Joana Garcia
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Serviço Social, Rio de Janeiro, Brasil
ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-7137-075X
Ana Lucia Ferreira
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina, Rio de Janeiro, Brasil
ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-9672-7452
Marta Rezende Cardoso
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Psicologia, Departamento de Psicologia Clínica e Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, Rio de Janeiro, Brasil
ORCID iD: https://orcid.org/0000-0003-1104-9830
DOI: https://doi.org/10.54948/desidades.v0i31.45160
Introdução
A questão da violência constitui um foco importante de nosso estudo interdisciplinar na procura de avançar na compreensão do que está em jogo na travessia da adolescência em sua dimensão relacional, tendo em vista a dimensão de alteridade que lhe é indissociável. É nessa trilha que abordaremos aspectos relativos à violência de caráter mais estrutural, que marca, de maneira inescapável, a experiência subjetiva e, como desdobramento dessa questão, nossa análise será dirigida a perspectivas de uma violência desestruturante, suscetível de atravessar a adolescência de distintas maneiras.
Daremos particular ênfase à presença da negligência, advinda do encontro com o outro, contemplando igualmente a violência cometida contra si mesmo, e isso sob distintas figuras. A negligência é uma expressão da violência frequentemente associada às crianças e suas famílias e pouco explorada na literatura brasileira em relação aos adolescentes e aos diversos atores responsáveis pela sua proteção. Sua ocorrência é associada a pessoas e instituições que deveriam representar e/ou oferecer suporte e proteção, mas que, por omissão, desinformação, discriminação, falta de recursos e/ou de prioridades, não o fazem. Postulamos que a proteção de qualquer pessoa adolescente é uma atribuição coletiva, que inclui, além dela mesma, um conjunto amplo de outras pessoas e instituições sociais com recursos diferenciados e funções desejavelmente complementares, não cabendo, portanto, uma leitura judicativa sobre um responsável isolado pela situação de negligência, especialmente quando se trata da figura materna.
Ao eleger a adolescência, enfatizamos a polissemia, tanto do ponto de vista das dimensões que a caracterizam como das formulações de distintos campos disciplinares sobre essa experiência de vida. Além dos aspectos epidemiológicos e psíquicos, buscam-se ressaltar as representações e práticas sociais voltadas para adolescentes segundo seu lugar social, definido pela classe, raça/cor, referência territorial, acesso à educação, saúde e profissionalização. A investigação dessas questões pode se enriquecer a partir de um olhar multidisciplinar. Nosso desafio é trabalhar essa questão em conjunto, sob o olhar de três áreas bem distintas, mas que nos parecem complementares: a Medicina, o Serviço Social e a Psicanálise.
Começaremos nossa reflexão apresentando elementos de caráter mais geral, buscando situar a adolescência no plano da subjetividade humana, tendo como base, inicialmente, o saber psicanalítico. Em seguida, uma contextualização ancorada nas ciências sociais e em elementos essenciais da área médica dá continuidade a nossa reflexão, marcando o caráter polissêmico da adolescência. Consideramos essencial delimitarmos as significações envolvidas na própria categoria de adolescência, particularmente o caráter múltiplo da condição juvenil na realidade brasileira por meio de uma apreciação e levantamento de dados de especial relevância dentro desse campo.
O artigo é construído com base na interlocução interdisciplinar com algumas referências conceituais consideradas centrais, entre elas, a adolescência e a negligência como uma das expressões da violência. O debate apresentado dialoga com pesquisas prévias e dados extraídos de bases oficiais, além de ser ilustrado por um caso construído pelas autoras com base em suas experiências profissionais de pesquisa e intervenção com adolescentes e seus contextos sociais e familiares.
A adolescência como experiência subjetiva
A adolescência constitui uma experiência própria à existência humana que coloca uma demanda especial de trabalho ao psiquismo em razão das rupturas e transformações que traz ao sujeito. Da mesma ordem de relevância do plano do que se passa na vida infantil com seu poder de determinação nos destinos da vida psíquica, o adolescer deve ser considerado enquanto travessia, e não apenas como etapa cronológica. Através dela, tudo o que foi experimentado na infância, particularmente no que concerne a um plano inconsciente, será objeto de ressignificação. A adolescência produz forte ressonância psíquica das mudanças relativas ao advento da puberdade, estas tendo lugar no corpo biológico. No caso da adolescência, do ponto de vista da esfera psíquica, estamos situados num registro, radicalmente distinto desse, posto que movido por outra força, a força da pulsão, que se distingue da força do instinto, base do registro biológico. Como ressalta Laplanche (2001), ainda que os entrecruzamentos entre esses registros sejam fundamentais, a relação entre eles pode ser representada sob a figura de uma tangente, a partir da qual a ideia de apoio se encontra paradoxalmente justaposta à de desvio. O argumento principal que nos leva a destacar essa questão aponta precisamente para a singularidade da sexualidade humana, cuja meta se dirige à obtenção do prazer, e não à reprodução, tendo, portanto, como base a esfera do desejo. Em última instância, esse caminho é desviante em relação à meta essencial que define concretamente o sexual biológico, ancorado que este é, fundamentalmente, na esfera da necessidade, alimentado, em grande parte, pela força instintual. Quando a puberdade chega, o terreno psíquico já está ocupado pelas fantasias inconscientes próprias da sexualidade infantil. Ou seja, na sexualidade infantil, a presença de fantasias inconscientes precede o advento da puberdade. Sexualidade, aqui, deve ser entendida no sentido amplo de uma psicosexualidade.
A abertura à relação sexual propriamente dita é produtora de desequilíbrio no plano do conflito pulsional. Esse conflito, enquanto motor da vida psíquica, se apresenta de modo especialmente problemático por conta, por um lado, da intensificação do que concerne ao sexual e, por outro lado, pela fragilização e pelas transformações de ordem identitária promovidas, em larga escala, pelas exigências de ordem social (CARDOSO; MARTY, 2008).
As novas demandas ao sujeito na adolescência, características da vida adulta, com a exigência crescente de autonomia, de apropriação subjetiva, de afirmação identitária, de efetivação de escolhas dos mais diversos tipos, fazem com que as operações internas do psiquismo tenham de ser realizadas em outro patamar, profundamente diverso daquele travado no decorrer na vida infantil. Merece ser fortemente ressaltada neste ponto a questão das perdas e dos lutos inerentes à adolescência. De acordo, por exemplo, com Kernier (2015), a referência quanto a esse aspecto é, dentre outras, a perda do corpo infantil, dos pais próprios à infância, da proteção de natureza social, no sentido amplo do termo (referente ao laço social e suas condições, limites e possibilidades que faziam jus à criança), múltiplas e dolorosas perdas, necessitando, portanto, de intenso trabalho de luto para que possam ser elaboradas. De certo modo, em síntese, pode-se considerar a adolescência como uma experiência que envolve múltiplas perdas.
Não por acaso, é no decorrer desse processo que tantas situações clínicas, das mais leves às mais graves, encontram justamente seu desencadeamento. A adolescência é, de certo modo, uma situação fronteiriça que envolve violência psíquica, estando essa dimensão situada no limiar de diferentes graus de sofrimento e com distintos destinos na vida psíquica.
Adolescência(s) no contexto social
Conceituar “adolescentes” e “adolescência” é motivo de muitas publicações e questionamentos, considerando os diferentes pontos de vista sob os quais essa etapa do desenvolvimento do ser humano tem sido estudada. O Fundo das Nações Unidas para a Infância (do inglês, United Nations Children’s Fund – Unicef) e a Organização Mundial de Saúde (OMS) definem como adolescente a pessoa na segunda década de vida, ou seja, dos 10 aos 19 anos de idade. O Unicef considera útil a divisão entre a adolescência precoce, que vai dos 10 aos 14 anos, e a adolescência tardia, dos 15 aos 19 anos, dadas as diferenças marcantes de experiências e mudanças internas e externas entre essas fases (UNICEF, 2011). O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) define a adolescência como a faixa etária que vai dos 12 aos 18 anos (BRASIL, 1990).
Segundo o Unicef (2011), definir a adolescência é complexo, tendo em vista que cada indivíduo experimenta essa fase de maneira única; a puberdade ocorre em idades diferentes entre meninos e meninas e pode acontecer antes da faixa etária prevista (especialmente para meninas); os marcos legais variam entre os países para definir a idade a partir da qual pode haver participação em atividades reservadas a adultos (votar, trabalhar, casar, exercer atividades militares, consumo de álcool) e nem sempre correspondem ao desenvolvimento da capacidade desses adolescentes para exercê-las; e, por fim, muitos adolescentes estão engajados nessas atividades, tendo suas adolescências “roubadas”.
Corroborando com essa complexidade, há autores que defendem que a adolescência não deve ser vista apenas como um período natural do desenvolvimento e que, apesar de ser marcada por um corpo em desenvolvimento, elementos biológicos e fisiológicos não têm expressão direta na subjetividade, que é significada pela sociedade (OZELLA; AGUIAR, 2008). As condições sociais não apenas facilitam, contribuem ou dificultam o desenvolvimento de determinadas características do jovem, elas constroem uma determinada adolescência (AGUIAR; BOCK; OZELLA, 2001). Assim sendo, o melhor é considerarmos “adolescências” ao invés de “adolescência”.
Ozella e Aguiar (2008), ao se depararem com a forma “naturalizante e aistórica” com que adolescente e adolescência são muitas vezes analisados e compreendidos, realizaram um estudo qualitativo com jovens de 14 a 21 anos em São Paulo para analisar a concepção de adolescência, o significado da passagem da adolescência para a vida adulta e as fontes que originaram a concepção de adolescência. Os resultados mostraram que, apesar de alguns aspectos em comum, há uma diversidade entre os adolescentes basicamente em função de classe social, gênero e etnia, aspectos que se mostraram determinantes na constituição da subjetividade e no lidar com a realidade social.
Se por um lado a adolescência é carregada de complexidade, no plano subjetivo, Bourdieu (1983) diria que “juventude é apenas uma palavra”. Nessa medida, ser jovem é uma denominação atribuída numa perspectiva relacional: “Somos sempre o jovem ou o velho de alguém” (BOURDIEU, 1983, p. 114) e de acordo com critérios que são arbitrados culturalmente. Como acontece com os demais segmentos etários, a adolescência é sujeita a variações que podem antecipar, prolongar, encurtar ou suprimir essa fase da vida. Desse modo, é importante sinalizar que não é possível configurar apenas uma condição juvenil no Brasil, nem mesmo nos espaços urbanos.
A despeito de, no plano legal, os adolescentes serem considerados iguais, sem distinção de qualquer espécie, a dualidade entre adolescentes pobres e os demais pertencentes a outros estratos ainda se faz presente nas relações sociais. Por essa razão, o exame dessa dualidade é produtivo para analisar visões e práticas discricionárias. A inscrição de classe e de raça/cor traduzem-se em referências determinantes na vida dos indivíduos na medida que influenciam de modo direto as oportunidades de acesso e desfrute dos bens materiais e simbólicos que uma dada sociedade conquistou. Essas referências inauguram um processo de socialização que, embora não defina de maneira fatalista a trajetória dos indivíduos, posiciona-os diante do acesso à riqueza produzida, marcando o alcance desse acesso e os contornos de sua identidade juvenil (DUBAR, 1998). A origem social e racial dos adolescentes, parafraseando Durkheim [1985]/(2001)1 quando conceitua o “fato social”, são marcas externas que os antecedem na sua relação com o mundo e assumem uma superioridade sobre as demais dimensões e características que os singularizam.
Alguns dados acerca da população brasileira foram escolhidos e serão apresentados como forma de ilustrar as diferenças na origem e na trajetória dos jovens no Brasil. Comecemos pela desigualdade de renda. Segundo a Síntese de Indicadores Sociais, documento elaborado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2020, “o rendimento domiciliar per capita médio da população preta ou parda, ao longo do período compreendido entre 2012 e 2019, permaneceu cerca de metade do observado para a população branca” (IBGE, 2020, p. 55), correspondendo ao valor de R$ 981 para a população preta e parda e R$ 1.948 para a branca. Mesmo considerando que a renda não é o único critério para definir pobreza, essa diferença é ainda muito expressiva e favorece, de maneira escalar, outras formas de desigualdade.
Em termos das condições de moradia, os mais jovens estão mais expostos ao que o IBGE denomina de inadequações domiciliares, ou seja, os domicílios cujas condições indicam precariedade ou vulnerabilidade, representando restrições ao direito à moradia adequada e também a ausência de serviços de saneamento – resultado que se relaciona com a maior presença de crianças e jovens em domicílios com menores rendimentos (IBGE, 2020).
Os jovens que nem estudam, nem trabalham são contemporaneamente denominados “geração nem, nem”. Embora essa geração compreenda todos os jovens nessa condição, adolescentes de origem pobre são os que mobilizam maior interesse por explicitarem uma condição que gera um sentimento de incômodo ou de ameaça. A educação é outra dimensão importante para caracterizar as desigualdades na origem e no percurso da vida. A escola, juntamente com a família e a comunidade constituem referências importantes para a socialização de crianças e adolescentes. No entanto, a escola nem sempre é considerada como um espaço de socialização, mas como uma instituição voltada para formação profissional, sendo a criança e o adolescente atores passivos de um projeto que se constitui, em muitos casos, sem considerar seus interesses e demandas. Para muitos segmentos da sociedade que não têm acesso às escolas com propostas político-pedagógicas críticas e criativas, o protagonismo infanto-juvenil é secundarizado ou mesmo inexistente. Também se observa que não há um reconhecimento da escola como lugar de trocas, de ampliação do capital cultural e de expressão de identidades e valores. Um provérbio largamente difundido afirma que “é preciso estudar para ser alguém na vida”. Esse provérbio apresenta a escola como um espaço que permite a mobilidade social a partir do esforço individual. Ainda que adotemos uma concepção restrita de escola como espaço de formação profissional e de mudança do patamar de origem, é possível observar que essa função não está sendo exercida com sucesso.
A relação entre raça/cor e renda no Brasil é reveladora da herança discricionária que afeta esse segmento. De acordo com dados em série histórica sobre ocupação, os negros, considerando todos os postos de trabalho, são pior remunerados do que os não negros (IBGE, 2020). A vulnerabilidade dos adolescentes negros se expressa não apenas nos indicadores de desemprego ou de não ocupação, mas na distribuição da população jovem por grupos de ocupação. A distribuição dos segmentos juvenis ocupados revela a presença mais expressiva de negros em frentes de trabalho que exigem menos escolaridade e/ou que representam menor status e ofertam menor remuneração.
Vincular o adolescente pobre ao mundo do trabalho tem se mostrado uma estratégia de intervenção muito empregada para atenuar o incômodo e a ameaça que sua condição social representa. Quando associado ao trabalho, o adolescente pobre mobiliza um julgamento moral em seu favor: o trabalhador é considerado um “pobre merecedor”. A ideia de “deserving poor” tem origem na Inglaterra vitoriana inglesa e se aplicava àquele indivíduo reconhecido pelo esforço de se manter integrado à lógica produtiva, sendo, por isso, merecedor de credibilidade e de assistência (HIMMELFARB, 1988). Os demais, considerados pobres não merecedores, eram assim reputados pela falta de empenho ou por serem portadores de características consideradas nocivas ou desviantes, como o uso abusivo de drogas, a mendicância, a propensão à criminalidade, entre outros. Essas ideias, embora antigas, não foram totalmente superadas e continuaram sendo mobilizadas para segmentar os pobres, explicar sua condição e validar algumas propostas de intervenção, incluindo a negligência no atendimento.
Desde a década de 1990, devido a intensas campanhas que sucederam a promulgação do ECA, o trabalho infantil apresenta uma tendência decrescente. De fato, a Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios (PNAD) Contínua sobre Trabalho de Crianças e Adolescentes relativa ao ano de 2019, elaborada pelo IBGE, mostrou que o trabalho infantil no Brasil caiu de 5,3%, em 2016, para 4,6% das pessoas de 5 a 17 anos, em 2019 (IBGE, 2020). Apesar dessa diminuição, ainda havia 1,8 milhão de crianças e jovens nessa situação no país. Seus efeitos perversos foram largamente estudados e são considerados como a principal razão de evasão escolar e, consequentemente, de restrição para mobilidade social. Ainda assim, dadas as condições precárias de vida de muitas famílias brasileiras, observa-se um contingente expressivo de crianças e adolescentes que passam os dias nas ruas, desempenhando atividades como engraxates, vendedores ambulantes e outras ocupações no mercado informal para suprirem a renda familiar. Muitos adolescentes em condição de subemprego são considerados mais merecedores do que outros que circulam nas ruas em situação de mendicância ou sem ocupação. Isso indica que, embora o trabalho infantil seja legalmente considerado uma violação, sua representação social nem sempre coincide com a interpretação da lei.
Considerando a escolarização precária ou incompleta e, como consequência, a baixa qualificação para o mercado de trabalho, o cenário de oportunidades para um adolescente pobre é mais restrito e menos promissor. O recrutamento para atividades relacionadas ao tráfico de drogas ilícitas, por outro lado, aparece como uma alternativa de mobilidade social, de reconhecimento (ainda que imposto pelo medo) e de acesso a diversos recursos (materiais e simbólicos), que, na sua trajetória, se apresentaram escassos.
Tais inscrições sociais revelam a pobreza como uma marca naturalizada e apontam formas de negligência da sociedade e do Estado no enfrentamento das desigualdades e no provimento de suporte por meio de políticas redistributivas e protetivas.