Foto: Pxhere

Comuna da Terra D. Tomás Balduíno: aproximações a partir de palavras e imagens criadas por crianças assentadas

Transformar pela terra: considerações para continuar a conversa


Imagem produzida coletivamente na oficina pinhole (acervo das autoras)

Recuperamos aqui a pergunta: quem fotografa quem e o quê? Que narrativas são elaboradas sobre o assentamento? Pelas crianças, o resultado de uma luta incessante se faz ver pelos brinquedos, e a dimensão brincalhona se faz corrente em reivindicações nem tão comuns, mas que insistem em nos afirmar que as crianças estão por lá, como moradoras e lutadoras, que revolvem a terra e a seus desejos e lhe configura outro ambiente.

Inicialmente, é possível considerar que se trata de uma predileção infantil que remonta ao prazer pelo brincar – que, por vezes, é-lhes tirado ou deixado diminuto. Contudo, chama a atenção o gosto pelos espaços externos. O fotógrafo Cristiano Mascaro afirma que fotografar é saber ver, se assim o é, as crianças estão sabendo ver com presteza, deixando enxergar uma criação plástica do real. Somamos à afirmação de Mascaro uma outra: no ato fotográfico, há uma dimensão corpórea e todo o corpo se envolve. Há um movimento construtor da fotografia em que estão relacionados o corpo-texto com imagens impressas na memória, nos gestos, nas falas, no modo de olhar e nas buscas pelos objetos. Com isso, a foto do assentamento não é, seguramente, distante desse gesto-criança-movimento sensível que olha e investiga o entorno. Como sugere Beatriz Sarlo (2015):

A relação com a imagem e com o espaço se apresenta sob um duplo aspecto: recebem-se as imagens (fixas ou móveis) e elas são fabricadas. Fabricar imagens é, ao mesmo tempo, se apropriar do espaço, transformá-lo e, de certa maneira, consumi-lo. Essa maneira de vivenciar o lugar tem por fim olhar o espaço e a história que se desenvolve no local. Assim, tal como em um espetáculo, esses elementos fornecem a matéria-prima, mas impõem mudanças na natureza do lugar e em sua temporalidade (p. 54).

Há uma existência exibida por aqueles que vivem nesse espaço que irrompe o cotidiano e sua versão mais rotineira e dão sentido, ainda que nas brechas, às suas experiências diárias expressas em lutas constantes, modificando-as. A imaginação vai se desenvolvendo, alimentando-se e fazendo-se presente nas escolhas e composições. Como sublinha Sarlo (2015), há, nessas escolhas, e no que se mostra a partir delas, um sentido social que é a condição mínima e necessária para que possam se desenvolver os processos ligados ao imaginário de forma metafórica e metonímica da arte, do romance, da poesia, ou mais ainda, para que eles sejam apreciados por todos, reconhecidos ao mesmo tempo como sedutores e, então, não destituídos de sentido.

As fotografias nos interpelam. São instrumentos discursivos, linguagem que narra visualmente e são capazes, com isso, de fazer emergir alguns dos sentidos da pesquisa, do estar com as crianças e perceber suas certas experiências no espaço, as relações das crianças com o espaço do assentamento que se dava, ora pelo desejo de piscinas, ora pelos brinquedos captados e mostrados. A representação de um simples objeto instaura a presença da contenda pelos direitos à terra e suas conquistas, mas, ainda mais, instigam a pensar sobre outras demandas, talvez invisíveis aos olhos adultos mais calejados.

São vários os testemunhos da conquista, como nas fotos em que distintos brinquedos foram registrados. Importa aqui compreender que a luta pelo assentamento, ainda que ofuscada pelo tempo ou por informações que excluem movimentos sociais, pode se materializar nessas imagens-lembranças que, ainda sem rostos, têm histórias a contar pelas crianças assentadas.

Georges Didi-Huberman (2017) define as imagens como espaços de luta. Partimos dessa afirmação e refletimos sobre a ideia de que as fotografias elaboradas pelas crianças carregam também essa dimensão, somando-as a suas características documentais e criativas. Elas se comportam não apenas como expressão da luta, mas como forma imagética de luta que tem capacidade de agir sobre as pessoas, com uma ressalva: são ações apresentadas pelas crianças, independentemente de sua faixa etária, e podem colaborar para refletir e compor um olhar de longe e de dentro do movimento.

O que se registra quando imagens são arroladas? Quem produz as imagens de quem? Elas guardam grande força formativa e informativa em suas narrativas, porém, afirmando pontos de vistas, por vezes, únicos. Majoritariamente, temos os adultos sobre eles mesmos ou sobre temáticas convencionadas por eles. Quanto às crianças moradoras em assentamentos do MST, ainda nos resta saber tantas coisas. Fica, portanto, o convite para olhar novamente as imagens criadas coletivamente por elas e seguir refletindo e adensando diálogos.


Imagens produzidas coletivamente na oficina pinhole (acervo das autoras)

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Resumo

 

Este artigo apresenta reflexões que buscam, de modo amplo, aproximações com o cotidiano infantil no assentamento Comuna da Terra Dom Tomás Balduíno e, de forma mais estrita, conhecer alguns aspectos das lutas e suas conquistas pelas e com as crianças. O método compreendeu a busca de indícios nas imagens fotográficas criadas por crianças em contexto de pesquisa, afirmando-as como fontes documentais e agentes. Visamos a adotar o ponto de vista das crianças, porém, esse se encontra junto a informações dadas e consideradas pelos adultos. As imagens se ofereceram como orientadoras das reflexões, bem como as conversas com a criançada durante a feitura das câmeras, captação de imagens e caminhadas. As imagens de brinquedos e paisagens comuns registradas pelas crianças se contrapõem à narrativa imagética adulta que, frequentemente, desfoca os movimentos sociais, sobretudo, de luta por terra e moradia, deixando descoberta a presença de seu caráter lúdico ou poético, somado à prática política, excluindo sensibilidade estética não apenas das crianças, mas também de homens e mulheres assentados.

 

Palavras-chave: infância, movimentos sociais, fotografia, MST, crianças.

 

Data de recebimento: 07/02/2018

Data de aceite: 08/09/2018

Marcia Gobbi mgobbi@usp.br

Graduada e licenciada em Ciências Sociais - Universidade de São Paulo (USP), Brasil. Mestrado e Doutorado em Educação, Sociedade e Cultura - Universidade de Campinas (UNICAMP), Brasil. Professora Doutora da Faculdade de Educação - USP.

Maria Cristina Stello Leite mariastello@gmail.com

Graduada e licenciada em Ciências Sociais - Universidade de São Paulo (USP), Brasil. Mestrado em Educação - Faculdade de Educação - USP e doutoranda na mesma instituição.

Paula França pauladasilvafranca@gmail.com

Pedagoga - Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), Brasil, do curso Pedagogia da Terra. Militante e coordenadora regional de Educação do Movimento dos/as Trabalhadores/as Rurais sem Terra (MST), Brasil.