Introdução
Este artigo discute, a partir dos modos de circulação de crianças e adolescentes em “situação de rua” no centro de São Paulo, os seus encontros e desencontros com as políticas públicas. Tal circulação foi caracterizada pelo acompanhamento dos usos que são feitos dos serviços, os diferentes itinerários, assim como a função das paradas e das velocidades empreendidas, o que acaba por engendrar um circuito institucional específico (Rui; Mallart, 2015). Em direção contrária à ideia frequentemente propagada pelos operadores estatais de que meninos e meninas em tais condições não “aderem” às políticas, considera-se a perspectiva de que eles não apenas forjam usos inauditos de políticas sociais, como também seus modos de vida conservam singularidades que despontam como desafios às políticas públicas.
Os diferentes usos de programas e serviços que culminam na “não aderência” às prescrições das políticas sociais (Rui; Mallart, 2015) representam na prática um tipo de circulação que pode ser constituído de: pernoite em SAICA (Serviço de Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes)1, acolhimento integral no CAPSij (Centro de Atenção Psicossocial infanto-juvenil)2 e movimentos de fuga para a rua. Assim, a alternância de parada e evasão compõe um circuito original, enquanto que programas e serviços se organizam apoiados numa disparidade em relação aos movimentos dos atendidos, pois, em grande parte, a oferta de cuidado se resume à acolhida institucional.
Na esteira da longa história de institucionalizações e segregações correcionais (Rizzini; Pilotti, 2011), crianças e adolescentes em situação de rua circulam atualmente pelos equipamentos públicos, principalmente os da assistência e da saúde, num movimento que evidencia importantes tensões entre proteção e garantia de direitos por um lado, e disciplinamento e tutela de suas liberdades, por outro.
No primeiro caso, a rua pode ser locus de refúgio e sociabilidade, realizando, inclusive, o direito de refúgio estabelecido no art. 16, VII do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (Brasil, 1990a). No segundo caso, a rua é locus de intervenção de caráter normativo e higienista, como o recente recolhimento compulsório de crianças e adolescentes, proposto em 2011 no Rio de Janeiro sob a justificativa de proteção estatal frente ao uso de substâncias psicoativas ilícitas, conformando um modelo penal-sanitarista de reação às liberdades incontinentes nas ruas (Vicentin; Assis; Joia, 2015).
Diversos estudiosos (Ferreira, 1979; Gregori, 2000; Melo, 2011; Rosemberg, 1994) já sinalizaram os principais problemas das intervenções institucionais que se voltam para os meninos em situação de rua, destacando a desconsideração da heterogeneidade que implica o viver nas ruas, como “a viração e a circulação” (Gregori, 2000, p. 160) e a desarticulação entre os próprios serviços da rede socioassistencial. Tais modos de operar reproduzem a rachadura entre usuário e serviço e fragilizam a garantia de direitos.
As ações dirigidas às crianças em situação de rua ganharam, após o ECA e a implantação dos Sistemas Únicos de Saúde (SUS) (Brasil,1990b) e de Assistência Social (SUAS) (Brasil,1993), sua faceta de política de Estado, incorporando parcialmente a perspectiva crítica experimentada por algumas ações de educação de rua (empreendidas por organizações não governamentais), bem como das agências internacionais (como o Fundo das Nações Unidas para a Infância/UNICEF), com a proposição do Sistema criança-rua (Stoecklin, 2003). Com isso, ampliaram-se as ofertas de ação na rua – como o Consultório na Rua na política de atenção básica; os serviços de abordagem de rua na política de assistência, como o SEAS (Serviço Especializado em Abordagem Social às Pessoas em Situação de Rua)3 – e as ações de busca ativa desenvolvidas pela rede de atenção psicossocial, como os CAPS. No entanto, a despeito deste conjunto de esforços programáticos, articulados intersetorialmente também por meio da política nacional de inclusão social da população em situação de rua (Brasil, 2008), crianças e adolescentes em situação de rua encontram-se distantes de uma atenção integral em saúde.
Como bem aponta Melo (2011), discutindo os direitos humanos de crianças em situação de rua, o cerne da garantia de direitos a essas pessoas tem dois pontos centrais: “de um lado, o reconhecimento da possibilidade de fala e de construção de sentidos pelas próprias crianças e adolescentes em situação de rua e, de outro, o aumento de sua capacidade de ação social” (p. 39). Segundo o autor, a constituição do ECA foi apenas parte de um amplo processo que deveria ter como foco o “resgate de cidadania” (Melo, 2011, p. 54). Nesse sentido, “nenhuma ação social deve, portanto, forçar a criança a se adaptar […]” (Melo, 2011, p. 55) aos serviços e políticas públicas; ao contrário, é preciso que haja “reconhecimento de competências [das crianças] para que possam postular seus direitos” (Melo, 2011, p. 50).
Na esteira de uma perspectiva orientada pelos direitos humanos de crianças e adolescentes, nos pareceu importante acompanhar estas tensões entre controle e agência (Melo, 2011) das crianças e, nessa direção, encontrar uma perspectiva conceitual e metodológica que pudesse acompanhar os sentidos produzidos nos encontros das crianças e adolescentes com as políticas, analisando principalmente as tensões entre o que os serviços dispõem e os movimentos de crianças; entre circuito e circulação.
Para tanto, nos valemos da noção de circuito tal como desenvolvida por Rui e Mallart (2015) e também da noção de nomadismo (Deleuze; Guattari, 2012). A partir dessa análise, foi possível compreender de que forma o circuito se maquina dentro e fora das instituições; sobre esse aspecto, Gregori (2000) sinaliza: “eles se ‘viram’, circulando” (p. 19). Assim, os circuitos se forjam enlaçados às trajetórias individuais, considerando que elas também são “[…] construídas por meio dos trânsitos incessantes entre rua, quebradas, diversas instituições de assistência e de controle” (Rui; Mallart, 2015, p. 07, grifo dos autores). Portanto, cria-se uma transversalidade entre o ritmo de ordenação dos “indesejáveis” e as narrativas pessoais, constituindo um liame entre as instituições e as trajetórias individuais (Rui; Mallart, 2015). Assim, o conceito de trajetória diz respeito às narrativas pessoais, às histórias de vida, enquanto que a noção de circulação se refere ao fluxo engendrado por essas pessoas, que por sua vez esquadrinha possibilidades de trânsito (Rui; Mallart, 2015). Desse modo, há uma sobreposição entre fluxo populacional e trajetórias individuais, diagramados a partir das lógicas do poder. Para além dos fluxos e circuitos institucionais, verifica-se a possibilidade de movimentos nômades (Deleuze; Guattari, 2012), entendidos aqui como uma irredutibilidade ao aparelho de Estado na forma de máquina de guerra, ou seja, forças que de alguma forma se voltam contra o aparelho de Estado.
O nômade, segundo Deleuze e Guattari, encontra-se frequentemente ameaçado pelo aparelho de Estado, precisamente por ser exterior a ele e por forjar um modo de existência apartado dos órgãos do poder. “Ele ocupa, habita, mantém esse espaço e aí reside seu princípio territorial” (Deleuze; Guattari, 2012, p. 55). Além disso, cria trajetos costumeiros; mas, por mais que haja pontos, paradas, repousos nos trajetos, eles só existem subordinados à determinação nômade.
Tal crivo analítico, no entanto, pede uma regra de prudência: “o problema não é apenas circular, pois a questão seria avaliar quando a velocidade do circuito coloca armadilhas e quando ela é máquina desejante e guerreira de combate aos fluxos do capital […]” (Medeiros; Lemos, 2011, p. 941).
A pesquisa de mestrado (Mendes, 2019) junto aos “encontros” dos serviços com as crianças nos permitiu identificar que, de um lado, crianças e adolescentes forjam modos de vida a partir da viração, isto é, manipulando diversos papéis sociais e produzindo circuitos institucionais singulares (Gregori, 2000); de outro lado, políticas e serviços propõem formas de cuidado que privilegiam a fixação. Nesta tensão, a itinerância do cuidado mostrará ser uma disposição vital dos serviços.
Metodologia
A referência metodológica escolhida é a cartografia, como método de pesquisa-intervenção que “pressupõe uma orientação do trabalho do pesquisador que não se faz de modo prescritivo, por regras já prontas […]” (Passos; Barros, 2015a, p.17). No entanto, não significa que esse método caminhe sem direção. Para Passos e Barros (2015), toda pesquisa é uma forma de intervenção, que se dá no plano de agenciamento entre sujeito e objeto, como algo que coemerge. Portanto, a cartografia propõe uma inversão de método; se tradicionalmente metá-hódos pressupõe caminhar para atingir um destino prefixado, hódos-metá consiste em caminhar para se atender aos processos, movimentos e efeitos da pesquisa. Sendo assim, não se estabelecem estatutos prévios a respeito da realidade, do conhecimento, logo, a construção de sujeito e objeto são produtos da pesquisa. Desse modo, não se procura estabelecer pontos externos e fixos, mas a “experiência direciona o trabalho da pesquisa do saber-fazer ao fazer-saber, do saber na experiência a experiência do saber” (Passos; Barros, 2015a, p.18). No caso desta pesquisa, tal inversão metodológica permite a aproximação do traçado de movimentos das crianças, buscando construir um saber a partir da experiência.
Esse acompanhamento, processual e plástico, foi necessário para trazer à tona movimentos nômades em meio aos circuitos, em meio aos “entre” criados pelos meninos e meninas em situação de rua. Neste caso, o cartógrafo em questão se aproximou da “etnologia do efêmero” (Meunier, 1999, p. 84), de forma a dar visibilidade aos movimentos fugazes, imperceptíveis ou pouco considerados pelos atores das políticas no encontro com as crianças.
Portanto, quando se propõe a acompanhar, traçar linhas, imergir no plano existencial, a cartografia se faz em movimento, produzindo intervenção. Desse modo, os traços da cartografia compõem um mapa, no entanto, não devem ser confundidos com decalque ‒ que seria fechado, estático. “O mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente” (Deleuze; Guattari, 2011, p. 30).
Procurou-se organizar o trabalho a partir das redes socioassistencial e de saúde do município de São Paulo, especialmente a do centro da cidade. No entanto, o CAPSij ocupou lugar de referência, tanto de partida quanto de chegada nas andanças da pesquisa; além disso, esse ponto também propiciou ligações imediatas com o fora do serviço, com o extramuros, possibilitando conexões com a rua e outros pontos da rede que se faziam na estratégia “CAPS na Rua”. Esta estratégia consiste no deslocamento de parte da equipe para os pontos de maior vulnerabilidade; lá, os profissionais desenvolvem ações de produção de cuidado, de acordo com as demandas do território. Além disso, a intervenção também busca aportes aos demais equipamentos da rede socioassistencial e, para tanto, a atuação em rede se faz fundamental. Em vista disso, o pesquisador acompanhou as intervenções dentro e fora dos serviços4, o que acabou por instaurar dois platôs distintos, onde se pôde acompanhar modos singulares de vida das crianças. Acompanhar as intervenções do “CAPS na Rua” possibilitou experimentar a itinerância como um modo de produzir cuidado (Lemke, 2009).
Outra instituição que se acompanhou foi o SEAS IV, também de forma itinerante, uma vez que a equipe concentra seus atendimentos no trabalho social de busca ativa e abordagem nas ruas, e, mais especificamente, junto às cenas abertas de uso de drogas5. Vale ressaltar também que muitos destes atendimentos são compartilhados com o CAPSij, principalmente aqueles nos arredores da Cracolândia.
A fim de acentuar a diferença entre os modos de vida nas ruas, constituímos dois campos de pesquisa: um nas imediações da Praça da Sé e outro na Cracolândia, quadrilátero localizado no bairro da Luz, próximo à Praça da Sé. Esses são os pontos de maior vulnerabilidade e incidência de meninos e meninas em situação de rua, tanto é que as intervenções de “CAPS na Rua” são nesses territórios.
As imediações da Praça da Sé são regiões conhecidas pela presença de meninos e meninas que passam lá parte do dia, num funcionamento em bando, o “Bando da Sé”, tomado aqui como um sujeito múltiplo. Já na região da Cracolândia (Rui, 2014), outra paisagem se compôs, pois, a circulação perimetral das equipes é menor, comparado-se ao campo da Praça da Sé; porém, esse outro modo de circular pelas ruas evidencia a importância da Cracolândia aos olhos dos diferentes atores sociais. Basicamente, as equipes se concentram em um quadrilátero composto por alguns quarteirões e dentro dele realizam seus atendimentos. Justaposto à dinâmica territorial, o modo de vida na rua se dá de forma absolutamente distinta: crianças e adolescentes não formam grupos, a circulação tem outras intensidades, outras velocidades e repousos. Como se pôde perceber, na Cracolândia as crianças e adolescentes procuram estabelecer alianças, mesmo que efêmeras, ao invés de constituírem grupos – como no caso da Sé. Em função disso, nesse território, acompanhou-se uma criança de dez anos que, na ocasião da pesquisa, estava em situação de rua há três anos e nove meses, de forma a delinear o seu circuito.
Todas as atividades da pesquisa, que consistiram no acompanhamento das equipes em atividades na rua e nos contextos institucionais (reuniões de equipe e de articulação intersetorial), durante o período de fevereiro a agosto de 2018, foram registradas em diário (Passos; Barros, 2015b), estratégia condizente com a processualidade e itinerância do pesquisar. Outras estratégias foram realizadas, como entrevistas ou conversas com os profissionais de referência das diversas instituições que os acompanhados acessaram. A análise dos circuitos e circulação foi realizada por meio da: a) construção de narrativas, a partir dos diários, de situações analisadoras, isto é, que evidenciavam certas relações de saber-poder em jogo entre crianças e adultos (Lourau, 1993); b) pela comparação entre movimentos de composição e movimentos díspares de crianças e dos serviços. A análise de implicação do pesquisador, adulto, entre equipes e crianças, compôs também um procedimento importante do trabalho de análise. Neste artigo, destacaremos Moacyr, uma das crianças acompanhadas que, tendo transitado nos dois loci, nos permitirá ainda delinear diferenças quanto ao viver nas ruas nesses contextos, assim como quanto aos modos de conexão entre crianças e serviços.
2 – O objetivo do CAPS infanto Juvenil, dispositivo central da Reforma Psiquiátrica Brasileira, é “organizar juntamente com a atenção básica, o cuidado em saúde mental à infância e adolescência no seu território, (…) atendendo crianças e adolescentes com diferentes e complexas manifestações de sofrimento psíquico, sejam elas por transtornos mentais, por necessidades decorrentes do uso de substâncias psicoativas e/ou outras situações de vulnerabilidade que requeiram cuidado intensivo, (…) substituindo qualquer modelo de exclusão” (São Paulo, 2016, p.12).
3 – O SEAS modalidade IV atende a pessoas em situação de rua de todas as faixas etárias, além de dar suporte à Coordenação de Pronto Atendimento Social (CPAS) nas situações de emergência. (cf. Portaria 46/2010 da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social) (São Paulo, 2010).
4 – É preciso realçar que o ano de 2018 foi conturbado para grande parte dos equipamentos da região central, pois houve inúmeras mudanças das Organizações Não-Governamentais que gerem os serviços; alterações administrativas que influenciaram no cotidiano dos trabalhadores. Em função disso, as possibilidades de coleta de dados na região da Praça da Sé ficaram um tanto restritas por conta da inconstância das equipes – exceto a do CAPSij ‒, realizando trabalho de rua; mesmo assim, foi possível participar de reuniões de rede envolvendo tanto Assistência Social quanto Saúde.
5 – Conforme Portaria nº 46/2010 da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social de São Paulo (São Paulo, 2010).