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“Eu não sei se o professor está me olhando”: o olhar e a tela


Uma reflexão psicanalítica

Como é possível perceber, as experiências virtuais têm significados e efeitos específicos para cada um. Contudo, o tema do olhar esteve muito presente nas falas das crianças e dos jovens, especialmente em reflexões relacionadas à transitoriedade, à transmissão e ao uso da tela.

Na teoria freudiana, o olhar relaciona-se à constituição da sexualidade. Como objeto da pulsão escópica, o olhar sustenta a curiosidade sexual e, ao ser sublimado, transforma-se em interesse científico. Para Lacan (2005/1962-1963), o campo visual difere-se do olhar. Enquanto o primeiro refere-se à percepção das imagens e se apoia na constituição narcísica do estádio do espelho, o segundo diz respeito ao real e está elidido do campo da visão. O olhar é causa de desejo, mas também fonte de angústia.

A pandemia remeteu os jovens à transitoriedade. Freud, em seu texto sobre a transitoriedade (1974/1916), comenta que toda catástrofe nos remete à transitoriedade da vida, e pode tirar, para alguns, o valor da sua beleza. Essa reflexão freudiana pode ser articulada ao texto de Lacan sobre a construção da cena do mundo (2005/1962-1963). Lacan descreve o mundo como um empilhamento de restos, e a cena do mundo como a construção da história em torno desses restos. A cena do mundo é o campo visual que encobre o objeto olhar. No entanto, a visão se sustenta e se organiza pela função do olhar que é elidido desse campo. Como percebemos nas falas de alguns jovens, a irrupção da pandemia provocou um abalo em sua visão de mundo, fazendo emergir o olhar na dimensão real e despertando a angústia.

As crianças e os jovens também destacaram a importância do olhar na relação com o saber. Assim, buscamos o apoio de alguns textos de Freud e de Lacan para sublinhar que o olhar, em sua função de resto, é o que impulsiona o saber. Finalmente, discutimos a relação entre o olhar e a transmissão. A construção lacaniana sobre a mancha no campo visual é o que nos guia nessa elaboração. A nossa hipótese é a de que a mancha do olhar faz borda entre desejo e gozo. O olhar incide no campo visual através da mancha. É através da mancha que o real se apresenta na cena, enlaçando simbólico e imaginário. O olhar como mancha sustenta a transmissão de saber.

Sobre a transitoriedade: o olhar que abala a cena do mundo

É surpreendente observar como antes da pandemia vivíamos confinados às telas dos nossos gadgets e deixávamos de perceber a paisagem à nossa volta. Agora, na fresta da nossa janela, buscamos captar os pequenos detalhes com os quais a natureza nos presenteia diariamente: a árvore florida na rua; o pássaro que pousa na janela; a gota de chuva que pinga no vidro. Desejamos sair da tela, nos sentar sob a sombra de uma árvore, prestar atenção nos pássaros e andar pela praça.

O sentimento de transitoriedade surgiu na fala de alguns jovens como uma mudança na visão de mundo a partir da pandemia, comprometendo o interesse pela aprendizagem. Eles passaram a perceber a vida como transitória, frágil, sem controle: “Tudo passa tão rápido; não sabemos quando nos encontraremos de novo, quando poderemos sair em grupo, passear pelas praças, parques e shoppings” (Antônia, 18 anos).

A jovem continua:

A gente sempre estudou sobre guerras e pandemias, mas ninguém imaginava que ia viver isso. A situação de incerteza, de imprevisibilidade, tira a vontade de fazer qualquer coisa, faz perder o foco, tira o estímulo para os estudos. A gente passa a ver o mundo de outra forma, sem a mesma beleza de antes.

Freud, em seu texto sobre a transitoriedade (1974/1916), comenta sobre um passeio que fez pelos campos, num dia de verão, na companhia de um poeta. Segundo Freud, o poeta admirava a beleza do cenário à sua volta, mas não extraía disso qualquer alegria: “perturbava-o o pensamento de que toda aquela beleza estava fadada à extinção, de que desapareceria quando sobreviesse o inverno, como toda a beleza humana e toda a beleza e esplendor que os homens criaram ou poderão criar” (Freud, 1974/1916, p. 345). Toda aquela beleza pareceu-lhe despojada de seu valor por estar fadada à transitoriedade.

Lacan (2005/1962-1963) demonstra que a psicanálise denuncia o cosmo como lugar de engano. Para ele, a história é a montagem do mundo, a encenação. Num primeiro tempo, temos o mundo, no segundo, o palco em que fazemos a montagem desse mundo: “O palco é a dimensão da história” (p. 43). Lacan destaca, no primeiro tempo, o mundo como um empilhamento de restos, um depósito de destroços sem coerência interna, e, no segundo tempo, a visão de mundo, a sua montagem, o palco onde se encena a história. O mundo com o qual acreditamos lidar seria apenas um depósito dos restos acumulados, um empório de épocas que se sucederam.

A história do mundo é um arranjo de partes dotado de sentido (Porge, 2009), o campo perceptivo que encobre o olhar. A visão se sustenta pela função do olhar que, no entanto, está elidido desse campo. A angústia é a emergência do objeto olhar no campo da visão, quando a constituição da imagem especular mostra o seu limite.

A pandemia abalou a cena do mundo. O desconhecimento sobre as formas de tratamento do vírus, o seu potencial destruidor, expuseram a fragilidade da vida. O mundo se revelou como uma justaposição de fragmentos sem sentido, fazendo emergir a dimensão real do olhar que desperta a angústia.

O olhar que impulsiona o saber

Marina, 10 anos, explica da seguinte forma o seu incômodo com as aulas online: “eu não sei se o professor está me olhando”.
Há uma dimensão do olhar que nos enlaça. Em um artigo escrito às vésperas do seu sexagésimo aniversário, para um volume coletivo em comemoração ao 50º aniversário de fundação do colégio em que estudou dos 10 aos 18 anos, em Viena, Freud comenta que, caminhando pelas ruas da cidade, podia encontrar, inesperadamente, algum cavalheiro idoso e bem conservado, ao qual saudava, quase humildemente, porque o reconhecera como um antigo professor. Entretanto, depois parava e refletia se seria realmente o professor:

Seria realmente ele, ou alguém bastante semelhante? Como parece jovem! E como estamos velhos. Que idade poderá ter hoje? Será possível que os homens que costumavam representar para nós protótipos de adultos, sejam realmente tão pouco mais velhos que nós? (Freud, 1974/1914, p. 285).

Há algo de obscuro que impede o total reconhecimento do outro. O tempo presente parece mergulhar na obscuridade, e o material surgido nos escaninhos da memória se apresenta com todas as suas conjecturas, ilusões e deformações (Freud, 1974/1914). A imagem do professor e as lembranças das experiências escolares da infância são atravessadas por fantasias e desejos inconscientes, restando sempre um impossível de apreender.

A emoção sentida por Freud ao se encontrar com o antigo mestre revela a dimensão inconsciente que incide na transmissão do saber. Como o autor observa, para muitos, os caminhos das ciências se constroem apenas por meio dos professores, e, para Freud, a transferência, que possibilita a transmissão, é uma experiência amorosa.

Essa experiência amorosa tem relação com o objeto olhar. Em seu Seminário, Livro 1, Lacan (1993/1953-1954) observa que o estado amoroso, quando se produz, não intervém para qualquer parceiro ou para qualquer imagem, mas existem algumas condições para o amor à primeira vista. Freud nos ensina sobre a potência do olhar no encontro amoroso, apontando que os nossos desejos se organizam a partir dele.

A dimensão do olhar privilegiada na função do desejo está presente no processo de constituição do sujeito. Em seu Projeto para uma psicologia científica (1974/1895), Freud argumenta que a vivência de satisfação é uma experiência fundamental para a constituição do aparelho psíquico, que marca a passagem do registro da necessidade para o campo do desejo. Ao primeiro grito do bebê, a mãe lhe oferece o alimento, supondo a necessidade de saciar a sua fome. Freud interpreta que, num segundo momento, o choro do bebê estaria relacionado à ausência daquele que cuida, ou seja, ao que desaparece do seu campo de visão.

O objeto da primeira experiência de satisfação é visual e corresponde à Coisa que não pode ser atingida nem na alucinação do desejo, nem na realidade. Para Lacan, a Coisa é o objeto perdido, jamais reencontrado, que desperta o desejo no mundo visível do qual ela está elidida (Lacan, 1997/1959-1960).

A teoria freudiana da pulsão demonstra como a linguagem se apropria do corpo, destituindo-o das determinações naturais e transformando-o em corpo erógeno. A constituição da sexualidade ocorre a partir do circuito da pulsão em torno do seu objeto de satisfação, que envolve três tempos lógicos: ativo, reflexivo e passivo. No caso da pulsão escópica, trata-se de “ver, ver-se, ser visto”. No terceiro tempo do circuito pulsional escópico, a criança se faz objeto para um Outro, num “fazer-se ser vista”, e um novo sujeito surge dessa operação. Lacan ressalta que, se as pulsões oral e anal estão situadas no nível da demanda, “no nível da pulsão escópica estamos no nível do desejo do Outro” (Lacan, 1995/1964, p. 102). O olhar situa-se, portanto, em relação ao desejo do Outro.

Reportando-se à obra de Sartre O ser e o Nada, Lacan, no seminário I (1993/1953-1954), argumenta que o objeto humano se distingue de qualquer outro objeto “na medida em que é um objeto que me olha” (p. 246). E acrescenta que o olhar aqui não se confunde com o fato de que eu vejo os seus olhos. Posso me sentir olhado por alguém de quem não vejo os olhos. A partir do momento em que eu penso que sou olhado, já sou algo diferente, “pelo fato de que me sinto eu mesmo tornar-me um objeto para o olhar de outrem” (p. 246). Nessa posição, que é recíproca, “… sou um objeto que se sabe ser visto” (p. 246).

Assim, Lacan desloca o olhar para o objeto, diferenciando-o do olho que vê uma imagem. O olhar advém “do exterior”, não é um atributo do sujeito. Esse olhar desconhecido e inapreensível faz parte dos objetos. O sujeito é também afetado pelo olhar enquanto objeto.

Em sua teoria do estádio do espelho, Lacan descreve o processo de constituição da imagem corporal a partir da identificação do sujeito com uma imagem unificada de si próprio, que é a imagem do outro como semelhante. O “eu” apreende sua imagem na imagem que o outro lhe devolve. Porém, para a assunção da imagem do corpo no espelho, é preciso que a criança se volte para aquele que a segura, para que ele autentique sua descoberta. Esse reconhecimento do Outro permite que a criança assuma uma determinada imagem de si, que, no entanto, jamais se fecha em uma identidade unívoca (Lacan, 2005/1962-1963).

Lacan vai ressaltar a presença do objeto olhar na constituição da imagem no espelho (Lacan, 2005/1962-1963, p. 277). O olhar não pode ser apreendido pela imagem, trata-se de um furo, de uma luz que ofusca a visão, que cega com a sua luminosidade.
A relação especular suporta as identificações imaginárias, mas dissimula a distinção entre visão e olhar. Se a visão pode ser tomada como função do órgão da vista, o olhar, seu objeto imanente, é onde se inscreve o desejo do sujeito (Miller, 2013).

O objeto olhar pode incidir no campo da visão sobre a forma da mancha. Usando o exemplo dos insetos, que também possuem um par de olhos, Lacan comenta que “vemos aparecer a existência de uma mancha dupla, cujo efeito é fascinar o outro, predador ou não” (Lacan, 2005/1962-1963, p. 264). Para Lacan, o segredo do fascínio pela imagem é o encobrimento da falta, constitutiva do sujeito. “O encobrimento promovido pela imagem vela também que o objeto que aí se apresenta como causa da jubilação é justamente o olhar, causa da Schaulust, o gozo espetacular” (Quinet, 2002, p. 133).

O componente de fascínio da função do olhar, enigmático em si mesmo, é o ponto de irradiação, a função do desejo que se revela no campo visual. A mancha é o sinal que me olha, e é por me olhar que me atrai. O objeto a é um postiço, é a isca com que se fisga o Outro, o olhar é “aquilo que falta, não é especular, não é apreensível na imagem” (Lacan, 2005/1962-1963, p. 278). O olhar que escapa ao campo da visão inaugura o desejo de ver. Há uma dimensão do olhar que desperta o desejo, e o desejo de ver transforma-se em busca de saber.

A relação com o saber se dá em torno de um vazio fundamental, constituinte da subjetividade. Da operação de constituição do sujeito se extrai um resíduo, o objeto a. O saber é tecido em torno desse objeto inapreensível. Assim, o que impulsiona o saber é objeto olhar como vazio. A construção de saber é o movimento em torno desse vazio, que corresponde ao movimento do desejo.

O saber é apreendido no campo do Outro de uma maneira singular, sendo sempre parcial, pois envolve a dimensão de não saber, própria ao inconsciente. A dimensão de gozo também está presente na apropriação do saber. O saber é algo a ser devorado, incorporado, degustado, e para tê-lo, “é preciso empenhar a própria pele” (Lacan, 1985/1972-1973, p. 130). O gozo da pulsão escópica sustenta a busca de “tudo ver”.

Para Lacan (1985/1972-1973), o objeto a é o que enlaça o sujeito ao Outro, na medida em que o sujeito localiza no Outro o objeto a. “A criança olhada, ela tem o a. Será que ter o a é sê-lo?” (p. 135).

Nádia Laguárdia de Lima nadia.laguardia@gmail.com

Professora Associada do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais – Brasil. Coordena o grupo de pesquisa: Além da Tela: psicanálise e cultura digital (PPG-PSI) e o Programa de Extensão da UFMG: Brota: Juventude, Educação e Cultura. Pesquisadora associada ao GT Psicanálise e Educação da ANPEPP.