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O habitar das infâncias na cidade: territórios educativos como uma forma de resistência

Escola, cidade e infâncias: territórios educativos

Ao resgatar as experiências das infâncias no espaço público e na cidade, com essa reflexão, pretendemos reduzir a visão do espaço como prerrogativa e soberania dos adultos e tecer a cidade como uma rede de possibilidades educativas que evita o excesso de funcionalismos e valoriza as “brechas” e as imprevisibilidades. Inspirados por Lima (1989) e Paulo Freire (2001), reconhecemos o papel formativo da cidade para a educação, pois, no usufruto das potencialidades oportunizadas pelo perambular pela cidade, a criança se desenvolve, constrói e reconstrói sua visão de mundo, ao mesmo tempo em que provoca mudanças em si mesma e na urbe, dotando-a de vitalidade. A retomada então do espaço público pelas infâncias resgata esse “lado de fora” que favorece a exploração, as descobertas, a transgressão e que se constitui como “as experiências mais importantes do desenvolvimento e aprendizagem infantil” (Tonucci, 2018, p. 29).

O conceito de território educativo, que vem sendo construído nas pesquisas integradas desenvolvidas pelos grupos GAE e SEL-RJ, se alinha à definição de território como uma construção social que se manifesta sobre uma base física, através de múltiplas apropriações, individuais e coletivas, delimitando marcas e marcos de identidade cultural (Schlee et al, 2009). Ao reconhecer que o território educativo possui zonas subjetivas que são construídas e delimitadas pela qualidade das relações existentes (Fischer, 1994) e pelas ações individuais e coletivas que definem o grau de apropriação e pertencimento dos sujeitos ao lugar, entende-se que o território não se limita aos aspectos físicos, mas inclui também os afetivos, simbólicos e experienciais.

A partir dessas premissas iniciais, foi consolidado o entendimento das dimensões definidas pela relação entre paisagem urbana, espaços livres, escola e cidade, neutralizando fronteiras, reconhecendo e recuperando a importância da cidade na atividade educadora. As dimensões citadas estabelecem critérios de análise que contribuem para a apreensão da percepção de crianças e jovens em sua vivência cotidiana como possíveis coautores das ações e processos de planejamento urbano e qualificação da paisagem e do ambiente que vivenciam. Nesse sentido, busca-se garantir a crianças e jovens os direitos constitucionais de acesso à educação, como também acesso à paisagem e aos espaços livres públicos.

Pensamos então o território educativo como um conjunto de relações, interações e contradições que envolvem uma diversidade de atores em um contínuo movimento e interlocução. Esse coletivo constitui uma rede social composta pela escola como um centro irradiador, pelos percursos, pelos espaços livres e também pelas instituições parceiras, que constituirão lugares pedagógicos construídos pelo cotidiano da escola e do bairro onde se localiza, qualificado por valores colaborativos e relações de convivialidade entre vizinhos (Vidal, 1997). Reconhecer o território como uma rede é compreender quais são os atores que a constituem e como se dão as associações entre eles.

Santos (2004) corrobora essa reflexão ao afirmar que o território se estabelece a partir da utilização a ele atribuída e das relações sociais que o compõem, fazendo com que haja um dinamismo nesse lugar que pode se modificar conforme o uso e a apropriação. Ou seja, pode-se afirmar que o território educativo dificilmente será pré-concebido, sendo construído e modificado de acordo com a experiência e o cotidiano de seus atores. E esse território inclui, ainda, a construção de laços afetivos que convergem no sentido de um enraizamento, uma mistura das trajetórias pessoais, sociais e espaciais, dadas por um mesmo espaço vivido (Schlee et al, 2009).

A compreensão das diferentes concepções teóricas que abordam a noção de território ajuda a entender de forma mais detalhada o espaço-lugar-território no qual a escola busca reformular o diálogo existente (Flandes, 2017). O Município do Rio de Janeiro apresenta uma potencialidade alta em termos educativos pela sua diversidade urbana de espaços construídos e livres que serviriam como base para configurar um número frutífero de territórios educativos.

Para entender a conformação desses territórios educativos, é necessária uma aproximação em várias escalas, desde a visualização do sistema de espaços na escala da região até a análise das situações mais locais, envolvendo o estudo de como “os indivíduos e grupos escolhem, cunham e determinam seus territórios e lugares” (Schlee et al, 2009, p. 231). Reafirmamos, então, que a escola é uma centralidade social que suscita a formação desses territórios a partir da apropriação de outros espaços educativos que se expandem além dos limites dos seus muros.

Assim, para que essa rede complexa aconteça de fato, é preciso dar visibilidade às potencialidades locais e, principalmente, reconhecer as fragilidades e precariedades de cada região. Dar conta da memória e da história local, das relações com o ambiente natural e construído, dos movimentos sociais, entender o contexto de forma a resgatar a autoestima e a vocação do bairro, incentivando a noção de pertencimento e a apropriação dos espaços pelos sujeitos. É necessário reafirmar que o conhecimento adquirido na escola não esgota o conjunto de saberes necessários para a construção da cidadania e a participação na sociedade.

O movimento para ultrapassar o muro da escola terá início a partir da identificação das principais carências do bairro, além de suas potencialidades e oportunidades, com o mapeamento de equipamentos culturais, educacionais, esportivos e das áreas livres existentes. Cabe estar atento ainda às “linhas e conexões” que compõem essa rede, identificando parceiros, relações sociais e as características dos percursos, reconhecendo a existência de diferentes velocidades de uso – pedestres, ciclistas, veículos.

É claro que a construção do território educativo deverá envolver todos os atores – gestores, pais, professores, alunos e parceiros da comunidade. Nos percursos educativos, é preciso incentivar a leitura da cidade pelas crianças, ampliando sua consciência do espaço urbano ao se apropriar dos elementos da paisagem que o constituem. A percepção dessa realidade, a capacidade de orientação e, mais ainda, a possibilidade de transformar a paisagem da cidade a partir da sua intervenção contribuirão efetivamente para a formação dessas crianças em sujeitos atuantes na sociedade contemporânea.

Mapeamento afetivo dos territórios educativos do Município do Rio de Janeiro

Como desdobramento desses processos investigativos e parte das atividades de parceria entre os grupos de pesquisa GAE e SEL-RJ, foi concebida a atividade Mapeamento Afetivo da cidade do Rio de Janeiro. Em parceria com o Escritório de Planejamento da Subsecretaria de Planejamento e Acompanhamento de Resultados – CVL/SUBPAR da Casa Civil e com a Secretaria Municipal de Educação, ambos órgãos da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, os grupos de pesquisa realizaram essa atividade com as escolas de Ensino Fundamental da rede pública municipal do Rio de Janeiro, com o intuito de entender a diversidade e a complexidade da cidade, a partir do olhar dos estudantes. Essa parceria resultou numa equipe híbrida que contou com a colaboração entre estudantes de graduação e pós-graduação, professores da UFRJ e de instituições acadêmicas internacionais, bem como os técnicos municipais da Subsecretaria de Planejamento e da Secretaria de Educação. Ao reconhecer que uma cidade acolhedora para as infâncias é boa para todos, pretende-se reforçar o protagonismo das crianças como agentes transformadores da cidade e incluir os resultados dessa participação no Plano de Desenvolvimento Sustentável do Município do Rio de Janeiro (PDS-RJ) desenvolvido pela Prefeitura. Reconhecer a cidadania das crianças é o primeiro passo na construção de cidades mais responsivas, sustentáveis e resilientes.

Com essa proposta, lançada como um desafio inicial pelo Prof. Miodrag Mitrasinovic de Parsons School for Designe, e alinhada aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU – Agenda 2030, a atividade “Dia D” foi realizada simultaneamente em toda a rede no Dia Mundial do Urbanismo, em 8/11/19. A rede municipal pública do Rio de Janeiro constitui a maior da América Latina, com um total de 1.540 Unidades Escolares e 626.778 mil alunos divididos em 11 Coordenadorias Regionais de Educação – CREs. Assim, a participação das escolas na atividade foi por adesão e 734 escolas participaram (Figura 01), contemplando todas as áreas de planejamento da cidade, com um total de 13.376 documentos respondidos. Foi uma atividade simples na sua proposição, mas complexa e muita rica no seu processamento e análise. A dinâmica se deu a partir do seguinte questionamento:

1) Como é o caminho que você faz da sua casa até a escola onde você estuda? Descreva, em desenhos e/ou palavras, o que você vê, sente e ouve durante esse percurso.
2) Agora que você respondeu a primeira pergunta, descreva, em desenhos e/ou palavras, o que você deseja para esse percurso.

A produção do mapeamento afetivo traduziu a percepção dos estudantes sobre os espaços públicos da cidade vivenciados diariamente, identificando suas necessidades e desejos, em diferentes contextos urbanos, possibilitando análises comparativas.

Para a tabulação dos dados, foram criadas 15 categorias de análise, de acordo com a recorrência das respostas – infraestrutura, equipamentos, comércio e serviços, indústria, aspectos urbanísticos, espaços livres e áreas verdes, acessibilidade, mobilidade, mudanças climáticas, conforto ambiental, conforto afetivo, recreação e lazer, aspectos socioeconômicos e culturais, segurança e violência, ações sustentáveis. As categorias foram subdivididas ainda em 119 subcategorias, dada a riqueza, abrangência e subjetividade das respostas.

Figura 01 – Mapa de localização das escolas da Rede Municipal do Rio de Janeiro que participaram na atividade do “Dia D”

Fonte: Acervo GAE/SEL-RJ, 2020

Em um estágio posterior de análise, foram criados gráficos do tipo radar para apresentar a distribuição das respostas por categoria tabulada. Assim, obtiveram-se gráficos específicos para cada coordenadoria, possibilitando uma apreensão paralela da totalidade de respostas por CRE durante o mapeamento (Figura 02). Esses gráficos permitem uma leitura simultânea a partir da sobreposição dos resultados das representações das Percepções e dos Desejos registradas. Como processo anterior à espacialização dos dados sobre o mapa da cidade, gerou-se um gráfico de radar síntese, dimensionado aos resultados obtidos nas onze CREs do município (Figura 03).

Com esses instrumentos de análise, foram feitas leituras transversais dos dados nas quais aparecem vários pedidos e demandas em comum entre as CREs. Dentre elas, destacam-se o investimento em infraestrutura, a qualificação do habitar urbano, a demanda por espaços livres públicos, as solicitações de ações efetivas para coleta de resíduos e contra a insegurança, o acesso ao transporte público de qualidade, dentre outros. Entretanto, prestar atenção às divergências que existem entre as CREs possibilita observar as assimetrias que transparecem por meio dessa leitura, a partir da visão de crianças e jovens, tão rica em forma e conteúdo.

Figura 02 – Resultados preliminares

Fonte: Acervo GAE/SEL-RJ, 2020

Figura 03 – Resultados preliminares

Fonte: Acervo GAE/SEL-RJ, 2020

O retorno dos estudantes reafirmou a diversidade do território do Rio de Janeiro e a percepção crítica desses sujeitos sobre a cidade (Figuras 04 e 05), deixando visíveis as desigualdades e as vulnerabilidades existentes, listadas anteriormente, mas também revelando afetos, desejos e também proposições, confirmando a potência desses territórios para a formação dos estudantes que têm a oportunidade de exercer diariamente sua consciência crítica sobre os problemas da cidade.

Conforme Lamounier (2020), “a fruição nas ruas é uma forma de resistência”4 e, no usufruto das potencialidades oportunizadas pelo perambular pela cidade, a criança se desenvolve, constrói e reconstrói sua visão de mundo, ao mesmo tempo em que provoca mudanças em si mesma e na urbe, dotando-a de vitalidade (Azevedo, 2019).

Retornando a Latour (2020), em sua provocação sobre quais atividades gostaríamos que fossem retomadas, ampliadas, diversificadas depois da pandemia da Covid-19, situamos esse mapeamento como uma estratégia de ação para o “fortalecimento das microcentralidades e micropolíticas, fortalecendo as territorialidades: em ruas, quarteirões, bairros, comunidades, com pequenos espaços coletivos, de troca, conversa, brinquedo, comércio, plantio e aprendizado”5.

Figura 04 – Resultados preliminares

Fonte: Acervo GAE/SEL-RJ, 2020

Figura 05 – Resultados preliminares

Fonte: Acervo GAE/SEL-RJ, 2020

Com a parceria entre os grupos de pesquisa e a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro (EPL-Casa Civil e Secretaria Municipal de Educação), pretende-se inserir o Mapeamento Afetivo como atividade curricular anual e institucionalizar o “Dia D” como uma META do Plano de Desenvolvimento Sustentável – RJ. Diante do contexto da pandemia COVID-19, e com o isolamento social implementado, entende-se que essa atividade irá contemplar um olhar bastante particular das crianças perante o momento atual, uma vez que se encontram limitadas do usufruto da escola, do espaço público e da cidade. Talvez as perguntas precisem ser ressignificadas e/ou complementadas, incluindo-se, por exemplo, “o que você vê e sente ao olhar pela janela da sua casa? O que sente falta nesse momento da quarentena?”, ou “Qual cidade você deseja encontrar quando terminar a pandemia?”.

Compreende-se a potência da atuação conjunta da universidade com os agentes públicos e privados envolvidos na gestão e planejamentos urbanos para enfrentar os desafios postos às cidades do século XXI através de processos participativos e inclusivos. Essa discussão se alinha à discussão mundial sobre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, buscando uma alternativa viável ao enfrentamento dos grandes desafios urbanos: sustentabilidade socioambiental; segurança física e combate às desigualdades; melhorias de habitabilidade e de desempenho educacional e afetivo. Ao contribuir com o Plano de Desenvolvimento Sustentável desenvolvido pela Prefeitura do Rio de Janeiro, alinha-se aos princípios da cidadania global, à valorização de diversidades e à educação para o desenvolvimento sustentável, permitindo:

● contribuir com a formação de uma consciência crítica sobre a cidade e a construção da cidadania dos estudantes;
● contribuir com a visibilidade e autonomia dos atores sociais que compõem as relações entre escola-cidade, reconhecendo-os como sujeitos de direitos à cidade;
● resgatar a vitalidade da cidade e do espaço público, a partir do reconhecimento das oportunidades educativas dos territórios;
● divulgar e compartilhar a visão coletiva das crianças sobre a cidade e sobre seu futuro.

A leitura sobre a situação atual da rede pública de ensino fundamental no Município permite entrever a urgência de atender às necessidades básicas da população infantil de ter acesso a uma educação pública de qualidade. A população entre 0 e 14 anos continua representando o grosso da pirâmide demográfica, fato que reforça a importância de responder de forma efetiva problemáticas provenientes desse setor, isto é, atender às demandas originárias das políticas e práticas educacionais, bem como às necessidades e valores culturais dos grupos sociais e das respectivas comunidades presentes no município do Rio de Janeiro.

O mapeamento afetivo resultou em um conjunto de desenhos e textos elaborados pelos estudantes que descreveram a realidade dos seus percursos casa-escola, em diferentes contextos urbanos, além dos seus desejos para a cidade e o seu futuro, de forma a apontar ações para um planejamento urbano mais participativo. A potência da atividade, ao dar voz aos estudantes nas decisões sobre a cidade, constitui motivação importante para pensar políticas públicas urbanas para a infância e a juventude. A atividade é parte também do projeto CAPES-PRINT Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e a Nova Agenda Urbana: equidade, resiliência urbana e sustentabilidade socioambienta6.

O Plano de Desenvolvimento Sustentável apresenta ações e metas alinhadas à agenda de desenvolvimento sustentável da ONU, conhecida como Agenda 2030 (Figura 06). De acordo com Daniel Mancebo, coordenador geral do Escritório de Planejamento da Secretaria da Casa Civil:

[…] o grande diferencial do Plano de Desenvolvimento Sustentável do Rio é que ele está sendo elaborado com a participação da população. O Dia D faz parte dessa estratégia, porque nos permite amplo grau de participação social e representatividade, já que a rede municipal de ensino é formada por 1.540 unidades e atende mais de 635 mil alunos de todas as regiões.7

Figura 06 – Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU pelo olhar das crianças

Fonte: Acervo GAE/SEL-RJ, 2020

4 – Comentário do Prof. Alex Lamounier em sua palestra Atmosferas de preferência e o afeto como resistência e resiliência cotidianas, proferida nos Seminários EAU-UFF, em 01 de setembro de 2020.
5 – Texto em elaboração pelo GRUPO SEL-RJ a partir de leitura e debate sobre Bruno Latour (2020) em Imaginar gestos que barrem o retorno da produção pré-crise.
6 – Projeto coordenado pela Profa. Dra. Vera Regina Tângari (PROARQ-FAU-UFRJ).
7 – Prefeitura do Rio de Janeiro, 2019. Disponível em: https://prefeitura.rio/tag/plano-de-desenvolvimento-sustentavel/. Acesso em 14 jul. 2020
Giselle Arteiro Nielsen Azevedo gisellearteiro15@gmail.com

Arquiteta, Profa. Associada da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FAU/UFRJ e PROARQ/FAU/UFRJ) - Brasil; Coordenadora Adjunta de Ensino do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura (PROARQ-FAU/UFRJ); Coordenadora do Grupo Ambiente-Educação - GAE

Vera Regina Tângari vtangari@uol.com.br

Arquiteta, Profa. Associada da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FAU/UFRJ e PROARQ/FAU/UFRJ) - Brasil; Coordenadora Adjunta de Ensino do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura (PROARQ-FAU/UFRJ); Coordenadora do Grupo Sistema de Espaços Livres - Rio de Janeiro - SEL-RJ.

Alain Flandes alflandes@gmail.com

Arquiteto e Urbanista, doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura da Universidade Federal do Rio de Janeiro - PROARQ/UFRJ - Brasil; Pesquisador colaborador do Grupo Ambiente Educação (GAE) e do Sistema de Espaços Livres - Rio de Janeiro - SEL-RJ. Email: alflandes@gmail.com