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Feminismo teen e youtubers: feminismo na adolescência em tempos de redes sociais

Ampliação do espaço público ou reforço de processos de excludência?

A produção da identidade feminista para as meninas tem as redes sociais como plataforma para seus ideias e práticas. Do ponto de vista das meninas, o sucesso das redes sociais está associado à produção de um mundo comum em uma sociedade estilhaçada pela experiência da modernidade. Nestes comentários finais, gostaria de tensionar a formação deste “mundo comum” (ARENDT, 1983) a partir da dinâmica inerente às redes sociais.

Inspirada na psicanálise freudiana, sugiro que o princípio de mobilização das redes sociais é a identificação (FREUD, [1914]/2019a, [1921]/2019b), isto é, o princípio da adesão a partir da identidade, “daquilo que é igual a mim”, e não do princípio da realidade, a experiência dialógica do confronto com o outro; as redes sociais, portanto, não se assemelham a uma ágora, o espaço público marcado pelo diálogo e pelo confronto de diferentes perspectivas que tem como fundamento a experiência de um mundo compartilhado; assim, as redes sociais se assemelham a conglomerados de grupos/comunidades/bolhas constituídas a partir do princípio da mesmidade, a “lógica do condomínio” que aumenta o volume do EU e diminui o valor do mundo (DUNKER, 2009).

É nessa ambiência, longe do dissenso e no conforto da bolha, que as meninas se constroem como feministas: são os canais do YouTube que produzem o encontro daquelas que, não fosse pelo ambiente virtual, não se encontrariam. Trata-se de uma novidade significativa no esteio do movimento político: a potência dos encontros promovidos por mulheres, nos anos 1970, como forma de partilhar experiências, reconhecer violências e produzir ações subsistem no feminismo teen, mas no formato de encontros virtuais mediados pela figura de uma youtuber ou diluídos em comentários em postagens ou vídeos; a presença das feministas em partidos e movimentos sociais é diluída pela presença virtual das meninas em inúmeros perfis e canais que tratam de política, direitos e democracia; a presença das mulheres nas ruas, palco do embate entre perspectivas conservadores e libertárias, subsiste, mas não mais exclusivamente, pois as redes sociais tornam-se arenas de formação e disputa política.

Há importantes implicações na novidade assinalada pelas práticas das meninas quando consideramos a teoria política clássica: se a democracia é calcada sobre a conformação de consensos pela constatação da diversidade, presente em qualquer sociedade nacional, como as mídias sociais impactam a democracia se priorizam e valorizam o princípio da identidade? Como produzir consensos em um mundo fragmentado? Quais os espaços para diálogo? Quais as possibilidades de construir um “mundo comum” (ARENDT, 1983) no qual a tolerância à diferença seja princípio?

A resposta aponta para uma realidade multifacetada. De um lado, é importante considerar que a lógica descrita das redes sociais tem como condão os princípios da publicidade que reforçam a experiência de bolha identitária em detrimento do confronto do dissenso. Maria Rita Kehl (2008) nos ajuda a compreender a dinâmica das redes sociais:

[…] o apelo psicológico comum a todas as formas de publicidade visa à dinâmica da inclusão e da exclusão. A publicidade […] vende sempre a mesma coisa: a proposta de uma inclusão do sujeito às custas da exclusão do outro […] Goza-se com isso: não tanto da própria inclusão (que pode não passar de uma fantasia), mas da exclusão do outro. O que a publicidade vende, portanto, é exclusão (p. 27).

Kehl (2008) argumenta que os laços sociais no capitalismo contemporâneo são organizados com referência a identificações que apelam ao “gozo sem limites” em um movimento regressivo que ilumina o narcisismo premente nas relações sociais. O narcisismo, como marca da sociabilidade contemporânea, toma o EU como a medida de todas as coisas. Ora, qual é possibilidade de construção de um “mundo comum” em uma sociedade em que a diferença é execrada em nome do gozo imediato? Qual é a possibilidade de diálogo em uma sociedade em que o princípio do prazer é imperativo? Sob essa perspectiva, o feminismo teen é mais do mesmo e, portanto, muito distante da possibilidade de construção de pontes para um mundo comum.

Por outro lado, não é possível deixar de lado o impacto positivo na arena pública da movimentação feminista nas redes sociais. Sonia Alvarez (2014) focaliza o movimento feminista não institucionalizado que toma forma distante e crítico às institucionalidades políticas e ganha as redes e as ruas em meados de 2011. Gomes (2017) toma a Marcha das Vadias como exemplo paradigmático desse ativismo para quem o Estado não é o alvo principal de suas estratégias de ação, mas sim a cultura patriarcal que vitimiza mulheres. Uma novidade da Marcha das Vadias, segundo a autora, é a instantaneidade e espontaneidade das adesões: as marchas eram preparadas e agendadas por meio de redes sociais que impulsionaram de forma inesperada (até mesmo para as organizadoras do ato) adesões de milhares de mulheres que enxergavam na figura da vadia um grito irônico e subversivo de liberdade para seus corpos. O medo e/ou a experiência da violência de gênero e a presença de corpos seminus em praça pública produziram práticas articulatórias, laços ainda que temporários, que reconheciam em cada mulher uma igual e nesse reconhecimento se desenhou uma potencialidade política dada pela percepção de que não estamos sozinhas (“somos muitas”) e que esse NÓS tem um enorme potencial de mudar o mundo.

Inspirada pelas reflexões de Alvarez (2014), gostaria de refletir, nestes últimos parágrafos, de que modo diferenças são equacionadas e articuladas na constituição da identidade feminista teen; também gostaria de pensar se e como, apesar das distâncias (reais, virtuais, sociais e raciais), um NÓS feminista é concebido e construído pelas meninas.

Para as entrevistadas, descobrir-se feminista é encontrar a si e, assim, encontrar outras meninas e mulheres que compartilham as mesmas experiências – positivas ou negativas. Para as meninas, feminismo é a experiência de si denotada pelo prazer de ser quem se é e tal experiência não se faz sozinha, mas juntas por meio do compartilhamento, ainda que remoto, de experiências de dores e alegrias implicadas na experiência de ser menina e tornar-se mulher em uma sociedade patriarcal.

No vídeo “Tem um minuto para a palavra do feminismo?”17, Julia responde dúvidas sobre feminismo que convergem com as reflexões das entrevistadas. Uma pergunta que a youtuber responde é “como sei se sou feminista?” e Julia explica que “as pessoas são feministas – elas só não sabem que são”. Tal leitura é apoiada na ideia de que o feminismo é “você agir em cima do que você acredita que é correto para a sociedade”, como explicou Larissa, e esse agir está diluído em cada microrrelação e microespaço social. As entrevistadas, assim como Julia, entendem que o feminismo se faz todos os dias, em todas as situações nas quais as desigualdades de gênero se mostram presentes. É ao afrontar a ordem social, marcada pela desigualdade e injustiça, que a identidade feminista se consolida.

Resistir às normas cotidianamente é tarefa a que os feminismos têm se lançado historicamente, e as meninas tomam essa tarefa como essência de sua prática. Mesmo não inseridas em espaços clássicos de ativismos, as meninas colocam o feminismo “na roda” e entendem que o ativismo político clássico – a participação em partidos, movimentos sociais e ONGs – não é mais a única forma de ser feminista. O mundo mudou e é preciso mudar junto com ele, explicou-me uma entrevistada em uma conversa informal.

Feminismo, da perspectiva das meninas, é entendido como uma multiplicidade de discursos e práticas que têm como valores a autonomia das mulheres, o respeito à diversidade e uma experiência radical de alteridade e, desse modo, as redes sociais são espaços privilegiados de formação e de disputa política. Nesse sentido, as práticas e discursos do feminismo teen indicam uma mudança cultural, a “feminização da cultura” (RAGO, 2019), que se dá na disputa política cotidiana pela vida, dignidade e sonhos de meninas que têm muito a dizer. Tal novidade está tomando forma, no entanto, é preciso levar em conta o movimento contraditório da realidade social marcada por um jogo de forças que se digladiam e impedem que avaliações peremptórias e terminativas sejam desenhadas.

17 – Em fevereiro de 2020, o vídeo contava com mais de 555 mil visualizações, 71 mil curtidas e quase 3 mil comentários.

Referências Bibliográficas

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RESUMO

Este trabalho teve como objetivo investigar o modo como as motivações, práticas e experiências de adolescentes autoidentificadas como feministas são impactadas pelas redes sociais. Por meio de entrevistas semiestruturadas foi investigado de que modo as redes sociais, especialmente o YouTube, impactaram o processo de formação feminista das meninas. O trabalho conclui que as redes sociais tem delineado uma “feminização da cultura”, um longo processo histórico de mudança cultural no qual o respeito ao feminino, à dignidade humana e à diferença são valores centrais.

Palavras-chave: juventude, feminismo, redes sociais, YouTube.

Feminismo teen y los youtubers: feminismo y adolescentes en el contexto de las redes sociales

RESUMEN
Este trabajo tiene como objetivo investigar cómo las motivaciones, prácticas y vivencias de adolescentes autoidentificadas como feministas son impactadas por las redes sociales. A partir de entrevistas semiestructuradas, se investigó cómo dichas redes sociales, especialmente YouTube, impactaron en el proceso de formación feminista de las niñas. El trabajo concluye que las redes sociales han perfilado una “feminización de la cultura”, un largo proceso histórico de cambio cultural en el que el respeto a lo femenino, la dignidad humana y la diferencia son valores centrales.

Palabras clave: juventude, feminismo, redes sociales, YouTube.

Teen feminism and youtubers: feminism and teenagers in the context of social networks

ABSTRACT

This paper investigates how the motivations, practices and experiences of adolescents self-identified as feminists are impacted by social networks. Based on semi-structured interviews, it was investigated how such social networks, especially YouTube, impacted the process of girls’ feminist education. The work concludes that social networks have outlined a “feminization of culture”, a long historical process of cultural change in which respect for the feminine, human dignity and difference are central values.

Keywords: youth, feminism, social media, YouTube.

Data de recebimento: 14/06/2021
Data de aprovação: 22/08/2021

Ana Carolina Vila Ramos dos Santos carolina.vila@ifsp.edu.br

Doutora em Sociologia e Professora do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico do Instituto Federal de São Paulo (IFSP), campus São Paulo-Pirituba, São Paulo, Brasil.