Foto: Sophie Shapiro

A escuta de crianças no sistema de Justiça no Brasil: ações e indagações

Tatiana Fernandes – Com o surgimento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990, tem origem o reconhecimento da criança como um sujeito de direitos e, a partir disso, desenha-se uma nova configuração social diante da violência contra a criança. Qual a influência do ECA nesta escuta de crianças?

Leila Torraca – É importante lembrar que atualmente vários autores vêm questionando a utilização dos termos “sujeito de direitos”, tanto para o adulto quanto para a criança. Essas indagações surgem no sentido de se pensar o que se tem feito destas expressões e denominações. O surgimento do ECA foi a concretização de toda uma luta para se considerar as crianças, suas prioridades e direitos. Mas percebe-se que o rumo dos acontecimentos não foi exatamente esse. Existe uma série de justificativas para ações e imposições sobre o que as crianças deveriam fazer em nome dos seus direitos. A partir disso, é importante pensar e discutir: o que seriam os direitos da criança? O que eles se tornaram? Notamos uma grande judicialização da sociedade atual, que pode ter relação com o aumento do número de crianças ouvidas no sistema de Justiça.

Um dos argumentos frequentes no início desses trabalhos do depoimento sem dano é que as salas para tomada de depoimento das crianças seriam especiais e que antes o Judiciário não estava preparado para receber essas crianças. Acredito que não havia um lugar especial para as crianças nos tribunais porque não se pensava que estas fossem frequentar tanto esse sistema. Podemos, então, perguntar: seria este um lugar para crianças? Como pensá-las enquanto sujeito de direitos sem que haja uma imposição para seus depoimentos? Então, cabe atualmente uma grande discussão sobre o uso que se tem feito dessa expressão “sujeito de direitos”.

Tatiana Fernandes – As crianças também eram chamadas para serem ouvidas na época do Código de Menores (1979), antes do ECA?

Leila Torraca – As crianças eram ouvidas sim, mas em outra perspectiva e contexto. Na época do Código, o trabalho das equipes de Psicologia e Serviço Social ocorria mais com jovens acusados de cometerem atos infracionais. Podemos perceber, entretanto, que o ECA se insere dentro de uma conjuntura global que, com a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, passa a privilegiar a doutrina da proteção integral. Com certeza, após o ECA, foi possível um novo posicionamento diante das violências sofridas pelas crianças. Não havia, antes do ECA, essa escuta nos moldes do depoimento sem dano em relação aos casos de violência sexual contra crianças.

Tatiana Fernandes – Quais as concepções de criança que habitam a escuta do Sistema Judiciário? Como um “sujeito de direitos”, um “sujeito em desenvolvimento”, conforme preconiza o ECA?

Leila Torraca – Vou falar a partir de pesquisas que realizamos sobre a escuta de crianças, pois fizemos entrevistas com psicólogos e assistentes sociais e analisamos a jurisprudência proferida por desembargadores a respeito dessa “escuta” para saber qual a argumentação deles a esse respeito. Se eram favoráveis, desfavoráveis, o que era considerado. Percebemos que, ao mesmo tempo em que existe preocupação de se entender a criança como sujeito de direitos, também existe uma tentativa de adequação dessa criança para a obtenção de provas.

A utilização de crianças muito novas nestes processos, submetidas ao depoimento com idades de três anos, cinco anos, acaba produzindo algumas dúvidas quanto aos resultados obtidos e esperados. Então, o que se pretende com esses depoimentos, o que se espera dessas crianças? Encontramos situações e interpretações interessantes, desde aquela que sugere que a fala das crianças é “robusta, consistente, não deixando margens a dúvidas”, até afirmações de que a criança não teria motivos para mentir em seus depoimentos. Como se pudéssemos reduzir toda a complexidade das situações numa diferença entre mentira e verdade.

A ausência de respostas e até mesmo as dúvidas das crianças com relação aos acontecimentos não são bem vistas e aceitas pelo Judiciário. Como se a criança não pudesse ter momentos de dúvida, já que eles não produzem provas. Muitas vezes, a criança é levada a dar uma resposta. Outro ponto importante a considerar é que a criança, em certa idade, não gosta de dizer que não sabe algo diante da figura de um adulto. O fato de dar voz para as crianças nestes depoimentos não significa, necessariamente, a valorização da criança, mesmo que a intenção seja a de sua defesa. Existe a necessidade de se investigar quais as repercussões do depoimento na situação de cada criança e se é dada a possibilidade de ela não depor.

Na maioria das vezes, a criança é obrigada a participar do processo e, se não quer falar, é questionada: “por que não fala?”. É dito que o depoimento “será importante para ela”, que “se sentirá melhor”. Estes são acontecimentos e posicionamentos que precisam ser investigados, porque são garantias que não podemos dar. Não sabemos se será melhor. São muitas variáveis que precisam ser analisadas nestes depoimentos. Tenho sérias dúvidas se estamos protegendo ou expondo a criança.

Tatiana Fernandes – Atualmente, por meio do disque-denúncia (disque 100), qualquer pessoa pode ligar e denunciar uma violência contra a criança, violências domésticas. Muitas vezes, essas denúncias se desdobram em vários serviços de atendimento na rede de proteção à infância, para além do Sistema Judiciário. Como estas denúncias são tratadas no Sistema Judiciário?

Leila Torraca – Levando em consideração o que você disse no “para além do Judiciário”, o que podemos observar é que, no momento em que a criança chega ao Judiciário, muitas vezes ela já passou por diversas instituições. Quando chega para fazer o depoimento especial, por vezes já foi submetida a outros depoimentos, nas delegacias, com filmagens, e não foi ouvida uma única vez, como se pretendia. Quando surge uma denúncia, é praticamente impossível que a criança seja ouvida uma única vez. Até porque as pessoas próximas conversarão com ela sobre o assunto. Então, quando essa criança chega para o depoimento especial, ou atendimento do caso, a sua fala já foi ressignificada por muitas pessoas. Isso nos mostra a importância de ser analisado todo o caso e não somente a criança.

Recentemente, estive em um evento da área da Psicologia, e uma psicóloga questionou a importância de o acusado também ser ouvido. Ela fez essa pergunta porque sabia de casos em que eram ouvidos a criança e o autor da denúncia, mas o acusado não. Enquanto psicóloga, acredito que devemos dar atenção ao caso como um todo. Ainda mais em um contexto de Justiça com alguém acusado. Como vou fazer um trabalho sem ouvir aquele que foi denunciado? A alegação dos profissionais, nestes casos, é de que o acusado mentiria. Há casos muito complexos, daí a importância de se ouvir todas as partes, ficando muito incompleto o atendimento ou a escuta só da criança. Isso porque, em muitas situações de depoimento especial, a criança é chamada para esclarecer todos os fatos. Esclarecer como? Muitas vezes, ela não percebe que houve o abuso. Porque o abuso não quer dizer que ela sentiu o ato como uma violência. O abuso pode se dar por meio de carícias e carinho, e a criança não estar significando isto como abuso. Os outros é que vão nomear o ato, para ela, como um abuso.

Um exemplo de interpretação equivocada ocorreu em uma casa em que uma criança gritava todos os dias, em um mesmo horário. Vizinhos denunciaram aquela família por cometer violência. No final foi constado que a gritaria, sempre no mesmo horário, se devia ao fato de a criança reclamar de ter que tomar determinado remédio, sendo que o motivo dos gritos foi interpretado pelos vizinhos como violência. Não estou dizendo que todos os casos sejam assim, mas deve-se ficar atento. Muitas vezes o denunciado acaba tornando-se rapidamente um abusador e condenado. Mesmo antes de qualquer processo, já é considerado abusador. Alguns profissionais justificam não ouvir o acusado por se tratar de um abusador. Mas temos que entender todo o caso.
Há situações em que a contextualização no surgimento da denúncia é importante porque esta é feita no meio de um processo de separação conjugal, por exemplo. O que acabamos percebendo hoje é uma banalização deste ato da denúncia. Todas as denúncias são conduzidas como um caso de violência em que a criança é posta como vítima e o acusado já é tratado como agressor e tudo fica dividido: serviço de atendimento às vítimas e serviços para agressores. Assim percebemos a importância de uma escuta apurada, principalmente pelo psicólogo, e não somente no caso do depoimento especial, mas no atendimento do caso como um todo.

Leila Maria Torraca de Brito torraca@uerj.br
Doutora em Psicologia. Professora do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Brasil. Desenvolve trabalhos e pesquisas sobre Psicologia Jurídica, guarda de filhos, adolescentes em conflito com a lei, adoção, autoridade parental, direitos infanto-juvenis, medidas socioeducativas.
Tatiana Fernandes tatipsijf@hotmail.com
Mestranda em Psicologia no Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil, Psicóloga e Especialista/Residência em Saúde Mental. Trabalha na Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos de Magé/Rio de Janeiro, Brasil.