Introdução
A despeito de instrumentos infraconstitucionais, jurídico-políticos, na área infanto-juvenil, ainda convivemos com as consequências da herança colonial neste país, posto que a inacessibilidade aos direitos sociais está intrinsecamente ligada à pauperização e aos efeitos do racismo estrutural. Esse reflexo pode ser constatado quando analisamos as medidas socioeducativas de privação de liberdade, porquanto, ao caracterizar a população adolescente em cumprimento de medidas socioeducativas, percebemos que se trata de adolescentes negros, do sexo masculino, em disfunção série/idade, vivendo em situação de vulnerabilidade social. Tais violações de direitos são motivadoras da nossa indignação, pesquisa e intervenção desde a época da graduação. Contudo, foi no doutorado que buscamos um olhar abrangente acerca das infrações cometidas por jovens pertencentes aos estratos mais vulneráveis da classe trabalhadora.
Desse modo, este artigo pretende dar visibilidade a expressões objetivas e subjetivas relativas ao conflito com a lei de jovens em situação de pobreza no Nordeste brasileiro, sendo o problema a ser perseguido as formas de enfrentamento cotidiano desses jovens diante das opressões sofridas. A pesquisa foi realizada em Maceió (Alagoas), Brasil, e Salvador (Bahia), Brasil, com jovens do sexo masculino entre 15 e 24 anos1, residentes na zona urbana, vinculados ao sistema punitivo do poder judiciário, do qual receberam medidas socioeducativas em meio aberto. Foi feita pesquisa de cunho qualitativo, em que se objetivou relacionar, às situações presentes nas falas dos jovens, tanto questões macrossocietárias quanto teóricas, considerando-as como parte de suas subjetividades. A pesquisa de campo envolveu roteiro semiestruturado com questões relativas às lembranças da infância, vivências na escola e com os amigos, início, permanência e saída do conflito com a lei e, por fim, atividades laborais e projetos para o futuro.
A seleção dos jovens participantes da pesquisa foi feita por assistentes sociais que trabalhavam nas respectivas Centrais de Medidas Socioeducativas em Meio Aberto2. Isso significa que não escolhemos entre um jovem ou uma jovem; o grupo foi composto por quem foi indicado pelas profissionais supracitadas e, dentro deste, aqueles jovens que aceitaram participar. Apesar de compreendermos não se tratar de acaso, visto o maior número de jovens do sexo masculino nas estatísticas nacionais do conflito com a lei, não fizemos intencionalmente esta escolha de gênero masculino. Fizemos duas entrevistas para cada jovem, antecedidas por um encontro catalisador de vínculos de confiança, no qual era confirmado o interesse deles em participar, dadas as limitações/sigilos concernentes aos relatos ligados aos processos judiciais. As entrevistas foram analisadas horizontal e verticalmente, de modo a encontrar similitudes e singularidades entre os jovens. Também foram buscadas aproximações com outras pesquisas em torno do tema.
O recorte teórico foi feito principalmente em autoras/es que buscam fornecer elementos para uma compreensão da subjetividade a partir da teoria crítica, ou seja, trazendo ao estudo elementos relativos aos modos de produção como fundantes do olhar sobre as conjunturas. Assim, buscamos na pesquisa iluminar as histórias de vida e as memórias dos jovens entrevistados através da compreensão do ser social como sujeito que se (re)constrói a partir da sua relação com o mundo real, pelo qual é modificado, nele interfere, mas não em quaisquer condições, mas sim, a partir dos limites pessoais, familiares, contextuais, sócio-históricos, econômico-culturais.
Este trabalho está estruturado em três partes principais, sendo a primeira a contextualização socioconjuntural, com alguns dados que se constituem como pano de fundo do conflito com a lei no Brasil de hoje. No segundo momento, trazemos uma síntese das referências teóricas que embasaram a pesquisa, tanto sobre a construção da subjetividade como sobre criminalidade. Por fim, na terceira parte, buscamos estabelecer a relação com outras pesquisas, aspectos teóricos, a pesquisa de campo e algumas das questões circundantes do conflito com a lei na contemporaneidade.
Aspectos socioconjunturais: pano de fundo para o conflito com a lei relativamente à juventude em situação de pobreza
O conjunto de eventos relacionados à barbárie contemporânea em torno do tráfico de drogas, dos altos rendimentos dele provenientes, da corrupção que passa por paraísos fiscais e pelas bolsas de valores (Aguilera, 2012) e a conjunção com outros tráficos (Jamoulle, 2011) não permitem a culpabilização individual ou grupal dos jovens em conflito com a lei, normalmente pertencentes a estratos socioeconômicos mais vulneráveis, tal qual se presentifica no senso comum, mas tão conveniente aos poderes existentes.
O capitalismo do tempo presente, dotado de forte caráter financeiro (Novoa; Balanco, 2013), tem implementado medidas que desaceleram o capital produtivo, cuja reserva da capacidade da força de trabalho não tem mais, exatamente, a mesma relação com o disciplinamento dos corpos, como bem descreveu Foucault (1991).
A infraestrutura em vigor nos conduz a uma economia excessivamente baseada na financeirização, atrelada ao trabalho precário, informal e subterrâneo como mola importante do sistema neoliberal (Serra, 2009). No tocante às juventudes em situação de pobreza, que se deparam com o mercado de trabalho, o que lhes está disponível, em regra, é o setor terciário, ou seja, o de prestação de serviços, exigindo desses jovens comportamentos aos quais não estão habituados na sua sociabilidade: “docilidade, sorriso, servidão, tom e vocabulário educado” (Jamoulle, 2005, p. 55), ou são inseridos em trabalhos braçais e/ou nos chamados subempregos, situação esta que afeta outros estratos geracionais (Soares, 2010).
Tais questões se ampliam bastante em realidades periféricas como o Brasil, próprias da função que o país ocupa no cenário do capitalismo mundial devido às intervenções impostas pelos organismos internacionais, a exemplo dos indicados no Relatório do Banco Mundial de novembro de 2017, de título cínico: Um ajuste justo: análise da eficiência e da equidade do gasto público no Brasil (Banco Mundial, 2017).
Cabe ressaltar que tais medidas de austeridade têm promovido mais desigualdades sociais e regionais, cujas consequências pioram as parcas alternativas para as juventudes3 em situação de pobreza, a não ser o trabalho árduo e/ou maneiras estatais de incidir controle sobre as suas vidas e de suas famílias, ora via encarceramento em massa (Borges, 2019), ora pelo genocídio da juventude negra, conforme nos aponta a última edição do Atlas da Violência (IPEA, 2019).
Juliana Borges (2019) apresenta dados de que o Brasil ocupa o terceiro lugar no mundo em encarceramento masculino, sendo jovens 55% dos encarcerados e 64% de negros quando, do ponto de vista populacional, os negros representam 53%. Nos encarceramentos femininos, ocupamos o quinto lugar, sendo que 50% têm entre 18 e 29 anos, e 67% são negras, dado que se assemelha (68%) quando se trata de privação de liberdade das adolescentes (Borges, 2019). Inclusive, verifica-se que o crescimento do encarceramento feminino é muito superior quando comparado ao masculino: entre 2006 e 2014, registra-se um aumento de 567,4% do primeiro contra 220% do último (Borges, 2019).
Não se pode deixar de evidenciar também as mulheres — mães, esposas, irmãs, tias — quando, por exemplo, perdem seus entes queridos ou são aquelas que acompanham as situações do entorno da privação de liberdade. Há muitas formas em que as famílias, as/os jovens e a população LGBTQI+ são duramente afetados. Apesar de não ser este o centro do nosso estudo, não podemos invisibilizar a questão, até porque ela tem raízes profundas nas relações patriarcais, conforme expressa Saffioti (2004).
Destarte, sabendo que o genocídio apresenta marcadores sociais de raça/etnia, classe, gênero e geração, percebemos que, de forma territorial, se olharmos para a cidade de Salvador (Bahia), esses dados se apresentam não somente no recorte de raça, como também na divisão socioeconômica e espacial da capital baiana: “Em 2016, 260 adolescentes foram assassinados, dos quais 237 eram negros”, índice este de 91%. Os dados supracitados demonstram, ainda, que essas mortes aumentavam nos bairros periféricos e mais pobres e diminuíam nos bairros soteropolitanos com situação socioeconômica mais elevada (UNICEF, 2018).
Esse genocídio da juventude pobre e negra, decorrente do racismo estrutural (Almeida, 2019), também se caracteriza como um problema de saúde pública, quando se registra, por exemplo, que Alagoas ocupava, em 2010, o primeiro lugar na classificação nacional desta triste categoria (Waiselfisz, 2015). Um verdadeiro genocídio que, segundo esse autor, leva a um déficit masculino no Brasil; fenômeno que só existe em uma sociedade em estado de guerra, o que parece ser o nosso caso.
Podemos inferir que, em tempos de abandono econômico e vínculos com o neoliberalismo pelos eixos de libertarianismo, fundamentalismo religioso, anticomunismo e por suas reciclagens históricas particulares, as faces ultraconservadoras brasileiras encontram espaço para se exprimir ainda mais: “Diante de uma sociedade racista, patriarcal e etnocida, estruturada para favorecer os proprietários e as velhas e novas oligarquias, experimentam-se modos de anular ou de destruir qualquer prática de resistência” (Gallego, 2018, p. 66).
É importante refletir sobre a relação entre as condições materiais e subjetivas, às quais a juventude negra está exposta, e como tais condições incidem na constituição dos indivíduos. Não significa fazer a defesa de que os jovens pobres sejam mais propensos a cometer crimes; não estamos falando de criminalização da pobreza: trata-se de reconhecer as pressões multidimensionais a estes jovens ante as consequências do sistema capitalista atual, da ausência do Estado e do olhar de rejeição pela sociedade, o que pode culminar, por vezes, em práticas ilícitas, sendo comum aquelas relacionadas ao tráfico de drogas.
Outra questão relevante é a influência da intitulada Guerra às Drogas na tal criminalização da pobreza no Brasil, porquanto os jovens das elites não são vistos nem tratados com as mesmas lentes que aqueles das populações pobres. A Política Nacional sobre Drogas — que não prevê critérios seguros para a distinção entre traficantes e usuários — tem uma relação muito forte com a abordagem diferenciada: “a tipificação penal dependerá do CEP do suspeito e da sua cor da pele” (Boiteux, 2019, p. 3). Esta linha de política pública tem referência no que foi implementado nos Estados Unidos na década de 80 do século XX, escolhendo territórios e indivíduos racializados (Ferrugem, 2019).
Partimos do pressuposto de que esse quadro deve estar atingindo as juventudes ao redor do mundo e tem impactos fortes também sobre as populações que têm raízes imigratórias (Jamoulle, 2005; Jamoulle; Mazzochetti, 2011), com recortes entrecruzados de classe, raça e gênero, vulnerabilizando novamente estratos historicamente afetados.
Todos esses desdobramentos da sociabilidade do capitalismo neoliberal, no que se referem às juventudes, levaram-nos a buscar identificar como os jovens entrevistados enfrentavam tais dificuldades cotidianamente. Assim, as formas por eles encontradas serão trazidas no item após os caminhos teóricos da pesquisa.
2 – Essa nomenclatura é anterior à absorção desse serviço pela Política Nacional de Assistência Social (PNAS) em Salvador, bem como dos termos exigidos pelo Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), cuja articulação nacional entre as referidas políticas é bastante problemática e traz marcadores sociais das desigualdades brasileiras, conforme D’Oliveira (2019).
3 – O conceito de juventude nasce na sociedade moderna ocidental e, até a década de 60 do século passado, esteve restrito aos jovens escolarizados. Abramo (2005) pontua que muitos estudos sinalizam o nascimento de um conceito ligado à juventude burguesa e que está presente até nossos dias como padrão imposto, principalmente considerando a ditadura da ocidentalidade. Assim, entendemos que não temos uma só forma de juventude, dadas as diferenças entre as classes, raça e gênero, entre outros demarcadores, demonstrando a heterogeneidade de que a nomenclatura não dá conta quando apresentada no singular.