Recomposições ético-estético-políticas
As pesquisas cartográficas e genealógicas, dentre suas diferentes possibilidades de agenciamento, valem-se, para definição e discussão de critérios que qualificam o rigor das pesquisas, do exercício de reflexividade e análise de implicação dos/as pesquisadores/as, das restituições movimentadas no curso dos trabalhos, da possibilidade de conectar as políticas de pesquisa com a potência de criar mundos partilhados (Barros et at, 2017; Passos; Kastrup, 2016a, 2016b).
Existe uma afirmação da condição de aprendiz do/a pesquisador/a como constituinte desses planos de análise, das possibilidades das pesquisas sofrerem desvios, inflexões sem determinar rotas pré-calculadas e que se traduzem em rigor e qualidade quando servem para cartografar territórios de pesquisa e visibilizam as contingências e escolhas dos caminhos percorridos (Nascimento, 2002).
O aprendizado e a transformação do pesquisador se fazem no acompanhamento dos efeitos das múltiplas práticas de pesquisa, práticas que dão acesso ao plano de onde emergem sujeitos, objeto, campo, pesquisador, pesquisados, questões, textos, desvios, mundos (Pozzana, 2016, p. 49).
De que adianta pesquisar para confirmar o que se pretende afirmar de antemão? Inspiração genealógica para uma ética da problematização como experiência: “a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se vê” (Foucault, 2001, p. 13) e invenção como tarefa cognitiva para produzir diferenciações e não representar objetos (Kastrup, 2000). Tarefas árduas e que guiam a construção metodológica deste artigo.
Revezamentos teórico-práticos (Foucault; Deleuze, 1996), gênese social e histórica dos problemas (Rossi; Passos, 2014), modos de subjetivação e objetivação (Foucault,1983), regimes de dizibilidade e visibilidade (Deleuze, 2005) constituem-se conceitos-ferramentas nesta cartografia de territórios de pesquisa simultaneamente ético-estéticos e políticos:
Ético porque não se trata do rigor de um conjunto de regras tomadas como um valor em si (um método), nem de um sistema de verdades tomadas como valor em si (um campo de saber): ambos são de ordem moral. O que estou definindo como ético é o rigor com que escutamos as diferenças que se fazem em nós e afirmamos o devir a partir dessas diferenças. As verdades que se criam com este tipo de rigor, assim como as regras que se adotou para criá-las, só têm valor enquanto conduzidas e exigidas pelas marcas. Estético porque este não é o rigor do domínio de um campo já dado (campo de saber), mas sim o da criação de um campo, criação que encarna as marcas no corpo do pensamento, como numa obra de arte. Político porque este rigor é o de uma luta contra as forças em nós que obstruem as nascentes do devir (Rolnik,1993, p. 247).
Os processos que a cartografia desenha e acompanha resultam em modos de estar com o outro que apostam na tessitura de relações de confiança e no alargamento de estratégias participativas, problematizações das codificações e sobrecodificações que caracterizam as segmentaridades que nos sujeitam (ética). Por sua vez, essas tarefas imputam a desconstrução de padrões normativos e a criação de outros territórios para as existências, outras sensibilidades, que esculpem a vida entendida como potência virtual, forças que pedem fluxo e geram fluxo e devires (estética). Co-extensivamente, planos comuns são acessados/traçados, analisando os funcionamentos dos dispositivos de poder, os planos de organização que compõem toda segmentaridade dura (micropolítica), assim como as linhas flexíveis e moleculares e linhas de fuga (Deleuze; Parnet, 1998; Deleuze; Guattari, 1999). Políticas molares e moleculares animam “o” político que se insinua apenas como estabilidades, racionalidades, modos de governo e representações.
A formulação de um território de pesquisa, ainda que sempre por se fazer, foi possível à cartógrafa aprendiz quando coloca em análise o plano de composição de pesquisas, projetos de extensão, propostas escritas para editais em parcerias com ONGS, no intervalo dos últimos 5 anos. Este processo permite visualizar deslocamentos éticos, estéticos e políticos já feitos e/ou em curso, percebendo-se como a questão da intergeracionalidade diferencia-se em meio a cenas e problemas já constituídos, inspirando outros planos de análise e preservando sua condição como problema (faz pensar) e menos como categoria previamente definida.
Neste percurso, encontram-se as ressonâncias do enunciado “dar voz à criança” como campo discursivo, onde atuam forças instituintes e operações de ressencialização do sujeito criança e reterritorialização do adulto, mesmo que afastado imaginariamente do lugar de poder repressivo (Costa; Costa, 2016; Gadelha, 2010). Em outras investigações, cenas lúdicas emergem como dispositivos de experimentação entre crianças e pesquisadoras nos cotidianos escolares, agenciando resistências e permanências quanto aos modos de subjetivação em exercício em projetos políticos pedagógicos, ditos emancipatórios e alternativos (Costa, 2015).
Outra linha nesta cartografia se apresenta pelo interesse em acompanhar processos formativos que se dão pelos encontros entre a ação política das crianças e de outros grupos geracionais, em termos de reposicionamento e reconhecimento. Interesse que vem se fortalecendo na proposição de experiências de formação em parcerias com Ongs, atuantes nas políticas culturais em contexto urbano entre capital e interior do Ceará. Formações desenhadas a fim de interseccionalizar o debate sobre as ações das crianças em função de marcadores raciais, de classe, de gênero e território, assim como transversalizar políticas públicas no âmbito da cultura: Cultura Viva e Cultura Infância2 (Costa; Cavalcante, 2020; Rocha, 2019). A elaboração do percurso formativo em questão3 emerge, então, como dispositivo que pode favorecer a análise da intergeracionalidade, materializada nas práticas dos pontos de cultura que realizam trabalhos “para” as crianças e nas concepções de infância e cultura de seus agentes. Vislumbra-se que disto possa resultar o encontro desses agentes (público a que se destina a formação) com referências locais e contextualizadas, com as quais possam (re)elaborar suas práticas voltadas às crianças, na contramão dos regimes de visibilidade que embranquecem e binarizam o que se passa localmente (Rocha, 2019).
Há ainda, neste território de pesquisa, direções que vão se emaranhando com perspectivas etnográficas (Ribeiro, 2015), tangenciando contribuições da sociologia da infância (Libardi; Castro, 2017; Salgado, 2014; Sarmento, 2005) e se deixando provocar em direção à descolonialidade e à produção de resistências periféricas (Barros; Silva; Gomes, 2020).
Em contextos periféricos, vêem-se conjugações distintas para a resistência cotidiana e afirmação da possibilidade de viver (Costa et al, 2020). Os papeis sociais de quem cuida, quem aprende, quem ensina, quem decide sofrem demarcações segundo as sociabilidades urbanas desses territórios. As heranças, memórias e a transmissão entre grupos geracionais não correspondem aos modelos hegemônicos, segundo uma semiótica burguesa e capitalista. Se regimes de opressão se interseccionalizam, as resistências se rizomatizam, desafiando a composição dos encontros pelos dispositivos da pesquisa-intervenção com crianças e adultos, ou jovens, ou idosos.
Os acontecimentos que se dão no encontro com os territórios periféricos são vistos como possíveis analisadores, podendo favorecer o revezamento entre ação, reconhecimento e reposicionamento na produção das infâncias brasileiras contemporâneas, tendo em conta sua produção desigual. Nos planos das forças e processos, os modos de participação das crianças são rizomas que podem inaugurar pontos de diferenciação em meio a uma rede já marcada por modelos de participação4.
Nesta direção, encontros entre grupos geracionais periféricos, não organizados hegemonicamente pelas ordens escolares e familiares, embora ainda atravessados por ela, têm se materializado em parceria com projetos sociais5, compondo territórios existenciais pelos quais se podem acessar planos de relações instituídas entre esses grupos, vê-las operando em relação às semióticas periféricas de resistências e exclusão social, em seus efeitos para práticas endereçadas às crianças no território (Alvarez; Passos, 2015).
Entra-se em contato com a potência das crianças como sujeitos de direitos à cena pública (como forças e não apenas formas), pensando que a pesquisa pode assumir-se como tal, a subjetivar-se em condições de cuidado e ao mesmo tempo abertas às virtualidades que o encontro com o público pode proporcionar, frente à recorrente institucionalização como vetor hegemônico das ações com crianças periféricas.
O diálogo com perspectivas pós-estruturalistas vem resultando em um modo de operar com as relações adulto-criança em que se destacam: a) as cenas e seus movimentos e não apenas os sujeitos que nela aparecem; b) os efeitos disruptores das falas das crianças para as lógicas de produção de sentido e menos a interpretação do ponto de vista do significado; c) os discursos e seu funcionamento nos dispositivos de subjetivação e, por fim, os múltiplos efeitos dos encontros em campo para as políticas de pesquisas, pesquisadores, território e pesquisados.
3 – A proposta de formação foi submetida como proposta no Edital Cultura Infância 2020, da Secretaria de Ccultura do Estado do Ceará (Secult-CE), e aguarda avaliação.
4 – Tema de pesquisa aprovada em Edital de iniciação cientifica em universidade brasileira em 2020, encontrando-se em curso.
5 – No território de pesquisa cartografado por este trabalho, são acompanhadas atividades de pesquisa e extensão com grupo de crianças em periferia urbana de cidade no Nordeste, desde 2019. São fruto da parceria da universidade com Ongs atuantes no campo das políticas públicas, defesa de direitos e luta pela democratização da cidade em uma ocupação urbana, considerada Zona Especial de Interesse Social (ZEIS).