Introdução
Pensar e reconhecer a existência de diversas infâncias e suas desigualdades na interação com a cidade é uma forma de resistência. São muitas assimetrias e múltiplas e perversas realidades existentes no território do Rio de Janeiro. Nessa “urbe desurbanizada”, distinguimos escalas de sobrevivência dos diversos sujeitos em seu “habitar a cidade sem ter direito à cidade”, e a infância pobre faz parte desse grupo invisibilizado e marcado por uma realidade em que predominam ausências e precariedades. Em seus percursos diários, encontra-se exposta a caminhos de desenvolvimento inseguros e contextos de existência inquietantes e turbulentos (Sarmento, 2009):
Segundo dados da ONU Habitat, 1,6 mil milhões de pessoas não tem habitação adequada e 25% da população mundial vive em bairros informais sem infraestruturas nem saneamento básico, sem acesso a serviços públicos, com escassez de água e de eletricidade. Vivem em espaços exíguos onde se aglomeram famílias numerosas. Em resumo, habitam na cidade sem direito à cidade, já que, vivendo em espaços desurbanizados, não têm acesso às condições urbanas pressupostas pelo direito à cidade (Boaventura Santos, 2020, p. 18).
No momento atual da crise humanitária mundial1, em que nos ressentimos tanto do usufruto dos espaços livres enquanto lugar eminente da vida social e da força das relações interpessoais, pensar em possibilidades outras das infâncias habitarem a cidade inclui pensar em como essas novas condições irão afetar a experiência da criança na cidade. E essa vivência recai fortemente sobre a escola que agora mais do que nunca precisa se reiventar, de forma que os territórios de aprendizagem possam se expandir para além dos seus muros, com um entorno seguro e condições adequadas de percurso. É preciso assumir que a escola sozinha já não se basta e o edifício escolar não pode continuar nesse isolamento, desconectado da cidade e alheio ao que acontece no seu entorno e às potencialidades do território onde se insere.
Nesse contexto, este artigo propõe uma discussão acerca da criança como sujeito de direitos, a partir de suas experiências espaciais e seu habitar na cidade. Ao pensar a criança como co-autora e co-construtora de territórios educativos, dá-se visibilidade a sujeitos que geralmente não têm oportunidades de opinião e participação em políticas públicas, em uma concepção das infâncias como cidadania crítica (Azevedo, 2019). Pretende-se refletir sobre o habitar das infâncias na cidade nesses tempos desafiadores em que o surto viral nos assombra e nos obriga a pensar sobre os modos de vida no “novo normal” que se descortina.
Deste modo, contribuir com políticas públicas que valorizem a participação social de forma a pensar em ações concretas de enfrentamento para a retomada saudável das aulas e do espaço público, em uma escola outra e em espaços de aprendizagem outros, que reconheçam a potência educativa da cidade. Precisamos refletir sobre o habitar das infâncias em uma cidade saudável que possa ser pensada em parceria com as crianças, pois as lições de rua protagonizadas pelas infâncias têm demonstrado com incrível nitidez a potência da participação desses sujeitos nas decisões sobre a cidade.
Estudos sobre a relação entre espaços livres públicos e privados e territórios educativos se apoiam na análise da interface entre questões da paisagem urbana, que explicita as contradições dos processos constitutivos dos espaços livres públicos como mediação entre os tecidos físico-urbanísticos e sociais, bem como as desigualdades que se expressam materialmente nos espaços das cidades brasileiras. Esses contextos demandam a revisão urgente de políticas públicas que se pautam na inserção de atores sociais invisibilizados, dentre esses, as crianças e os jovens em situações de vulnerabilidade.
Em tempos de crise, poderemos pensar em provocar mudanças, superar desafios, pensar alternativas de enfrentamento, reinventar conceitos cristalizados e, por consequência, refletir em que medida as infâncias – pluralizadas por conta de seus diferentes contextos – passarão a ser foco de políticas mais eficientes. Quem sabe poderemos romper nossas “bolhas” e deixarmos de ser meramente espectadores de uma realidade para assumirmos de fato nossa condição de ser social participativo e cooperativo, que se permite desconstruir e transgredir:
O surto viral pulveriza este senso comum e evapora a segurança de um dia para o outro. Sabemos que a pandemia não é cega e tem alvos privilegiados, mas mesmo assim cria-se com ela uma consciência de comunhão planetária, de algum modo democrática (Boaventura Santos, 2020, p. 7).
Na mesma direção, podemos trazer para esse debate as provocações de Bruno Latour, quando nos instiga a Imaginar gestos que barrem o retorno da produção pré-crise (Latour, 2020):
Se, em apenas um ou dois meses, bilhões de humanos somos capazes, ao apito do árbitro, de aprender o novo «distanciamento social», de nos afastar uns dos outros para sermos mais solidários, de ficar em casa para não sobrecarregarmos os hospitais, podemos perfeitamente imaginar o poder transformador desses novos gestos, barreiras erguidas contra a repetição de tudo exatamente como era antes, ou pior, contra uma nova investida mortífera daqueles que querem escapar de vez à força de atração da Terra
Devemos, provocados por Latour, pensar em atividades a serem ampliadas/retomadas/modificadas. Nesse contexto, podemos e devemos repensar a relação entre as atividades que ocorriam dentro das escolas e aquelas que podem e devem ocupar os espaços fora delas, como já estudamos em pesquisas anteriores (Azevedo et al, 2011; Azevedo et al, 2015).
É nesse momento de revisão, reflexão, modificação e imaginação, que se coloca a discussão proposta no artigo em tela. Constitui-se em desdobramento de uma pesquisa que entrelaça as abordagens de dois grupos de pesquisa vinculados ao Programa de Pós-Graduação em Arquitetura da FAU/UFRJ: o Grupo Ambiente-Educação (GAE) pesquisa sobre infâncias e cidade e está atuando no estudo e na aplicação de dispositivos de escuta e co-criação de projetos com crianças; e o grupo Sistema de Espaços Livres – Rio de Janeiro (SEL-RJ/ProLugar) pesquisa sobre os sistemas de espaços livres públicos e privados, em múltiplas escalas com abordagens socioambientais e morfológicas.
A reflexão aqui proposta busca também contribuir com novas formulações metodológicas de mapeamento dos territórios educativos, dando prosseguimento às discussões iniciadas com o desenvolvimento das pesquisas integradas que envolveram os grupos GAE e SEL-RJ – O lugar do pátio escolar no sistema de espaços livres: Uso, forma, apropriação (2011); Do espaço escolar ao território educativo: O lugar da Arquitetura na conversa da escola de educação integral com a cidade do Rio de Janeiro (2015).
O GAE, em sua atuação, tem valorizado a interlocução com as crianças através de dispositivos mais sensíveis, que possibilitam compreender as diversas questões do seu cotidiano na escola, na cidade e no espaço público, buscando lhes dar voz e protagonismo. Ao romper com a hegemonia da escola como contexto único educativo, em suas pesquisas mais recentes, o grupo tem proposto a discussão da cidade a partir da perspectiva do território educativo. Assim, alarga fronteiras e encoraja o desenclausuramento das infâncias, dilatando os limites do próprio corpo ao mobilizar as potencialidades do espaço urbano. Com uma trajetória de mais de quinze anos, e em parceria com o grupo SEL-RJ, reconhece a pesquisa como um veículo de inclusão e de fomento à formação cidadã. Destacam-se, nesse âmbito, as experiências de oficinas de interlocução com crianças e jovens em territórios vulneráveis da cidade do Rio de Janeiro, como nos bairros de Tubiacanga2 e Manguinhos3.
O Grupo SEL-RJ tem como abordagem metodológica a aproximação em várias escalas, com foco no papel que os espaços livres públicos e privados estabelecem na mediação entre crianças e jovens e a cidade no município do Rio de Janeiro e sua Região Metropolitana. Nas atividades abordadas neste artigo, e já descritas, os participantes se baseiam no reconhecimento da urgência em reinventar nossas cidades, tendo em vista a constituição e qualificação de territórios educativos que nela se estabelecem, relacionando as unidades escolares e seus entornos urbanos.
2 – 2018. Pesquisa concluída, parceria entre o movimento social Baía Viva e os grupos de pesquisa Sistema de Espaços Livres (SEL-RJ), Ambiente-Educação (GAE) e Qualidade do Lugar e Paisagem (ProLugar) do Programa de Pós-graduação em Arquitetura – PROARQ-FAU/UFRJ. Contribuiu com a inclusão e reconhecimento no território e da população de Tubiacanga, comunidade do Rio de Janeiro, assim como na melhoria da qualidade de vida desse grupo envolvido em históricos de exclusão e marginalidade. Teve como foco o reconhecimento das demandas locais e sua relação com os instrumentos de planejamento e desenho urbano, visando à construção participativa de projetos que conectem o anseio da população com os instrumentos urbanísticos e arquitetônicos estudados pelos grupos GAE, ProLugar e SEL-RJ, oferecendo alternativas para essa comunidade frente às mudanças propostas pelo poder público.
3 – 2019. II Workshop Internacional Desafio de projetos locais: Construindo espaços juntos, realizado como pesquisa integrada dos grupos GAE – Grupo Ambiente-Educação, SEL/RJ – Sistemas de Espaços Livres no Rio de Janeiro e ProLugar – Projeto e Qualidade do Lugar, vinculados ao Programa de Pós-graduação em Arquitetura – PROARQ-FAU/UFRJ. Objetivamos dar continuidade às parcerias e trabalhos desenvolvidos para a montagem e participação na sessão temática apresentada no World Urban Forum /WUF-2018 GOOD DESIGN, GOOD PLANNING: Aligning practice, communities and education in the implementation of Agenda 2030. As atividades propostas são parte da realização do projeto “Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (Sustainable Development Goals-SDG) e a Nova Agenda Urbana (New Urban Agenda-NUA): equidade, resiliência urbana e sustentabilidade socioambiental”. Recebeu a licença de uso do selo XXVII Congresso Mundial de Arquitetos UIA2021RIO para os eventos preparatórios desenvolvidos em 2019.