mas a transmissão era feita diretamente para a criança. Em alguns lugares, não havia a presença de brinquedo ou materiais lúdicos na sala porque se julgava que poderiam distrair a criança. Em outros serviços, inicialmente havia brinquedos, mas esses foram retirados da sala porque distraíam as crianças ou atrapalhavam as filmagens, então os brinquedos ficavam escondidos atrás de uma cortina. Quando a criança não queria falar, os brinquedos apareciam.

Existem ainda os casos em que as crianças passavam primeiro pela avaliação psicológica para depois participar do depoimento especial. Percebemos, portanto, práticas de escuta realizadas de maneiras bem diferentes, podendo acarretar resultados também diferentes. Assim, não podemos achar que, por serem todas denominadas de escuta especial, são feitas da mesma forma. Em alguns lugares, foram mudando esta prática. É isso que precisa ser pensado sobre a variedade de procedimentos com a mesma designação.

A implicação do psicólogo com a ética nestes procedimentos é muito importante. Na época da pesquisa, encontramos situações em que as entrevistas psicológicas realizadas antes do depoimento também eram filmadas e gravadas. Em vista disso, perguntávamos: onde está a ética e o sigilo se esse material está sendo filmado? Esta atitude fere o nosso código de ética em nome do direito da criança. Muito profissionais nos diziam, como justificativa, que o depoimento especial estaria contribuindo para um maior número de condenações. Não sei se isto é bom, se estamos condenando mais inocentes ou não, pois o fato de haver mais condenações não quer dizer muita coisa. Como ficará a criança quando descobrir a condenação? Atualmente se sabe de condenações de pessoas aparentemente inocentes. Então, quais as consequências destas condenações para a criança?

Tatiana Fernandes – Quais seriam os motivos para o surgimento e tamanha adesão do Judiciário quanto à necessidade de escutar essas crianças?

Leila Torraca – Tempos atrás, junto com uma aluna, fiz um levantamento bibliográfico para entender, especificamente, quais os motivos para o surgimento desta demanda. Observamos que a justificativa dessa escuta vem no sentido de se estabelecer a melhor prova, porque muitas vezes não há outra, sendo difícil concluir sobre uma “verdade jurídica”. Outra justificativa, para alguns que defendem o depoimento sem dano, é sobre o fato de se proteger a criança da revitimização. Acreditam que, se não fosse por meio desse procedimento, a criança teria que relatar o caso muitas vezes, para diversos serviços, para distintos profissionais, e por meio da escuta nos moldes do depoimento sem dano a criança seria ouvida apenas uma vez e não seria revitimizada.

Um argumento importante, nesta perspectiva, é o fato de que, ao contrário dos operadores do Direito, os profissionais da Psicologia e do Serviço Social teriam conhecimentos específicos para ouvir a criança. Outros alegam, ainda, que seria um procedimento rápido, pois se chegaria logo a alguma conclusão sobre a ocorrência ou não do fato. Seria então um procedimento novo, rápido, simples e de baixo custo. Alguns também dizem que desta forma se estaria valorizando a palavra da criança. Lógico que diante de todas essas argumentações existem também contra-argumentações.

1 – Vide Projeto de Lei N° 35/2007. Disponível em: http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=39687&tp=1
Leila Maria Torraca de Brito torraca@uerj.br
Doutora em Psicologia. Professora do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Brasil. Desenvolve trabalhos e pesquisas sobre Psicologia Jurídica, guarda de filhos, adolescentes em conflito com a lei, adoção, autoridade parental, direitos infanto-juvenis, medidas socioeducativas.
Tatiana Fernandes tatipsijf@hotmail.com
Mestranda em Psicologia no Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil, Psicóloga e Especialista/Residência em Saúde Mental. Trabalha na Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos de Magé/Rio de Janeiro, Brasil.