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Fórum de Escolas do Grande Bom Jardim: práticas de enfrentamento à violência armada em territorialidades escolares de periferias de Fortaleza

Laisa Forte Cavalcante
Universidade Federal do Ceará, Departamento de Psicologia, Fortaleza, Ceará, Brasil.
ORCID iD: 0000-00002-6523-847X

Larissa Ferreira Nunes
Universidade Federal do Ceará, Departamento de Psicologia, Fortaleza, Ceará, Brasil.
ORCID iD: 0000-0001-5384-0896

Ingrid Rabelo Freitas
Faculdade Metropolitana de Fortaleza, Departamento de Serviço Social, Fortaleza, Ceará, Brasil.
ORCID iD: 0000-0002-8365-6245

Tadeu Lucas de Lavor Filho
Universidade Federal do Ceará, Departamento de Psicologia, Fortaleza, Ceará, Brasil.
ORCID iD: 0000-0003-2687-1894

João Paulo Pereira Barros
Universidade Federal do Ceará, Departamento de Psicologia, Fortaleza, Ceará, Brasil.
ORCID iD: 0000-0001-7680-576X

Luciana Lobo Miranda
Universidade Federal do Ceará, Departamento de Psicologia, Fortaleza, Ceará, Brasil.
ORCID iD: 0000-0002-7838-8098

Introdução

A violência armada1 tem se intensificado, desde 2015, em diversas cidades da região nordeste do Brasil (BARROS, 2019). Além de agravar a questão da letalidade juvenil, a intensificação da violência armada produz efeitos na questão das mobilidades urbanas, na restrição do acesso a uma série de espaços e serviços, agravando as diversas violações de direitos, sobretudo, nos cotidianos de adolescentes e jovens residentes de bairros marginalizados (BARROS et al., 2019).

Faz-se importante destacar que cidades e países da América Latina vivenciam condições semelhantes a países em guerra, em que o número de mortes e o hiperencarceramento, especialmente decorrentes do narcotráfico ou da política de guerra às drogas, corroboram para uma difusão da violência armada e seus efeitos psicossociais em cotidianos de jovens (ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO CEARÁ, 2018; BARROS; NUNES; SOUSA, 2020; CARNEIRO, 2011; VALENCIA, 2010). Algumas pesquisas, produzidas em contextos latino-americanos, apontam que crianças e adolescentes são os que mais sofrem diante da presença constante da violência armada (CENTRO DE INVESTIGACIÓN Y EDUCACIÓN POPULAR/ PROGRAMA POR LA PAZ, 2020).

Para uma melhor explanação da violência armada e seus impactos, trazemos alguns dados sobre a letalidade juvenil no Ceará e, em específico, sua capital. A cidade de Fortaleza, Brasil, está no pódio nos dois últimos Índices de Homicídios na Adolescência (IHA) (CANO; MELO, 2017). Algumas territorialidades periféricas2, como Barra do Ceará, Grande Messejana e Grande Bom Jardim (GBJ), Brasil, apresentam elevadas taxas de homicídios de adolescentes e jovens, sobretudo, ocasionados por armas de fogo (ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO CEARÁ, 2019; COMITÊ CEARENSE PELA PREVENÇÃO DE HOMICÍDIOS NA ADOLESCÊNCIA, 2020a). Essas mesmas localizações geográficas são tidas como assentamentos precários ou Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), devido às suas condições maximizadas de precariedade de vida e de vulnerabilidades sociais (ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO CEARÁ, 2018). Além disso, destaca-se, nesses territórios, a presença marcante da violência policial, que corrobora para a letalidade em suas ações, além de, em contrapartida, uma redução e precarização de políticas sociais (BARROS; NUNES; SOUSA, 2020).

Dados de 2019 no Ceará, Brasil, apontam para uma redução (50,04%) no número de crimes violentos letais intencionais em comparação ao ano de 2018 (COMITÊ CEARENSE PELA PREVENÇÃO DE HOMICÍDIOS NA ADOLESCÊNCIA, 2020a), fato que tem sido associado a uma suposta trégua entre grupos criminosos que ocorreu no início do ano (NUNES, 2020). Entretanto, no final de 2019 e no começo de 2020, é possível identificar o aumento significativo de homicídios, sobretudo, nas semanas em que aconteceu o motim dos policiais do Estado do Ceará (COMITÊ CEARENSE PELA PREVENÇÃO DE HOMICÍDIOS NA ADOLESCÊNCIA, 2020b). Somente de janeiro a maio de 2020, 798 adolescentes e jovens entre 12 e 24 anos tiveram suas trajetórias de vida interrompidas, representando 42,29% do total de mortes violentas deste período e, por sua vez, um aumento de 13,92% se comparado com os mesmos meses de 2019 (FÓRUM POPULAR DE SEGURANÇA PÚBLICA DO CEARÁ, 2020). Dados mais recentes apontam 4.039 homicídios somente em 2020, dos quais 12% são adolescentes de 10 a 19 anos. Especificamente, em média, 12 adolescentes foram mortos a cada semana e uma adolescente foi assassinada a cada cinco dias, apresentando assim um aumento de 69% comparado ao ano anterior, 2019 (COMITÊ CEARENSE PELA PREVENÇÃO DE HOMICÍDIOS NA ADOLESCÊNCIA, 2021).

No tocante às territorialidades mais afetadas, dentre os dez bairros com maiores índices de homicídios de adolescentes e jovens, destacamos Granja Lisboa, Granja Portugal, Siqueira e Bom Jardim (primeiro lugar), Brasil. Todos os bairros citados compõem o Grande Bom Jardim e fazem parte desse ranking (ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO CEARÁ, 2020). Essas adolescências e juventudes, tidas como algozes da violência, são constituídas a partir do signo da desigualdade, tratadas igualmente como diferentes e perigosas a partir da narrativa do “envolvimento” (NUNES, 2020).

A partir dessa realidade, trazemos Mbembe (2017) para entender como essas periferias são tidas como “mundos de morte”. Para esse autor, há uma atualização no modo de gerir a vida/morte a partir do exercício necropolítico. Segundo Mbembe (2017), necropolítica diz respeito às formas contemporâneas que subjugam vidas ao poder da morte. Ela ocorre a partir da ficcionalização de um inimigo e na produção de zonas de morte (mundos de morte). Existem diferentes expressões necropolíticas, tais como o encarceramento em massa, extermínio da juventude pobre e negra, aumento de morte de mulheres, dentre outras (BARROS et al., 2019). No contexto cearense, percebemos que a ficcionalização dos inimigos se atualiza na figura do envolvido/bandido (sujeitos que estão ligados à infracionalidade ou são tidos como suspeitos de traficarem drogas).

Destacamos esses dados para apontar a conexão entre desigualdade social, condição de pobreza e letalidade juvenil com a presença marcante de políticas punitivo-penais e escassez de políticas assistenciais, de modo a manter uma hegemonia social burguesa e a subalternização de minorias sociais e alteridades. Como uma das consequências do robustecimento da violência armada em Fortaleza nos últimos anos, há que se considerar a dificuldade de transitar pela cidade e o acesso prejudicado a alguns equipamentos públicos como uma das mudanças nos cotidianos, principalmente de moradores de periferias (BARROS et al., 2019). Dentre esses equipamentos, destacamos as Unidades Básicas de Saúde (UBS) e as escolas públicas que, por sua vez, tiveram seus calendários modificados para não prejudicar os/as alunos/as. Também houve toques de recolher em alguns bairros, devido às regras territoriais impostas pelas facções que proibiam a circulação de pessoas de uma territorialidade para frequentarem outra “dominada” por uma facção rival (CAVALCANTE; ALTAMIRO, 2019). Diante dessa violação do direito de ir e vir e dos aspectos conectados ao deslocamento e à locomoção por/entre territórios e espaços físicos, há também aspectos simbólicos e afetivos presentes nessas restrições e constrangimentos das mobilidades urbanas que se relacionam intimamente a marcadores raciais, sociais e de gênero desses jovens (SAVEGNAGO, 2020).

Alguns estudiosos(as) têm dedicado suas pesquisas ao fenômeno da violência armada nos cotidianos de jovens de territorialidades periféricas na cidade de Fortaleza, tendo apresentado análises contextualizadas do recrudescimento da letalidade e precarização da vida juvenil em locais em que a vulnerabilidade social é acentuada (COSTA et al., 2021; GOMES et al., 2020; BARROS; NUNES; SOUSA, 2020). Dentre os cotidianos afetados e a violação de direitos maximizados, destacamos as territorialidades escolares e educacionais, inseridas na educação formal e não-formal, respectivamente, em escolas de ensino regular e espaços de cultura, arte e lazer. Sendo esses espaços nas periferias de Fortaleza pontos de (im)permanência de juventudes acuadas pelas diversas violências postas no território (LAVOR FILHO, 2020).

A respeito dos efeitos da violência armada em instituições educacionais/escolares, após o primeiro relatório do Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência (CCPHA), a evasão escolar foi uma das 12 evidências apontadas como possíveis vulnerabilidades que culminaram para o assassinato desses adolescentes. Deste modo, uma das recomendações para a redução de homicídios juvenis trata-se da busca ativa para a (re)inclusão de adolescentes no sistema escolar (ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO CEARÁ, 2018). Segundo esse relatório, o rompimento do vínculo escolar é tido como um sinal de precarização da vida, de exposição ao risco e de alerta de vulnerabilização ao homicídio.

Entretanto, se por um lado há um recrudescimento da violência, por outro, cotidianamente, coletivos juvenis, instituições escolares e outros agentes envolvidos inventam formas de existir e resistir – re-existências – nas periferias (ACHINTE, 2017; TAKEITI; VICENTIN, 2019). Frente a essa realidade, movimentos sociais, organizações governamentais e não governamentais e universidades têm unido forças e pensado em estratégias para o enfrentamento da violência armada (BARROS; NEGREIROS; QUIXADÁ, 2018). É nesse contexto que surge o Fórum de Escolas pela Paz do Grande Bom Jardim (FEPGBJ), em 2012, após o assassinato de um jovem estudante, o que gerou comoção coletiva e desencadeou iniciativas de articulação para o enfrentamento à letalidade juvenil.

O Fórum de Escolas é composto por 12 escolas estaduais3, por organizações não governamentais do GBJ, órgãos do Governo Estadual do Ceará, como o programa Pacto pelo Ceará Pacífico, através da célula NAPAZ e o Centro Cultural Bom Jardim (CCBJ), e conta com o apoio do VIESES-UFC e do Laboratório em Psicologia, Subjetividade e Sociedade da UFC (LAPSUS-UFC), além de outros grupos ligados a instituições universitárias de Fortaleza. O FEPGBJ se propõe a debater estratégias conjuntas de enfrentamento às implicações da violência armada nas escolas, além de traçar algumas ações a serem realizadas no GBJ para fomentar espaços coletivos de discussão e de fortalecimento dos vínculos escolares.

Dentre seus objetivos, destacamos: contribuir na construção de contextos escolares e comunitários mais coesos, através de ações de prevenção de violência intergeracional e de gênero, da resolução pacífica de conflitos, dentre outros; e a luta pela continuidade dos/as estudantes dentro da escola em condições qualificadas de aprendizagem. A partir de 2020, no contexto da pandemia por COVID-19, mesmo após o decreto estadual de distanciamento social, as territorialidades periféricas apresentaram maiores índices de mortalidade não somente pela COVID-19. Ao longo deste período, houve uma continuidade crescente de assassinatos e uma ampliação da fragilidade dos vínculos escolares.

Ao levarmos em consideração o contexto apresentado, este artigo se guiará pela seguinte questão: como o Fórum de Escolas pela Paz do Grande Bom Jardim contribui para o enfrentamento à violência armada, que tem limitado as mobilidades urbanas de crianças e jovens em Fortaleza? Portanto, temos como objetivo cartografar práticas de enfrentamento à violência armada e seus efeitos nos cotidianos de jovens, realizadas ou fortalecidas pelo Fórum de Escolas pela Paz do Grande Bom Jardim (FEPGBJ).

As discussões são embasadas em referenciais teóricos da Psicologia Social em diálogo com autores/as críticos à colonialidade e pós-estruturalistas. Para tanto, utilizamos a cartografia como manejo de pesquisa-inter(in)venção (BENÍCIO et al., 2018), tendo o diário de campo como ferramenta de colheita de dados e o prisma cartográfico como estratégia analítica. Desse modo, as seções a seguir estão divididas em: percurso e ferramentas metodológicas, em que apresentamos de que maneira utilizamos as pistas da cartografia para acompanhar e compor os processos de luta e resistência do Fórum de Escolas. Em seguida, discutimos sobre a cartografia das atividades e ações do FEPGBJ como analisadores de outros modos de produção de “re-existência”. Salientamos que, nesse processo cartográfico, nos interessamos pela processualidade, pelo plano coletivo de forças que tecem as lutas e práticas de “sobre-vivências” dos sujeitos que compõem o FEPGBJ. Por fim, nas considerações finais, apresentamos uma síntese do que foi discutido.

1 – A violência armada, nesta pesquisa, é entendida como o uso intencional de armas de fogo aliado às ações perpetradas por grupos criminosos a fim de conquistar e controlar territórios e mercados ilegais, o que muitas vezes abrange conflitos armados entre grupos e policiais, ou mesmo entre grupos criminosos rivais, assim como códigos de controle social, a exemplo das restrições compulsórias de circulação e trânsito, que podem ser observadas habitualmente nas periferias (CAVALCANTE; ALTAMIRANO, 2019).
2 – Entendemos territorialidades periféricas como a junção de localizações geográficas marginalizadas que se reinventam em meio a lógicas hegemônicas que ignoram suas singularidades e polifonias. Os territórios existenciais que ali se formulam visibilizam e dizibilizam (produzem modos de dizer) modos de afirmação coletiva, os quais aparecem para além de suas relações com a pobreza, criminalização, desigualdade, dentre outras opressões e violências impostas, mas que se reiteram como sujeitos e habitantes de um território-vivo (TAKEITI; VICENTIN, 2019).
3 – As 12 escolas que compõem o Fórum de Escolas do GBJ são: Escola Estadual de Educação Profissional (EEEP) Ícaro de Sousa Moreira, Escola de Ensino Fundamental e Médio (EEFM) Michelson Nobre da Silva, Escola de Ensino Médio de Tempo Integral (EEMTI) Jociê Caminha, EEFM Santo Amaro, EEFM Paulo Elpídio, EEFM São Francisco Canindezinho, EEFM São Francisco Bom Jardim, EEMTI CAIC Maria Alves Carioca, EEMTI Senador Osires Pontes, Escola de Ensino Médio (EEM) Professora Eudes Veras, EEFM D. Julia Alves Pessoa, EEFM Poeta Patativa do Assaré.
Laisa Forte Cavalcante laisacavalcante9393@gmail.com

Psicóloga e Mestra pela Universidade Federal do Ceará (UFC), Brasil. Integrante do Grupo de Pesquisa e Intervenções sobre Violências, Exclusão Social e Subjetivação (VIESES/UFC), Brasil e do Fórum de Escolas Pela Paz do Grande Bom Jardim, Fortaleza, Brasil.

Larissa Ferreira Nunes larissafnpsico@gmail.com

Doutoranda e Mestre em Psicologia na Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará – UFC – (Bolsista FUNCAP-CE), Brasil. Integrante do Grupo de Pesquisa e Intervenções sobre Violências, Exclusão Social e Subjetivação (VIESES-UFC), Brasil.

Ingrid Rabelo Freitas ingrid.rbfreitas@gmail.com

Assistente Social de Formação pela Faculdade Metropolitana de Fortaleza (FAMETRO), Brasil. Brincante do Maracatu Nação Bom Jardim e Assessora de juventudes do Programa Jovens Agentes de Paz do Centro de Defesa da Vida Herbert de Souza. Integrante do Fórum de Escolas Pela Paz do Grande Bom Jardim, Fortaleza, Brasil.

Tadeu Lucas de Lavor Filho tadeulucaslf@gmail.com

Doutorando e Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará – UFC, Fortaleza-CE, Brasil. Integrante do Laboratório em Psicologia, Subjetividade e Sociedade (LAPSUS). Professor do Centro Universitário Vale do Salgado (UniVS), Brasil. Integrante do Fórum de Escolas Pela Paz do Grande Bom Jardim, Fortaleza, Brasil.

João Paulo Pereira Barros joaopaulobarros07@gmail.com

Professor do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC), Brasil. Coordenador do VIESES: Grupo de Pesquisas e Intervenções sobre Violência, Exclusão Social e Subjetivação, Brasil.

Luciana Lobo Miranda lobo.lu@uol.com.br

Doutora em Psicologia pela PUC-RJ, Brasil. Estágio pós-doutoral no Programa de Psicologia Social Crítica e Personalidade pela City University of New York (CUNY), Estados Unidos. Professora Titular do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC), Brasil. Coordenadora do Laboratório em Psicologia, Subjetividade e Sociedade (LAPSUS), Brasil.