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A adolescência negligenciada: múltiplos olhares

Variações em torno da negligência

A questão da negligência, como uma das dimensões da violência, nos interroga sobre determinações de base que remetem a elementos intrapsíquicos e intersubjetivos, nos quais estão implicados fatores psíquicos, sociais, biológicos, culturais. Vamos nos ater, primeiramente, em alguns elementos psíquicos implicados na articulação violência/negligência, tendo em vista a singularidade da experiência subjetiva da adolescência.

Um dos aspectos a serem destacados diz respeito à negligência do outro, mas, igualmente, à violência contra si mesmo, seja pela via do ato, seja pela via da paralisação da existência, da recusa ao agir. Mesmo na negligência dirigida, em última instância, contra si mesmo, as determinações são múltiplas, envolvendo a relação com a alteridade e sempre tendo o contexto sociocultural como solo do processo de formação e de funcionamento psíquicos. A questão do ambiente na constituição subjetiva não se limita à qualidade do encontro com o outro primordial, com o cuidador, com aquele que ampara biológica e afetivamente, introduzindo o indivíduo num universo subjetivo, pulsional. Na mesma linha de importância, conforme desenvolve Furtos (2012), trata-se de um encontro com os objetos sociais.

Na adolescência dá-se um violento confronto com o “estranho” pelo advento do novo, mas, ao mesmo tempo, há a insistência do familiar, desde o mais arcaico, o primário, até um registro secundário, a partir de então, em estágio de ressignificação, movendo e remanejando profundamente diferentes camadas no espaço psíquico. No que concerne à dimensão do tempo, outro elemento muito relevante na adolescência e interligado com a questão da violência e da negligência, há o confronto implicado na diferença geracional. Não é somente a diferença sexual que se coloca em jogo em novo e crítico patamar, ou a diferença de gênero ou, mais amplamente, o problema da escolha de objeto sexual. A crise da adolescência corresponde à crise da idade madura nos pais, em seu psiquismo e na revivência de toda sua história psíquica pregressa.

A experiência subjetiva da adolescência corresponde ao confronto com o processo de envelhecimento das figuras parentais, implicando, de forma diferente, mas não menos intensa ou traumática, a perda de sua juventude, tendo em vista os destinos dessa experiência em seu próprio psiquismo. Impõe-se também, para eles, violenta perda de sua condição, quase onipotente de protetores de seus filhos.

Quando há revivência de vividos mal elaborados, impeditivos de adequado e elaborado luto, o descolamento das figuras parentais, particularmente de sua representação no mundo interno não se efetivar, a presença desses objetos tende a insistir, numa verdadeira ocupação no mundo interno, sem se deixar apagar (KERNIER, 2015). O eu precisa se fazer seu, identificar-se, consolidar o processo identificatório, o que adveio do outro, desde os primórdios da vida e no decorrer de diferentes experiências internas e externas até a adolescência, delimitando seu território próprio interno, suficientemente separado dos objetos parentais, primordiais, para se consolidar o “sentimento de continuidade de si” (Winnicott, 1975). Para tal, mostra Freud (1940/1969, p.237) , inspirado por célebre frase de Goethe2 que aquilo que foi herdado dos pais precisa ser conquistado. A travessia da adolescência é fundamental nesse processo de apropriação e de consolidação identitária.

Mas pode haver excessiva e traumática insistência do que concerne ao vínculo com as figuras parentais, entravando o trabalho de luto, que implicaria uma elaboração das perdas resultantes desse necessário processo de separação. Na impossibilidade disso, a violência psíquica que implica a adolescência não comporta mais caráter estrutural, inerente a ela. Nesse caso, estamos diante de uma situação traumática, e as respostas psíquicas defensivas podem ser extremas, tais como as passagens ao ato, à inação. Nesse conjunto, ressaltam vários autores, dentre eles vale mencionar a contribuição de Marty e Larue (2012), estão as respostas de tipo precário, sem elaboração suficiente quanto à qualidade do trabalho psíquico demandado.

Nas patologias limites, nas situações fronteiriças, de sofrimento identitário-narcísico (ROUSSILLON, 1999), como, por exemplo, nas situações clínicas que envolvem dependência extrema do objeto, naquelas em que impera a agressividade dirigida ao outro ou a si mesmo, nas graves depressões, nas passagens ao ato, inações e nos prolongamentos extremos da adolescência, há um movimento que pode ser considerado enquanto negligência de si mesmo, como quebra extrema no cuidado de si. Porém, essa negligência, essa violência exercida contra si mesmo, pela falta de esperança ou pelo seu oposto, o desespero do imediatismo, a história psíquica de cada sujeito, em sua singularidade – e que se entrecruza necessariamente com a do contexto sociocultural no qual emergiu e vive – nos obriga a analisar o universo relacional, a questão das fronteiras entre o eu e o outro, tendo em vista não somente a qualidade do investimento do outro externo, mas, fundamentalmente, a forma como foram processadas essas relações.

O encontro com a alteridade é elemento essencial do ponto de vista intrapsíquico e intersubjetivo. A qualidade desse encontro deve ser necessariamente considerada na análise teórica e clínica da problemática da violência e da negligência. É na relação eu/outro que podemos situá-la, a alteridade aí envolvida remetendo a múltiplos registros, internos e externos, com toda a complexidade que comporta. Nela se articulam o plano biológico, psíquico, social, cultural através dos quais e por meio de seu profundo entrelaçamento se trava essa relação, no interior da qual a dimensão do cuidado, correlativa à de negligência, pode ser pensada. Exploremos, a seguir, outros importantes ângulos dessas questões.

As diretrizes nacionais para a atenção integral à saúde de adolescentes e jovens enfatizam a importância de fortes laços intersetoriais (saúde, outros setores e comunidades) para a produção de saúde para essa faixa da população e propõem uma reflexão sobre a necessidade de um modelo de atenção à saúde integrado interfederativamente e que responda às especificidades de cada região do país (BRASIL, 2010). As diretrizes chamam atenção, ainda, para o conceito ampliado de saúde, em suas diversas dimensões, e os múltiplos fatores (ambientais, sociais e culturais) que afetam a saúde de adolescentes e jovens.

Há décadas a violência é internacionalmente reconhecida como causadora de consequências adversas para a saúde, a educação e o comportamento de crianças e adolescentes. Abusos sexual, físico e emocional, negligência e exposição à violência doméstica causam problemas de forma direta e indireta nos envolvidos. Todavia, poucos são os estudos de prevalência com abrangência nacional da violência e os existentes são muito variáveis quanto a metodologias, definição de violência, tipos de violência incluídos, fontes de dados, dentre outras diferenças, o que dificulta a comparação entre os países, a compreensão do problema de forma global e as propostas de ação para lidar com a situação (MATHEWS et al., 2020).

Recentemente, Pereira et al. (2020) publicaram dados sobre violências (interpessoais ou autoprovocadas) contra adolescentes (10 a 19 anos) no Brasil, tendo como base notificações feitas pelo setor saúde ao Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) entre 2011 e 2017, procedentes de 75,4% dos municípios brasileiros. Os tipos de violência mais notificados foram: física (64,7%), sexual (24,7%), psicológica (24,5%) e negligência/abandono (12,2%). Violência sexual e psicológica tiveram maior frequência entre as mulheres, enquanto violência física e negligência/abandono foram mais frequentes entre os homens. As lesões autoprovocadas corresponderam a 18,5% das notificações e ocorreram em maior proporção entre mulheres.

Considerando o recorte do nosso artigo, ressaltamos que no estudo supracitado a negligência predominou no grupo com idade de 10 a 14 anos, quando perpetrada de forma repetitiva, no domicílio, praticada por familiares. Ela foi significativamente inferior no sexo feminino, na raça/cor negra, amarela, indígena e quando havia suspeita de ingestão de bebida alcoólica pelo agressor (PEREIRA et al., 2020).

Entretanto, quando os dados divulgados têm como origem os serviços de proteção, internacionalmente a negligência é o tipo de violência mais frequente. Nos Estados Unidos, 75,4% das crianças que receberam proteção em 2015 estavam em situação de negligência. Foi também mais frequente (61%) dentre as formas de maus-tratos em geral encontradas pelo National Incidence Studies (NIS), agência destinada a estimar a incidência de maus-tratos com ou sem envolvimento com serviços de proteção (TURNER et al., 2019).

Da mesma forma, no Brasil, os dados provenientes dos conselhos tutelares ou do disque 100, diferentemente das estatísticas geradas pelas notificações dos serviços de saúde ao Sinan, mostram a negligência familiar como o tipo de maus-tratos mais frequente. No banco de dados do Sistema de Informação para a Infância e Adolescência Módulo Conselho Tutelar (SIPIA-CT), que compila as notificações colhidas pelos conselhos tutelares com acesso ao sistema no Brasil, as referências a um conteúdo análogo à negligência estão presentes em todas as formas de violação, embora o termo literal só figure quando referido ao ambiente familiar. São exemplos de referências análogas: atendimento inadequado, prejuízo à vida por ação ou omissão, discriminação, atos atentatórios à cidadania, negação do direito, falta de condições ou condições irregulares para acesso a direitos (BRASIL, 2003).

Os dados provenientes dos serviços de proteção geram uma visão limitada do problema da negligência, pois tendem a representar apenas a parcela de casos mais graves, que geraram algum dano “visível” à criança ou ao adolescente. Outro aspecto presente nas formas de notificação é a atribuição de um responsável direto pela violação. A tendência mais frequente é a de atribuir a quem tem a função tradicional do cuidado a maior responsabilidade na proteção. O cometimento de atos infracionais por adolescentes tende a ser explicado pela negligência da mãe na supervisão e na transmissão de bons valores. No documento “The state of the world’s children: adolescence an age of opportunity”, o Unicef (2011) chama atenção para o quanto os adolescentes (e suas diferentes vivências de adolescência) estão negligenciados, para a necessidade de proteção e de investimento em ações que podem ser desenvolvidas para seu bem-estar em diferentes partes do mundo.

Pereira et al. (2020, p. 11) ressaltam, em relação à negligência, que:

Esse tipo de violência é de difícil definição e necessita de elementos fundamentais para identificação, como os contextos de pobreza, isolamento, privação social e outras carências presentes na história de vida dos pais e das vítimas. Esses fatores, relacionados à violência estrutural perpetrada historicamente contra milhões de famílias brasileiras, dificultam julgamento mais preciso entre a prática abusiva e a impossibilidade de prover os requisitos para o desenvolvimento de crianças e adolescentes.

Enquanto os demais tipos de maus-tratos ocorrem por ações, a negligência decorre de atos de omissão, difíceis de especificar e mensurar, sendo habitualmente classificada em três grandes grupos: física, de supervisão e emocional.

Turner et al. (2019) estudaram a relação entre indicadores socioeconômicos e as negligências física e de supervisão. O estudo envolveu 3.581 crianças (de 2 a 9 anos) e 4.271 adolescentes (10 a 17 anos), concluindo que a negligência física está diretamente vinculada a estressores econômicos, enquanto a educação dos pais é determinante tanto para negligência física quanto de supervisão. Considerando que esses indicadores socioeconômicos não foram igualmente importantes para o risco de outras formas de maus-tratos, os autores sugerem que políticas e intervenções que visem reduzir as adversidades econômicas e melhorar a compreensão dos pais sobre as necessidades das crianças podem reduzir a negligência. Ressaltam também a importância de avaliar se essas crianças e adolescentes estão sofrendo outras formas de vitimização, dentro e fora do ambiente familiar, considerando que frequentemente a negligência é apenas uma dentre uma gama de vitimizações que esses sujeitos vivenciam. Os autores concluem ser particularmente importante identificar a polivitimização dentre os que estão em situação de negligência. Ao identificar outras formas de vitimização – e não apenas outras formas de maus-tratos – e contextos que expõem crianças e adolescentes a maior risco, aumentam as chances de as intervenções planejadas serem mais eficazes.

2 – “Aquilo que herdaste de teus ancestrais,conquísta-o para fazê-lo teu” (Goethe, Fausto, Parte I, Cena I, 2013).
Joana Garcia joanagarcia@ess.ufrj.br

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Serviço Social, Rio de Janeiro, Brasil. Assistente Social. Doutora em Serviço Social. Professora titular da Escola de Serviço Social/UFRJ, Brasil. Coordenadora do Núcleo de Estudos e Trabalho sobre Infância, Juventude e Famílias (NETIJ). Associada ao Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (CEDECA-RJ).

Ana Lucia Ferreira analuferr@gmail.com

Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil. Médica pediatra. Doutora em Ciências pela Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP)/Fiocruz. Professora Associada do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da UFRJ, Brasil.

Marta Rezende Cardoso rezendecardoso@gmail.com

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil. Instituto de Psicologia Departamento de Psicologia Clínica e Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica. Psicóloga; Psicanalista; Doutora em Psicanálise e Psicopatologia Fundamental pela Université Paris Diderot, França; Professora Titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil; Pesquisadora do CNPq.