Célia Dias – Isso acaba gerando um impacto de renda familiar importante, então as pessoas acabam tendo dificuldade para se colocar contra a empresa.
Rafael Prosdocimi – A situação de Mariana me lembrou muito a situação dos habitantes de Conceição do Mato Dentro que vivem à jusante da barragem. Então, para além da ocorrência concreta de rompimento, tem uma violência cotidiana, porque as pessoas dormem com medo, vão para a escola com medo. As comunidades vivem angustiadas, com medo, porque estão no caminho dessas águas, e agora a tragédia em Mariana deixou essa marca para as comunidades que convivem com as mineradoras.
Célia Dias – Agora aquela esperança que existia, principalmente entre os jovens, agora ela desaparece. Se existia alguma possibilidade de desenvolvimento agora está claro que isso não vai mais acontecer. Eu vi reportagens com famílias de Mariana dizendo que não queriam saber de reconstrução da cidade, pois sabiam que não haveria reconstrução histórica da cidade, então o melhor seria ir para outro lugar. O trauma nos jovens certamente é imenso, há uma destruição de toda a identidade coletiva de infância, tudo isso desaparece.
Rafael Prosdocimi – É uma tentativa de mudança coletiva, de continuar em outro lugar. Retomando o projeto Rio-Minas em Conceição de Mato Dentro, lá foi possível perceber como o processo de construção do empreendimento em andamento era subjetivado, havia claramente uma expectativa de desenvolvimento, de progresso, de bom emprego. Havia jovens dizendo que não queriam ficar nas máquinas, queriam sim ser engenheiros, então é um tipo de expectativa de vida, as pessoas não querem mais sair pra trabalhar em outro lugar, querem ficar e construir a vida lá mesmo. Em Mariana, o que se vê hoje é que os jovens estão diante da realidade de que as promessas da empresa não fazem muito sentido, estão submetidas a uma outra lógica. Em Conceição de Mato Dentro, a Anglo American, que é a quarta maior mineradora do mundo, anunciou que vai vender o projeto, que não vai dar continuidade, então os jovens novamente estão submetidos a um impasse, a uma situação de angústia, sem saber o que vai acontecer; as demissões já começaram, o clima nas comunidades mudou completamente, estão agora vivendo uma situação em que ninguém se responsabiliza por nada.
Célia Dias – Como uma perspectiva crítica baseada na noção de justiça ambiental pode ajudar a compreender a situação dos jovens nestes cenários de conflito ambiental?
Rafael Prosdocimi – A questão seria pensar: quem se responsabiliza por processos dessa natureza? Se a comunidade consegue se envolver no processo, se participa ativamente e não fica submetida a uma estrutura baseada em promessas vazias, talvez conseguisse lidar com a tensão de outra forma. Por exemplo, o sofrimento, o trauma associado ao rompimento da barragem em Mariana ou mesmo a situação de crise em Conceição de Mato Dentro, decorrem em grande parte porque as pessoas não estão participando dos processos, pois tudo vem “de cima”, – a ideia de progresso, as decisões, as ações sociais, a lama – tudo vem de um lugar no qual a comunidade não tem direito a falar e de se posicionar.
Célia Dias – E ainda tem a questão presente nos fóruns coletivos em que pessoas talvez gabaritadas para participar e ajudar acabam sendo cerceadas pelas próprias comunidades, que têm medo de que todo sujeito de fora seja um aliado da empresa.
Rafael Prosdocimi – Eu vivenciei diversos fóruns envolvendo empresa, comunidades, Ministério Público, universidade. E mesmo com a riqueza dos debates, a tensão era permanente, pois a atitude da empresa era sempre a de fragmentar as comunidades, de utilizar expedientes para esvaziar espaços reais de debate em nome de um marketing vazio, para difundir imagens favoráveis aos interesses da empresa.
Célia Dias – Na sua tese de doutoramento, você disse que as crianças e os jovens, apesar de presentes no mundo público, são sempre desconsiderados como sujeitos capazes de compreensão e ação. Como você relaciona esta posição a que estão submetidos os jovens e a questão ambiental hoje no Brasil, e especificamente em Conceição do Mato Dentro?
Rafael Prosdocimi – A preocupação com a gravidez das adolescentes, com o uso de drogas e com a violência urbana são aspectos presentes na fala dos moradores da região, muito mais do que a questão ambiental. E os jovens, as crianças, fala-se muito deles, mas eles não são ouvidos. Por um lado, eles vão aproveitar, vão ter melhores chances de vida; por outro, eles vão sofrer muito, é um jogo, mas de fato eles falam pouco, são muito pouco acionados. Nas reuniões públicas, eles ficam por ali, mas os jovens que falam são apenas aqueles que já têm uma inserção política, candidatos a vereador, lideranças comunitárias estabelecidas. Essa ideia de que eles não são sujeitos é porque de fato eles não são escutados como desejam. E na questão ambiental, um exemplo que me tocou muito foi uma jovem que eu entrevistei e ela sempre me pareceu estar apoiando a empresa. Ela fazia o curso do Senai e parecia muito feliz com aquela situação. Mas em determinado ponto da entrevista, ela começou a falar que tinha medo que a comunidade fosse prejudicada, ela tinha medo que a comunidade acabasse, demonstrando preocupação com as gerações seguintes, com seus filhos, netos, que eles não tivessem conhecimento da história da comunidade. Ela falava das águas do lugar com grande preocupação, pois antes da Anglo American chegar havia muita água, mas que ela estava acabando, e assim ela questionava o que estava acontecendo na região de forma global. Então, uma pessoa que eu imaginava que não tivesse nenhum senso crítico, que demonstrava estar focada em conseguir um trabalho bem remunerado, de ter uma vida melhor, essa pessoa mostrou que não queria abrir mão da sua comunidade, da sua história, da sua tradição. Isso demonstra que a gente não pode abrir mão da fala dos jovens, pois eles são de fato sujeitos que participam, que têm um entendimento do processo, que vivem a cotidianidade, então eles têm a sua fala, e precisam ser ouvidos, pois isto poderia enriquecer as decisões da comunidade.
Célia Dias – Mas atualmente muito se fala na formação crítica das crianças sobre a questão ambiental, inclusive com a inserção do tema na formação escolar. E no caso dos jovens há todo um debate sobre o deslocamento dos partidos políticos para os chamados coletivos. E o tema do meio ambiente sempre aparece como um dos motivadores dessa mudança, e também como epicentro da preocupação entre os jovens, algo que seria capaz de impulsioná-los para um novo tipo de militância, uma nova forma de engajamento. Como você tem visto essa questão? Em Mariana ou em Mato Dentro, por exemplo, há relatos sobre essa militância jovem pró meio-ambiente?
Rafael Prosdocimi – A educação ambiental e ecológica lá na região é muito incipiente. Em Conceição do Mato Dentro tem um grupo famoso, a Sociedade dos Amigos do Tabuleiro, que é muito importante, mas sem uma inserção forte entre os jovens. Essa militância ambiental tem uma ideia muito metropolitana, pois os jovens de Conceição do Mato Dentro estão imersos em outra lógica, pois eles fazem sim agroecologia, mas eles não dizem que fazem agroecologia. Na região tem muitas comunidades quilombolas, e isto significa a adoção de métodos de cultivo tradicionais, sistemas de trocas, e jovens que cultivam estas relações. Há jovens lideranças comunitárias que mobilizam, organizam suas comunidades, mas que não se apresentam como “jovens”. Assim como não se apresentam como ativistas ambientais no sentido tradicional, mas que lutam pelas águas, pelo ambiente, por um modo de vida que não degrade as relações sociais e a natureza. Por outro lado, a região de Conceição do Mato Dentro passou por um ‘boom’ de defesa do meio ambiente, se autodenominando capital mineira do ecoturismo, e a questão do meio ambiente passou a ser mais divulgada. Mas não existe isto que nós entendemos como jovens ambientalistas.
Célia Dias – As lutas indígenas no Brasil que incluem o direito ao território e à sua preservação têm tido um papel importante para se repensar o meio ambiente e o direito das futuras gerações de usufrui-lo?
Rafael Prosdocimi – Existe uma contraposição lógica na forma como essas comunidades tradicionais, sejam indígenas ou quilombolas, se apropriam do espaço, que é bem diferente do que fazem as populações urbanas, industriais. Tem uma heterogeneidade constitutiva do país que não vai ser eliminada, a não ser à força, na base de empreendimentos que entram com violência alterando a lógica das comunidades, como é o caso de Belo Monte, que leva uma perspectiva de desenvolvimento maior para a região, e já temos projetos de mineração pensados em territórios indígenas. A gente entende que são projetos que têm por objetivo mais do que explorar os recursos naturais, ou do que produzir minério, querem produzir sujeitos que aceitem se inserir na lógica de mercado, de desenvolvimento no sentido da exploração mercantil do território.
Célia Dias – As comunidades temem as tragédias, mas acabam se rendendo ou sendo obrigadas a se render à pressão das grandes empresas e também do Estado. Podemos esperar mudanças na maneira de as comunidades reagirem aos crimes ambientais no Brasil?
Rafael Prosdocimi – O que aconteceu em Mariana, a repercussão global, a devastação decorrente que a gente nem consegue medir, talvez isto possa resultar em outra forma de regular esses processos, desde que, é claro, exista participação política em torno disso. A posição geral das empresas e do Estado é muito clara, de acelerar os empreendimentos, assumindo riscos pelos quais eles não se responsabilizam.
Célia Dias – Mariana pode ser considerada a maior tragédia socioambiental do Brasil, e a gente pode dizer que é uma tragédia que prossegue, não foi nem resolvida, nem minimizada.
Rafael Prosdocimi – E infelizmente as respostas do governo federal e do governo estadual mostram que não houve nenhuma ação efetiva do Estado. A primeira entrevista concedida pelo governador de Minas Gerais foi realizada dentro do escritório da empresa. Por outro lado, as pessoas já estão se organizando, em outras localidades o Movimento dos Atingidos pela Mineração (MAM) cresceu muito nos últimos anos seguindo o modelo do Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), e está discutindo e questionando o modelo de extração mineral. As empresas utilizam diversos artifícios disponíveis para cooptar, para seduzir as pessoas em relação ao que elas precisam. Então, o mais interessante seria ouvir o que as pessoas dessas comunidades querem, e os jovens que eu entrevistei me falaram que o que eles querem é emprego, uma vida melhor. Por isto que eu penso que não podemos cair na retórica de só falar da pobreza econômica da região, veja o exemplo do Vale do Jequitinhonha, que tem uma riqueza histórica, cultural e até ambiental tão significante, mas tudo fica solapado pelo discurso econômico, e os problemas materiais sobrepõem a tudo mais que a comunidade detém. Neste sentido, conectar experiências seria algo muito interessante, comunidades em lugares diferentes poderiam trocar e enfrentar a ideia de um progresso linear que chega para tornar as comunidades iguais, retirando o que elas têm de singular no sentido forte do termo. O título de minha tese de doutoramento, “Nem só de mineração vive o Mato Dentro”, vem da fala de um jovem líder da comunidade de São Sebastião do Bom Sucesso, que enfatizava as riquezas da região para além do valor mercantil da tonelada do minério de ferro.
Célia Dias – Então a gente poderia retomar a questão da justiça ambiental, que diz que todos têm direito a um ambiente saudável e digno de se viver. Até que ponto essas empresas não chegam para tirar esse direito, para destituir essas comunidades do direito de usufruir desses lugares? E eu me lembrei que você fez uma interessante jornada de estudos na Índia, que é uma realidade tão interessante. O que você trouxe para o seu objeto de estudo no Brasil?
Rafael Prosdocimi – Eu queria entender alguns determinantes históricos do Brasil e da Índia, que apesar das diferenças marcantes do ponto de vista cultural, religioso, político, tem dimensões similares, por exemplo, como os recursos naturais abundantes são usados como moeda de troca, como recurso econômico. E me chamou a atenção os processos de luta, pois eu encontrei na Índia uma comunidade indígena que recebeu uma proposta de projeto de mineração, tal como no Brasil, mas que conseguiu manter o ponto de vista da comunidade, que se reuniu e decidiu não receber o projeto, e isto foi acatado pelo governo. Então, se a comunidade consegue ter esse tipo de mobilização, é possível que ela consiga ter outras formas de resistência, e assim a cultura local consiga se impor com mais força. Minha visão, um tanto simplista, pois o problema é mais complexo, é que no Brasil a gente se apega mais à ideia de modernidade, de desenvolvimento.
Célia Dias – E também tem a questão religiosa, e de como na Índia a religião está impregnada na percepção que se tem da natureza, dos animais, dos rios, e no Brasil isto teve alguma importância com as religiões afrodescendentes, mas isto perdeu importância. Então a gente poderia falar de uma especificidade da formação social deles, que é bem diferente da nossa, sem comparar a história que é específica.
Rafael Prosdocimi – É muito difícil fazer comparações entre culturas tão diferentes. Tem um caso de uma comunidade indígena lá que recebeu a proposta de um projeto de exploração de bauxita nas montanhas do estado de Orissa, no leste da Índia, local que é o lar da tribo dos Dongria Kond, e eles recusaram o projeto. Quando foram questionados, eles perguntaram para os representantes da empresa por quanto eles venderiam Jesus Cristo, Alá. O que eles queriam dizer é que aquela montanha pra eles era sagrada, e que o sagrado era inegociável.
Célia Dias – A gente poderia retomar a noção de justiça ambiental, pois nem tudo pode ser vendido ou comprado em uma comunidade.
Rafael Prosdocimi – Certamente, por exemplo, na própria questão da educação ambiental, vale lembrar que todas as empresas que estão tocando projetos de exploração de recursos naturais fazem o que eles chamam de educação ambiental, de campanhas falando de sustentabilidade, de defesa do meio ambiente. E fazem isto de modo a cooptar crianças e jovens, com lanches, filmes, fotos, de associar proteção ambiental à permanência desses grandes empreendimentos, sem se deter nas contradições e paradoxos do processo.
Célia Dias – Essas empresas fazem todo um discurso de sustentabilidade, mas o que elas fazem é buscar alternativas para sustentar a força do capital. Então, como palavras finais, o que você teria a nos dizer sobre as contradições do modelo atual de exploração ambiental do capitalismo; e se há esperanças de uma “boa vida” para as novas gerações?
Rafael Prosdocimi – Eu acredito que é importante deixar aparecer as contradições, e que as pessoas possam enfrentar tais contradições em um processo democrático contínuo. As situações nunca vão ser consensuais, então o mais importante seria criar espaços para a participação popular. Eu acompanhei muitas audiências públicas entre a empresa de mineração e a comunidade, e muitas vezes vinham pessoas que falavam e ficavam satisfeitas por estar ali e dizer que era a primeira vez que estavam tendo a oportunidade de falar. E isto fortalece a comunidade, independente se aquela fala vai ou não ser transformada em uma medida administrativa, em política pública, ou em uma ação da empresa. É por isto que eu acho que há esperança para as novas gerações, os jovens têm uma força discursiva significativa, então é fundamental que eles tenham direito a falar o que pensam, o que desejam. A gente tem que enfrentar a ideia de que o povo é ignorante e que alguém mais capacitado poderia falar em nome de todos, que é o que aparece inúmeras vezes nas audiências públicas. As autoridades políticas, sociais, científicas se valem de estratégias de poder para excluir grande parte do povo do processo de decisão: os mais pobres, menos instruídos formalmente, as mulheres e, certamente, as crianças e os jovens. O que observei na pesquisa com os jovens é que eles estão muito atentos ao que acontece e a participação deles, como dos outros atores excluídos, poderia fomentar modos de responsabilização mais coletiva e autônoma, minando as promessas vazias, a fantasia de desenvolvimento propalada pelos empreendedores.
Célia Dias – Quero te agradecer pela gentileza da nossa conversa e por nos trazer questões tão importantes sobre a juventude que vive nessas regiões de mineração.
Rafael Prosdocimi – Eu que agradeço a DESidades pela oportunidade.
Palavras-chave: conflitos ambientais, juventude, mineração, participação política.