Cristina Delou: A frase é exatamente essa. É necessário que haja uma situação humana muito fora do comum, muito fora do padrão, para dizer que a pessoa não tem condições de frequentar a escola. Porque no nosso sistema de ensino, que segue a Declaração de Salamanca, nós temos as escolas regulares e as escolas especiais. Nós ainda não entendemos, como a Declaração de Salamanca diz, que as escolas especiais são a sede da cultura especializada para a criança especial. Nós ainda fazemos uma leitura de que a escola especial exclui. A gente não faz a leitura de que a escola especial inclui pelo conhecimento que ela possui, formando professores para atuar na escola regular. Então, se a escola tem alunos muito diferentes, do ponto de vista do ritmo da aprendizagem, você tem um aluno que precisa três anos para concluir uma escola regular. Qual é o lugar deste aluno? É lá no ritmo de um ano ou no ritmo de três anos? Igualamos as crianças, oferecemos um padrão único, tanto para as crianças que aprendem rápido, como para as que demoram a aprender. Algumas precisam de três anos, para outras bastaria um mês e elas levam três anos na escola.
A escola especial deveria ser vista como a escola que inclui. O Instituto Benjamin Constant oferece cursos livres de formação para professores. Cursos livres que não têm nenhum valor acadêmico. O MEC nunca reconheceu esses cursos como de valor acadêmico. No entanto, é lá que se aprende libras, braille, soroban, orientação e mobilidade, alfabetização para as crianças cegas. Alfabetização de crianças cegas não é uma coisa trivial. A alfabetização das crianças videntes é visual. A professora norteia com gestos e atos a ação da criança. A alfabetização da criança cega é guiada pelas mãos da professora, não importa se a professora é cega ou vidente. Então, a criança cega tem que ter uma professora na sala de aula, reproduzindo a prática pedagógica que vai ser concluída com a leitura. E aí uma criança cega em uma classe regular, com professora vidente e alunos videntes, perde naquilo que a Maria Montessori chamou de momentos críticos do desenvolvimento. Porque a criança fica esperando, na atitude corporal, e deixa de ter informações básicas e necessárias para que possa aprender em um espaço de tempo mais curto, porque ela depende do tato. Quem vai fazer o treinamento para que ela possa, na ponta dos dedos, diferenciar o a do b para poder escrever e ler?
Cristina Delou: Crianças cegas e surdas, na fase de alfabetização, têm que estar entre os pares, para que elas possam aprender, no espaço de tempo mais curto, a ler e a escrever.
Cristina Delou: Dentro da escola. E não é dizer que ela vai fazer isso na sala de recursos, com a professora da sala de recursos, que está na escola, mas funciona em separado das classes regulares no contraturno. A professora da sala de recursos muitas vezes não tem uma formação adequada e essa criança não vai ter pares na sala de recursos. Então, o que não se faz na sala regular e se transfere para a sala de recursos, não é complementação. Complementação é aquilo que vai enriquecer a sala de aula. Se ela está ali na sala de aula, ela tem que ter os meios e o professor adequado para aquela aprendizagem que vai fazer com o coletivo. Se falta o coletivo na sala de recursos multifuncional, não é complementação. Passaram 24 anos, muito dinheiro já foi investido, muita energia já foi gasta, e muito pouco a gente avançou. O que não dá para fazer é a seguinte pergunta, nesta altura do campeonato: será que vale a pena continuar nesta linha? Aí a resposta é: a gente não tem nem o direito de pensar nisso. Porque são pessoas, são cidadãos, é o povo brasileiro. Então, se pensarmos na grande quantidade de pessoas de média idade que estão na cadeira de rodas porque sofreram acidente de trânsito ou alguma doença, a gente está dizendo: elas não têm direito de participar da vida em sociedade!? Então, não se pode questionar isso em relação à criança.
Cristina Delou: Isso tudo é decorrente da crítica a priori que se faz. Não se conhece a política de inclusão, não se conhecem os direitos, faz-se uma crítica a priori. Os anos 90 são os anos do neoliberalismo e da globalização. Costumamos fazer críticas quando nos vemos diante de uma política pública para inclusão. Quase dizemos: olha, a culpa de ter uma política dessa natureza é do neoliberalismo e da globalização, abra o olho! No entanto, estamos criando barreiras na formação de professores, que é o canal de transmissão do conhecimento para as classes populares, para onde estão voltadas estas políticas públicas. A gente não sabe, por exemplo, que em São Gonçalo tem uma menina de seis anos de idade que já está aposentada pelo Benefício de Prestação Continuada (BPC), porque a mãe foi orientada nesse sentido por profissionais das áreas da saúde e do serviço social. Isto é falta de formação para este tipo de política pública, é uma falta de formação voltada para a pesquisa: vamos ver o que é isso, o que se pretende, vamos projetar isso para o futuro. Qual é a consequência de se ter hoje um Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) dizendo que temos 23,91% de pessoas autodeclaradas com deficiência e que passam a ter direito à aposentadoria a partir do momento em que são declaradas incapazes? O que isso significa economicamente para o país? Vamos fazer a crítica a partir do momento em que conhecemos as consequências econômicas disso tudo. Este tipo de assistencialismo, como no exemplo citado da menina, surgiu no bojo da política de inclusão e precisa ser denunciado e criticado. Não é deste tipo de assistência que as pessoas especiais precisam, não são aposentadorias precoces e outras ações deste nível.