Maryana de Castro Rodrigues
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Psicologia, Rio de Janeiro, Brasil
https://orcid.org/0000-0003-3656-4759
Ingrid Moraes de Siqueira
Universidade Federal Fluminense, Instituto de Psicologia, Niterói, Brasil
https://orcid.org/0000-0001-7204-2785
Vitória Ramos Santana
Universidade Federal Fluminense, Instituto de Psicologia, Niterói, Brasil
https://orcid.org/0000-0002-8633-8197
Juliana Caminha
Universidade Federal Fluminense, Instituto de Psicologia, Niterói, RJ, Brasil.
https://orcid.org/0000-0001-7489-325X
Vivyan Karla do Nascimento Pereira da Silva
Universidade Federal Fluminense, Instituto de Psicologia, Niterói, Brasil.
https://orcid.org/0000-0003-1375-6344
DOI: https://doi.org/10.54948/desidades.v0i31.43839
Introdução
A entrada no Ensino Superior no Brasil ocorre por meio de processos seletivos que têm como objetivo avaliar os conhecimentos acadêmicos dos candidatos para o preenchimento de vagas em instituições públicas e, muitas vezes, também privadas. De modo geral, essa seleção se dá através de provas objetivas e/ou discursivas contendo um elevado número de questões e que, em 1915, foi oficializada com o título de vestibular (SOARES; MARTINS, 2010).
O vestibular é, portanto, um processo de qualificação, com prerrogativas classificatórias e seletivas. Percebe-se que, na prática, tornou-se muito maior que uma simples prova, mas uma espécie de “rito de passagem” para a vida adulta, além de ser considerado como porta de entrada para melhores possibilidades de inserção no mercado de trabalho, sendo, assim, amplamente estimulado em todas as classes sociais e para um público cada vez mais jovem (D’AVILA; SOARES, 2003; RODRIGUES; PELISOLI, 2008; PAGGIARO; CALAIS, 2009).
O excessivo número de candidatos em relação às poucas vagas disponíveis gera a necessidade de um preparo intenso, de, geralmente, um ano ou mais, que hoje tem como consequência uma grande modificação no modelo de ensino das escolas privadas, que se voltam cada vez mais para a preparação dos seus alunos para o exame (D’AVILA; SOARES, 2003).
Percebe-se, portanto, uma tensão paradoxal: a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) determina que o Ensino Médio ofereça uma educação abrangente, que possibilite ao aluno exercer sua cidadania de forma crítica e consciente (BRASIL, 1996), enquanto muitas instituições privadas têm objetivado, cada vez mais, a preparação do aluno exclusivamente para a aprovação no processo seletivo do vestibular. Com isso, ao focar na busca de melhores resultados, ignoram a quantidade de efeitos lesivos gerados nos alunos.
Além disso, cabe considerar que a realidade nas escolas estaduais e municipais é permeada por outras dificuldades, destacando-se as consequências de más gestões públicas, que deixam aos estudantes fragilidades nas condições de ensino e defasagens de aprendizagem, ampliando os obstáculos para um desempenho concorrente em relação aos estudantes da rede privada.
Em paralelo, as instituições federais de ensino se constituem como uma realidade híbrida, pois, em geral, possuem resultados equivalentes aos das escolas privadas, porém enfrentam os desafios estruturais do sucateamento da educação pública. A pressão experienciada por esses jovens ocorre, assim, numa outra dimensão: sentem-se na obrigação de honrar a oportunidade de um ensino de qualidade, cumprindo os protocolos de aprovação que mantêm o colégio em seu status de excelência e de diferencial dentro do ensino público.
Segundo Schönhofen et al. (2020), o próprio ambiente preparatório para os vestibulares pode contribuir para o surgimento de fatores ansiogênicos, pois é atravessado por um cenário de competitividade. Quanto maior é o número de alunos aprovados em universidades por uma escola, maior é o seu conceito e melhor é a sua avaliação diante da sociedade, não importando de que modo ocorre e o que essa preparação inclui e, principalmente, exclui. O fim, a aprovação, justifica e reforça os meios.
Considerando esse cenário experienciado por muitos jovens no contexto brasileiro, o presente artigo apresenta a aposta de trabalho realizada por uma equipe de extensão universitária do curso de Psicologia da Universidade Federal Fluminense de Niterói, que utilizou-se de dispositivos grupais e de oficinas para a promoção de saúde no contexto de preparação para o vestibular de estudantes secundaristas de um colégio federal do mesmo município. As experiências aqui expostas demonstram a contribuição do projeto para o entendimento de que o coletivo produz transformações no singular, ensejando a construção de estratégias de enfrentamento e a potencialização desses jovens diante do processo vivenciado.
Efeitos do vestibular e estratégias de enfrentamento possíveis
O grau de importância dado ao vestibular, aliado ao limitado número de vagas ofertadas pelas universidades, acaba contribuindo para o surgimento de intenso sofrimento, com manifestações físicas e psicológicas, nos candidatos. Apesar de escassos, os estudos quantitativos na área apresentam dados alarmantes sobre o número de jovens que relatam alguma forma de adoecimento nesse período.
No estudo realizado por Schönhofen et al. (2020), por exemplo, com 137 alunos, apresentou-se a prevalência de sintomatologia de Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG) de 41,4% em uma taxa de resposta de 90,7%. Essa presença de sintomas físicos e psicológicos foi mais associada com a ansiedade relacionada à prova, indicando que reações específicas, como falta de confiança, distrações e preocupações, são provocadas em virtude do alto grau de competitividade e da incerteza da aprovação. Santos et al. (2017) investigaram a ocorrência de sintomas de estresse em 178 vestibulandos de Medicina, principalmente cefaleia e transtornos de humor, que podem ser causados por influência familiar, disputa de vagas e busca por sucesso no vestibular.
Um ponto de elevada importância nessa temática, mas que ganha pouco destaque, é a forma como os próprios estudantes enfrentam tal situação, a qual pode contribuir para o aumento ou diminuição das consequências físicas e psicológicas provocadas por tal evento. A articulação de estratégias de enfrentamento a esse processo apresenta-se como possibilidade de diálogo – associações, compartilhamento de desejos, medos, intenções comuns (HAMANN et al., 2019) – com o fim de construir uma rede de apoio de estudante para estudante.
Iniciativas que estimulam a cooperação, partilha de dificuldades, bem como a construção coletiva de estratégias de enfrentamento podem gerar novos entendimentos sobre a vivência do vestibular e o abrandamento de seus efeitos mais imediatos. A partir de um espaço de prevenção e promoção de saúde mental, observou-se na experiência de intervenção para manejo de estresse e ansiedade em vestibulandos, feita por Daolio e Neufeld (2017), que os participantes desse programa indicaram que “o simples fato de reconhecerem que estavam em uma situação geradora de desgaste emocional e, principalmente, de possuírem um espaço para falarem sobre isso, pôde ajudar a aliviar as pressões que estavam sofrendo” (DALIO; NEUFELD, 2017, p. 131).
Uma perspectiva de saúde
Considerando o panorama do vestibular e os potenciais efeitos produzidos naqueles que vivenciam esse processo, percebe-se que a saúde dos vestibulandos é algo que merece atenção. Sendo assim, intervenções voltadas para esse público fundamentalmente deparam-se com a necessidade de pensar a saúde em seus variados aspectos.
A relação entre saúde e educação, a partir das possibilidades de pensar essa vinculação junto às escolas, fornece meios para compreender a não separação entre processos educativos e saúde. No contexto brasileiro, essa associação é exposta e defendida também por órgãos públicos, como o Ministério da Saúde.
Através do Departamento de Atenção Básica, o Ministério da Saúde produziu, em 2009, os Cadernos de Atenção Básica, dentre os quais está aquele que aborda o Programa Saúde na Escola. No referido documento há uma visão sobre o espaço escolar que marca a relação deste com a produção de saúde em âmbito social:
A escola deve ser entendida como um espaço de relações, um espaço privilegiado para o desenvolvimento crítico e político, contribuindo na construção de valores pessoais, crenças, conceitos e maneiras de conhecer o mundo e interfere diretamente na produção social da saúde (BRASIL, 2009, p. 8).
Entende-se que a escola exerce um papel fundamental para além do campo pedagógico, participando também com funções sociais e políticas significativas para a população. Nesse sentido, está fortemente envolvida com questões de promoção de saúde, produção de qualidade de vida, fortalecimento de capacidades individuais e estímulo à tomada de decisões que visem à manutenção da saúde (BRASIL, 2002). Através da ampliação do entendimento do papel das instituições escolares é afirmado o caráter formativo da escola, atuando não somente para uma formação acadêmica e intelectual, mas também humana e social.
Observando essas definições, averígua-se que a intersecção entre saúde e educação envolve diversos fatores e que a promoção da saúde nesse contexto deve abranger dimensões variadas da vida. O caminho é o da defesa de uma visão de saúde que está para além do entendimento de que esta é apenas a ausência de doenças e que afirma a possibilidade de construção de uma vida saudável quando se enfoca a integralidade da pessoa.
Promover saúde é tocar nas diferentes dimensões humanas, é considerar a afetividade, a amorosidade e a capacidade criadora e a busca da felicidade como igualmente relevantes e como indissociáveis das demais dimensões. Por isso, a promoção da saúde é vivencial e é colada ao sentido de viver e aos saberes acumulados pela ciência e pelas tradições culturais locais e universais (BRASIL, 2002, p. 535).
É preciso, portanto, considerar a saúde através do seu aspecto de integralidade, situando o sujeito em seu contexto territorial, social, histórico e econômico, para além de sua condição orgânica. Nesse sentido, tomamos como referência Bernardes, Pelliccioli e Guareschi (2010), que afirmam que o trabalho em promoção de saúde não se resume apenas em tratamento, prevenção e reabilitação, mas também na produção de novas formas, de outras possibilidades de vida.
Ainda nesse trabalho, os autores reapresentam o conceito de “potência de vida”. Forjado na Filosofia, ele diz da nossa capacidade de constante criação de novas formas de se agregar, de criar sentidos, de inventar dispositivos de valorização e autovalorização.
Operar com a produção de saúde não diz respeito a olhar para o querer-viver, mas para a afirmação da vida (DELEUZE, 2006). E a afirmação da vida encontra-se não nas essências, como na forma biopsicossocial, mas nas circunstâncias, na variação das formas de existir. Essa variação das formas de existir relaciona-se à potência de agir. Essa potência de agir é provocada por aquilo que faz variar as formas de existir: o afeto (BERNARDES; PELLICCIOLI; GUARESCHI, 2010, p. 11).
Esse afeto de que nos fala Deleuze (2006) se refere a um certo efeito do encontro com a alteridade. Assim, entendemos que a produção de saúde está diretamente relacionada à potência de vida, a essa capacidade de criação de formas inventivas de viver, e que estas se dão não no âmbito individual, mas no coletivo.