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Infância e ditadura: as marcas de uma experiência de controle e disciplinamento

Alejandra Esteves – Nos seus textos, você fala de uma violência que seria própria de uma experiência da infância, das crianças que passaram por essa situação, que seria uma experiência diferente dos adultos durante a ditadura.

Valeria Llobet – Em alguns contextos em que eu fiz as entrevistas, o que emergia era uma relação entre crianças e adultos muito autoritária, onde uma quantidade muito grande de violência era permitida. Mas isso era, por um lado, sintônico com alguns dos argumentos conservadores, no sentido de que, para a ditadura, o modelo de família era o modelo mais conservador, católico, baseado na figura do pai como a autoridade parental e da mãe como a autoridade moral e emocional da família, mas subordinada à do pai, e as crianças como sujeitos que deviam respeito e obediência. Sobretudo nas áreas que não eram metropolitanas, esse tipo de família, embora estivesse sendo questionada e demograficamente também estivesse em transição, meninos e meninas estavam expostos à ideia de que qualquer um na cidade, qualquer um no bairro, qualquer um na rua podia chamá-los à ordem, repreendê-los, exigir formas de respeito. Ao mesmo tempo, estavam expostos, por exemplo, as meninas estavam expostas a uma violência sexual que hoje problematizamos, mas que naquele momento era da ordem do comum.

Todas as mulheres que entrevistei tiveram ao menos uma experiência na qual um adulto lhes mostrou a genitália, ou que as tocou, ou que as perseguiu, no começo da sua adolescência, em torno dos 12 ou 13 anos. Todas experimentaram algo assim. E era algo do qual não somente não se podia falar, mas que era vivenciado sistematicamente como uma situação onde as mulheres eram as culpadas, as meninas eram culpadas, e isso deixava uma mancha na própria menina. E entre os meninos, o tipo de relações, de jogos, de formas de sociabilidade aceitáveis, parecia ter um grau de agressividade permitido e inclusive promovido, muito grande, uma agressividade que era socialmente festejada.

Há uma pesquisa em particular que assinala que a violência era vista ou vivenciada na época dos anos 70 como algo culturalmente aceitável e valioso. O que me parece é que havia uma construção do autoritarismo, diferentemente da violência, como uma forma valiosa de relacionamento intergeracional em alguns setores. Mas também era algo que já estava sendo bastante questionado, sobretudo nas áreas metropolitanas, onde as formas mais autoritárias da família estavam em franco retrocesso, e não se vincula de forma direta a uma suposta aceitação da violência social e política. Pelo contrário, se relaciona à ordem social.

Alejandra Esteves – Desde fins do século XX, junto com o avanço do projeto neoliberal e com o aumento da desigualdade e da exclusão social, está, por outro lado, o avanço de projetos de institucionalização dos direitos de crianças e da juventude. Gostaria que comentasse um pouco sobre esse aparente paradoxo, o que está em jogo e em qual direção avançamos. Se pudesse falar sobre a Argentina, claro, que é o seu lugar de pesquisa, mas também uma visão sobre a América Latina.

Valeria Llobet – O primeiro ponto que deve ser levado em consideração é o que diz respeito aos direitos humanos e aos direitos das crianças e adolescentes. O processo de especificação e ampliação dos direitos implica algo da ordem da emancipação ou implica algo da ordem da extensão do governo? Acho que acontecem as duas coisas, se dá um processo de ampliação e especificação de direitos, que tem permitido que um conjunto de demandas e um conjunto de atores que não estavam sendo reconhecidos como sendo titulares de direito possam enunciar essas demandas. E tem permitido a problematização das áreas da vida nas quais se produzem múltiplas formas de subordinação e submissão. Ou seja, permite que sejam visibilizadas, tornadas públicas, politizadas e, nesse mesmo sentido, transformadas essas relações de subordinação e submissão.

As formas de violência no setor privado são uma das mais claras problemáticas nas quais o processo de ampliação de direitos permite modificar as situações de subordinação. Agora, também é verdade que os direitos de crianças e adolescentes não têm sido capazes de interpelar a discussão sobre a desigualdade social, apesar de ser um dos tópicos mais recorrentes no campo, porque eu acho que as crianças são sujeitos particularmente complexos para pensar a desigualdade social, porque precisamente mostram o axioma que, quando uma pessoa nasce numa família pobre, tem grandes chances de ser pobre. A desigualdade e a pobreza não se reproduzem graças à ação dos sujeitos e, nesse sentido, sua transformação requer dinâmicas que são mais estruturais do que singulares. Porém, os direitos de crianças e adolescentes ampliam o campo de direitos de um ponto de vista individual. Nesse sentido, vão numa direção que não necessariamente se vincula ao problema da desigualdade ou à injustiça social mais do que em alguns aspectos. E, além disso, tem sido construídos, sobretudo em alguns lugares, sobre a base de duas dinâmicas muito institucionalizadas: a primeira é o maternalismo e a desigualdade de gênero institucionalizada nos estados latinoamericanos, por exemplo, na Argentina, em particular, que levam a considerar os direitos da criança como direitos que se dão em oposição aos direitos das mulheres.

Isso tem consequências diretas na tendência a pensar as crianças como vítimas das suas mães e a suas mães como más mães. O maternalismo e os estereótipos de gênero institucionalizados no Estado, no poder judiciário, são uma das dinâmicas que complica a capacidade emancipatória dos direitos da criança. A outra dinâmica que me parece que os complica é que – e isto especificamente no caso da Argentina – a institucionalidade dos direitos, ou seja, as instituições que são as que captam os direitos das crianças e adolescentes são herdeiras do campo da minoridade, da atenção aos “menores delinquentes” e aos menores “vagos e mal-assistidos”, marcando uma dependência estrutural das instituições, que delimita seu campo de ação de uma maneira que dificulta que sejam justamente instituições que pensem os direitos de um ponto de vista mais estrutural, ou que não se concentrem basicamente nas crianças pobres, ou que não o façam de uma maneira punitiva.

Na América Latina, a maioria das entidades que se ocupam da proteção de direitos das crianças toma os direitos econômicos, sociais e culturais como áreas de ação substantiva, mas se ocupa desses direitos em virtude da sua vulnerabilidade, que por sua vez é entendida como produto da incompetência familiar, da falha da família. Em outros lugares, quando se discutem os direitos das crianças, os direitos centrais são a participação, a voz e os direitos políticos. Então, qual o motivo dessa diferença de ênfase? Bom, me parece que se origina nas tradições político-institucionais. Eu acho que, na América Latina, essa tradição vinculada aos “menores abandonados moral e materialmente” faz com que nossas interpretações sobre o que significa proteger seus direitos e qual é o campo de ação das instituições que devem protegê-los acabem centrando-se nas crianças pobres de uma maneira que acaba sendo mais reprodutora das desigualdades do que transformadora.

Alejandra Estevez – Sobretudo depois do início do governo do presidente Mauricio Macri, mas inclusive antes também, que demonstrou como vê esse cenário de políticas públicas, focadas na família, na infância e na juventude no contexto argentino, você vê sinais de mudança em relação a essas políticas depois do governo de Macri, ou em comparação com os Kirchner? Como isso se dá?

Valeria Llobet – A maior transformação é a socioeconômica. A perda salarial e a perda de ingressos dos setores populares têm sido muito grandes por via da inflação e pelo aumento concreto de alguns custos, com maior peso nos setores assalariados: luz, transporte, coisas muito básicas, ao mesmo tempo em que programas sociais não aumentaram no mesmo ritmo e, em alguns casos, diretamente não aumentaram. A outra transformação grande é em termos da retórica institucionalizada.

O novo governo, longe de sustentar uma retórica de direitos, coloca uma retórica mais vinculada às responsabilidades. Antes do cidadão, a figura chave é, por um lado, o empreendedor, ou seja, o sujeito que constrói sua própria inserção econômica a partir da criação de bens ou serviços que não existem, ou de auto-empregar-se, basicamente, e o pagador de impostos, a outra figura a partir da qual pode se construir a retórica política do macrismo, é a do “tax payer”. Esse é o sujeito que tem possibilidade de reclamação, de fato. Então, o cidadão com direitos é uma figura que não está presente dentro da retórica governamental. Isto se transfere ao sentido comum de alguma maneira e é sintônico com alguns aspectos mais conservadores ou mais republicanos, no sentido de que se entende que, na cidadania, os direitos derivam das obrigações, são secundários a elas.

Com esse tipo de retórica se legitimam essas dimensões mais meritocráticas presentes no senso comum e as pessoas começam a ver isso em algumas interpretações dos agentes públicos que tendem a tomar medidas de proteção de direitos. Então, se antes era mais legitimado que, frente às necessidades econômicas e sociais das famílias de setores mais populares, o que devia ser feito era responder, hoje está mais legitimado que o que deve ser feito é ativar a família, no lugar de responder. Isto não se vê ainda em tendências demograficamente importantes ou em regularidades sociais estatisticamente mais significativas, mas se vê. Começa a se observar essa transformação da matriz interpretativa que delimita o que vai ser feito pelo Estado e as necessidades dos sujeitos. Nisso, eu me associo a uma leitura do Estado de bem-estar como o Estado intérprete.

O debate político se dá no nível da interpretação: o que se interpreta como necessidades legítimas, o que se interpreta como sujeitos com legitimidade para enunciá-las. Então, ali há uma transformação que está começando a se visualizar. E dessas duas questões surge uma terceira transformação que efetivamente está começando a se visualizar em termos estatísticos que, em alguns distritos, triplicou-se a demanda aos sistemas de proteção de direitos. Nesses dois anos de governo da direita, há três vezes mais demanda de assistência vinculada a direitos violados. E há – e isto é outra mudança também importante, não no setor da proteção de direitos, mas no dos jovens em conflito com a lei – um discurso punitivista muito marcado, que identifica muitas áreas de comportamento como delitivas e identifica os jovens como delinquentes potenciais e potencializa a mão pesada como resposta apropriada.

Então, um policial que assassina pelas costas um suspeito de roubo é um sujeito que, ao invés de sofrer uma condenação social pelo uso indevido da força, pretende-se condecorar, tornando-se “o tipo de policial que faz falta”. Ao mesmo tempo, avança-se com um discurso punitivista sobre a participação política estudantil e sobre as ações dos jovens de maneira geral. Eu identificaria nessas questões as seguintes transformações: o acelerado empobrecimento dos setores populares, a perda de massa salarial, a perda de participação em lucros. Este aumento das necessidades dos setores populares se expressa num aumento da demanda de proteção de direitos, uma dinâmica de legitimação de discursos neoliberais na hora de interpretar de maneira restritiva esses direitos e as competências do Estado; e um aumento dos discursos punitivos e das demandas de repressão para com os jovens.

Alejandra Estevez – Estou muito satisfeita, continuarei lendo seus textos, e tomara que possamos compartilhar mais produções e nossos trabalhos também. Estreitar um pouco esses laços e conhecer melhor o que é produzido aí na Argentina.

Valeria Llobet – Adoraria. Muito obrigada pela entrevista. Foi um prazer enorme.

Resumo

O tema percorrido nessa conversa deságua em duas vertentes. De um lado, versa sobre as causas e consequências da espinhosa relação entre os direitos das crianças e os conceitos de vulnerabilidade e subordinação. Depois, se desenrola na análise da experiência de controle e disciplinamento forçado pelo Estado para a manutenção de períodos ditatoriais e nos oferece um mergulho nas entrelinhas das relações de poder entre adultos e crianças. Nesse caso, a análise aponta para a família e a relação entre pais e filhos como um importante núcleo de produção de personalidades autoritárias que perpetuam um jeito de ser que também é produtor desses momentos históricos.

Palavras-chave: infância, vulnerabilidade, direitos da criança, ditadura, Argentina.

Data de recebimento: 13/03/17
Data de aprovação: 06/03/18

Valeria Llobet valeria.s.llobet@gmail.com
Doutora em Psicologia pela Universidad de Buenos Aires, Argentina. Professora da Universidad Nacional de San Martin. Pesquisadora do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET). Co-diretora do Centro de Estudios sobre Desigualdades, Sujetos e Instituciones.
Alejandra Estevez alestevez83@gmail.com
Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil. Professora da Universidade Federal Fluminense. Investigadora da Subcomissão da Verdade na Democracia. Membro do Observatório de Direitos Humanos do Sul Fluminense.